A tempestade de Verão
Sob o ponto de vista do Estado de Direito, o ar é hoje bem mais respirável do que era em 2009 e em 2011.
Não vou responder ao PS, nem aos modos “enfurecidos” – segundo a imprensa – da sua reacção. O PS usou o conteúdo vasto e complexo da aula como lhe parecia dar mais jeito. Ironicamente, foi essa reacção que trouxe o caso Sócrates para a ribalta. Mas não me cabe defender o PS de si próprio.
Também não vou pronunciar-me sobre os comentadores que, nos vários meios, formularam opiniões para todos os gostos. As afirmações, depois de proferidas, ganham vida própria e não cabe ao autor cercear a liberdade e a imaginação de quem rectamente as interpreta, intencionalmente as distorce ou inconscientemente as treslê.
A Universidade de Verão é a iniciativa mais consistente de formação política existente em Portugal. Um mérito quase exclusivo de Carlos Coelho. Não é um palco de “rentrée”, nem um comício e, muito menos, um festival ou acampamento juvenil. E, apesar do tempo de pré-campanha, este ano a Universidade não sacrificou a qualidade à táctica política. Basta ter ouvido Leonor Beleza, Horta Osório ou Durão Barroso para ver que a formação dos jovens do PSD não anda a reboque da espuma dos dias.
Isto esclarecido, volto a um tema – julgo poder dizê-lo sem modéstias falsas ou de ocasião – que trato com exigência e profundidade desde os finais dos anos 90. E digo-o, sem rodeios nem novelos, volto com vontade, volto com gosto.
2. Coube-me em sorte tratar, ao longo de uma manhã, o sistema de governo português no quadro dos restantes sistemas. Ora, desde há muito, filiado em Montesquieu – um sociólogo avant la lettre, como lhe chamou Raymond Aron –, que incluo o poder judicial no estudo do sistema de governo. Isto é, não basta equacionar as relações entre o poder legislativo, o poder executivo e a chefia do Estado para caracterizar o sistema de governo. É preciso ir mais longe e perscrutar qual o lugar e o estatuto do poder jurisdicional no quadro do mesmo e quais as relações que entretece com os outros poderes e até com a opinião pública e o eleitorado. Não por acaso, no correr da aula, se explicou porque surgiu tão precocemente o controlo judicial da constitucionalidade das leis nos Estados Unidos. E se falou do grave conflito entre o Presidente Roosevelt e o Supremo Tribunal nos anos da Grande Depressão. E se criticou o carácter conservador e rígido da nossa jurisprudência constitucional, mas também a reacção crispada e arreliada que o actual Governo teve a algumas dessas decisões. Discorri sobre isto abundantemente, em 2001, no livro Repensar o Poder Judicial; em 2009, na I Parte do livro Estado do Estado e, em 2010, no II Capítulo do livro Uma Democracia Sustentável (precisamente chamado. “Esquizofrenia constitucional: as relações entre a justiça e a política”). Esperar que fosse a Castelo de Vide dar uma formação sobre aquele tema e que ignorasse esta perspectiva há tanto amadurecida (e que, de resto, os nossos magistrados tão bem conhecem de dezenas de congressos, colóquios e seminários em que tenho participado), seria decerto estultícia.
3. Intercorrem também neste tema pré-juízos e preconceitos vários sobre a independência judicial e autonomia do ministério público e o que elas significam em cada momento. Elas não são um puro princípio formal: elas alimentam-se também dos valores dominantes e das próprias condições de desenvolvimento e de abertura de cada sociedade. O abuso de menores sempre foi crime, mas, apesar de denúncias e indícios vários com décadas, nunca foi perseguido como agora. Veja-se o que se passa no Reino Unido com as investigações sobre o antigo Primeiro-Ministro Eduard Heath e uma velha estrela da BBC. Não há melhor exemplo de bom funcionamento da Rule of Law, mas os tempos não eram propícios e aí até se suspeita que o poder político moveu as suas resistências. Ou o que se passou com a operação Mani Pulite em Itália. Alguém crê que a corrupção e máfia não haviam invadido a política muito antes? Mas a sociedade só estava madura e desperta para um salto valorativo daquele calibre nos alvores dos anos 90. E a magistratura, tirando os heróis e os Quixotes – que sempre os há –, é feita de humanos, que cumprem com zelo os seus deveres, mas não deixam de viver imersos numa cultura e num ambiente que naturalmente os influencia e envolve. Só quem não leu Montesquieu, ou antes dele Marco Túlio Cícero, supõe que o juiz é a esfíngica “boca que pronuncia as palavras da lei”.
4. Talvez me fique mal recordar, mas António Costa estava na bancada dos ministros, quando fiz o discurso da claustrofobia democrática (2007) e dos mecanismos de condicionamento que levavam muita gente (especialmente no função pública) à autocensura. Releia-se o discurso e ver-se-á como nem tudo é novo.
Acresce que nem todos terão percebido, mas o programa de ajustamento, com o seu tremendo rigor, criou um clima de exigência e de moralização na sociedade. E isso deu força aos cidadãos para reclamarem um comportamento exemplar e a punição de todos os abusos. E com isso, criou um ambiente e uma cultura favoráveis a uma actuação mais vigorosa das magistraturas. A par disso, a atitude de reserva e neutralidade do Primeiro-Ministro, o apego da Ministra da Justiça à autonomia da investigação e da independência judicial criaram um clima de desanuviamento. Insisto: a perseguição dos poderosos na política ou na finança não é obra do governo, mas o clima social, a disposição popular e atitude dos responsáveis políticos criam um ambiente favorável a um exercício são e pleno da justiça. Foi isto que disse e é isto que reitero.
A reacção desmesurada de tantos a esta leitura de sociologia criminal e política causou-me surpresa. Os mesmos que aplaudiram a acusação judicial do primeiro-ministro islandês por ter desenvolvido uma política que levou o país à bancarrota vêem politização da justiça na referência à criação de um ambiente favorável à investigação de um banqueiro e de um líder político, que terão praticado crimes de delito comum.
Podem dizer o que quiserem. Mas sob o ponto de vista do Estado de Direito, o ar é hoje bem mais respirável do que era em 2009 e em 2011.