Investigue-se a sério o mar profundo, pede relatório europeu
Elaborado por um grupo de especialistas, incluindo duas cientistas portuguesas, documento identifica oito prioridades para a investigação do mar a profundidades superiores a 200 metros. Portugal é apontado como um dos países que mais sofrem com o desinvestimento nesta área da ciência devido à crise.
“É um documento sobre as implicações do crescimento da economia do mar, as oportunidades e as ameaças”, resume Marina Cunha, bióloga da Universidade de Aveiro, que está entre os 14 autores do relatório do EMB e é uma das organizadoras do simpósio internacional em Aveiro. “É um documento de cariz científico, mas que pretende dar apoio às decisões políticas sobre o mar profundo. Faz recomendações que podem ser usadas politicamente na gestão do mar profundo.”
O mar profundo é geralmente definido como as águas que estão para lá dos 200 metros de profundidade, onde a luz do Sol não chega e só alcançável para os seres humanos através de submersível e de outras tecnologias. Mas o mar profundo, ainda muito pouco conhecido, cobre 65% da superfície da Terra.
A chamada “economia azul” já está a explorar recursos a profundidades cada vez maiores, com mais de 40% das zonas de pesca em águas a mais de 200 metros, segundo um comunicado de imprensa do EMB sobre o relatório, que contou com a participação de outra portuguesa, Helena Vieira, da Universidade de Lisboa. A indústria do petróleo também está a fazer perfurações no mar a profundidades superiores a 7500 metros. E, no entanto, isto pode ser apenas o início de actividades emergentes, como a mineração do fundo do mar e a exploração de recursos biológicos”, diz o comunicado. Na União Europeia, a economia azul vale, segundo dados de 2012, cerca de 500.000 milhões de euros por ano de valor acrescentado bruto (o valor bruto da produção deduzido do custo das matérias-primas e de outros consumos no processo produtivo).
Por isso, em Janeiro de 2014, o EMB, que tem entre os seus membros 36 organizações de 19 países, criou um grupo de trabalho, que incluiu desde especialistas em ciências naturais até em áreas socioeconómicas e juristas, para olhar para a última fronteira do planeta. Ao fim de mais de um ano e meio de trabalhos, ouvindo a comunidade científica, responsáveis políticos e dos sectores do gás, do petróleo, das energias renováveis, da biotecnologia ou das pescas, o resultado é o relatório aqui divulgado a partir de 1 de Setembro – na versão em inglês, Delving Deeper: Critical Challenges for 21st Century Deep-Sea Research –, no qual se analisam as oportunidades actuais e futuras e se identificam prioridades em termos de investigação, para lidar com questões ambientais, sociais e de gestão política do mar profundo.
Mais investigação, mais conhecimento
Apontam-se assim oito grandes prioridades para as investigações científicas futuras do “espaço interior” da Terra, a saber: aumentar o conhecimento fundamental; avaliar factores de mudança, pressões e impactos; promover a investigação multidisciplinar para lidar com desafios complexos; criar mecanismos de financiamento inovadores para colmatar as falhas de conhecimento; promover tecnologias e infra-estruturas avançadas para observação e investigação; estimular as capacidades humanas de investigação do mar, apostando nos recursos humanos; promover a transparência, o acesso de dados e uma gestão adequada dos recursos do mar profundo; e por fim promover a literacia para inspirar e educar a sociedade sobre o valor dos ecossistemas, dos bens e dos serviços do mar profundo.
“Tomados como um todo coerente, estes objectivos e áreas de acção podem formar a base de sustentação do desenvolvimento de actividades no mar profundo e apoiar o ‘crescimento azul’ na Europa”, lê-se no sumário do relatório, que recorda as prioridades da Estratégia para o Crescimento Azul, lançada pela União Europeia em 2012, e que até 2020 ambiciona criar 1,6 milhões de novos empregos ligados à economia do mar. “Numa perspectiva política, a mineração do fundo do mar e a biotecnologia azul são duas das cinco áreas prioritárias identificadas para receberem apoio e serem desenvolvidas ao abrigo da Estratégia para o Crescimento Azul (as outras são a aquacultura, as energias renováveis e o turismo costeiro).”
Até agora, não há qualquer aproveitamento industrial do minério do mar profundo e as actividades em curso estão ligadas à descoberta e prospecção, uma realidade industrial que, no entanto, pode já não estar muito longe. “É provável que a primeira mina para aproveitamento dos sulfuretos maciços polimetálicos, dentro da zona económica exclusiva da Papuásia-Nova Guiné, comece a operar em 2018”, refere o relatório. E em águas internacionais, no mar de todos, para lá das jurisdições nacionais, a Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos já atribuiu vários contratos exploratórios com vista a uma eventual mineração, a maior parte no Pacífico (16 contratos) e no Índico (três contratos).
“Claramente, é necessária mais investigação para que as decisões relativas às actividades humanas se baseiem em dados [científicos], garantindo assim que os impactos ambientais sejam minimizados e o ambiente e a sua biodiversidade protegidos”, sublinha o sumário do relatório. “Uma recomendação-chave do relatório é a de que há graves deficiências de conhecimento básico, que podem prejudicar o desenvolvimento sustentável e a gestão dos ecossistemas do mar profundo”, acrescenta-se ainda. “Em particular, identificaram-se como problemáticas falhas na compreensão do sistema do oceano profundo, que é complexo, incluindo a sua biodiversidade e a sua variação espacial e temporal, a ecologia, biologia, física e química. Também é necessário fazer grandes progressos no mapeamento e na observação do mar profundo e compreender os impactos humanos nos ecossistemas do mar profundo.”
Os efeitos da actual crise não ficaram de fora do relatório, dizendo-se que houve uma redução do dinheiro para a investigação dos oceanos. “Há provas de que a crise financeira global de 2007-2008 continua a ter impacto no financiamento da investigação do mar profundo, tanto directamente através de bolsas ganhas em concursos como indirectamente através das infra-estruturas que estão disponíveis.” Portugal não foi excepção, e o dinheiro para também foi menos, apesar de o mar ser constantemente usado como uma bandeira política: “Mas aqui o impacto foi consideravelmente pior, com uma queda catastrófica no total do financiamento anual e no número de projectos entre 2008 e 2013.”
O 14º Simpósio da Biologia do Mar Profundo, entre 31 de Agosto e 4 de Setembro, é já uma forma de se começarem a pôr em prática as recomendações do relatório Ir mais Fundo: Desafios Cruciais da Investigação do Mar Profundo no Século XXI. A mineração do fundo do mar é discutida em várias palestras. E a biodiversidade e os ecossistemas percorrem também inúmeras palestras. “Temos preocupações recentes com a conservação do mar profundo, principalmente por causa do princípio da corrida aos minerais e da pesca a profundidades cada vez maiores”, diz Marina Cunha. “Também não temos conhecimento suficiente sobre o mar profundo para perceber a influência das alterações climáticas nestes ecossistemas.”