Abandonados ao nascer: comissões de protecção abriram 17 processos

Os gémeos que nasceram a 9 de Agosto no Hospital de Vila Real e foram deixados pela mãe continuam à guarda do hospital. No Amadora-Sintra, os que são alvo de “rejeição” estão em média três meses à espera que os vão buscar. No Santa Maria, em Lisboa, há mais casos este ano.

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Daniel Rocha

Clinicamente estáveis, não correm risco, “estão a receber os cuidados de que precisam”, disse ao PÚBLICO, esta semana, a responsável pelas relações públicas da unidade de saúde, Catherine Pereira. “Estamos a seguir as orientações das diferentes entidades.”

O caso dos gémeos, que fez notícia nos jornais e televisões do país no arranque do mês, foi entregue à Comissão de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ) de Chaves, que já ouviu a mãe, entretanto localizada. O processo de promoção e protecção dos meninos está agora no Ministério Público, fez saber, por escrito, a CPCJ de Chaves. Às restantes questões do PÚBLICO não respondeu “de forma a garantir a segurança dos menores e seus familiares”.

Só no ano passado foram pelo menos 17 os processos abertos pelas CPCJ relativos a bebés abandonados à nascença ou nos primeiros seis meses de vida. Os dados foram facultados ao PÚBLICO pela Comissão Nacional de Protecção de Crianças e Jovens em Risco que, no seu relatório anual sobre a actividade das comissões de protecção, não desagrega por idade nem situação específica a informação relativa a “crianças abandonadas ou entregues a si próprias”.

Nesta categoria genérica —“crianças abandonadas ou entregues a si próprias” — cabem 585 processos instaurados pelas 308 CPCJ do país ao longo do ano passado, tal como noticiado em Junho. Tanto podem ser recém-nascidos, como crianças mais velhas sinalizadas por se encontrarem abandonadas permanentemente, como podem ser pré-adolescentes ou adolescentes deixados, temporariamente, sozinhos em casa, ou com irmãos menores, com fome ou falta de cuidados de higiene ou, ainda, crianças que são abandonadas durante tratamentos médicos (normalmente oriundas de outros países), faz saber a Comissão Nacional.

A pergunta que para a qual procurámos resposta, na sequência do caso de Vila Real, foi: quantas situações de abandono correspondem a bebés de tenra idade?

A resposta da Comissão Nacional foi esta: foram abertos, no ano passado, 17 processos relacionados com bebés abandonados à nascença ou com, no máximo, seis meses de vida. As CPCJ acompanharam ainda 20 outros processos envolvendo bebés abandonados antes dos seis meses, cujos processos tinham sido instaurados antes de 2014 e transitaram para aquele ano (ver infografia).

Há ainda um conjunto de situações que as CPCJ não distinguem — porque, por exemplo, não dispõem de informação na altura da abertura do processo. São os casos que entram na categoria “criança abandonada ou entregue a si própria sem categorização” (127 processos abertos em 2014). Eventualmente, podem estar aqui mais algumas situações de bebés, não foi possível apurar. Seja como for, “estamos sempre a falar de casos muitos preocupantes, porque são crianças que são expostas a uma situação de risco logo à nascença”, diz o presidente da CPCJ de Vila Real, João Fontes.

Do processo dos gémeos deixados no hospital da sua área João Fontes nada sabe. O processo foi entregue à CPCJ de Chaves, a área de residência da mãe dos meninos. Mas o presidente da CPCJ, que já tem lidado com outros processos de bebés deixados no hospital de Vila Real, nota: “Há casos de abandonos porque as mães entram em depressão pós-parto, outros em que estão em causa questões sociais muito complexas. Cada caso é um caso e não podemos fazer generalizações.” Alguns bebés acabam por ser encaminhados para adopção, outros não.

Mais casos em Santa Maria
“Às vezes dizem que querem dar os filhos para adopção ainda antes de terem os filhos”, diz Maria do Céu Machado, directora do Departamento de Pediatria do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, onde, nos últimos anos, têm sido registados “um, dois casos por ano de abandono”.

Dá conta, contudo, de um dado intrigante: “Este ano já vamos em quatro ou cinco.” A ex-alta comissária da Saúde diz que estão relacionados, sobretudo, “com as condições sócio-económicas” das famílias. Mas não se alonga na análise: nos anos anteriores a tendência não tem sido para aumentar, este ano sai, por isso, fora da regra.

A sua experiência diz-lhe isto: “Há mulheres que sentem que não têm condições económicas adequadas para receber o bebé, há mulheres que não têm condições psicológicas, há mulheres que engravidam de homens que já têm uma vida familiar constituída, há muitas situações e não podemos, à partida, julgar. Há muitas situações que para as pessoas são psicologicamente insuportáveis.”

Há ainda, faz questão de sublinhar Maria do Céu Machado, um conjunto de outros casos em que a equipa médica recusa dar alta aos recém-nascidos, por acreditar que as famílias não têm condições para os receber em casa, mas esses não entram na categoria dos abandonos. Para lidar com eles, diz, o hospital tem acordo com instituições, como o Banco do Bebé ou a Passo a Passo, que procuram dar condições às famílias.

Noutros grandes hospitais do país não há memória de casos recentes de abandono de crianças — foi a informação prestada ao PUBLICO pelo Centro Hospitalar de Lisboa Central (que integra a Maternidade Alfredo da Costa) e pelo Centro Materno Infantil do Norte.

Luís Villas-Boas, director do Refúgio Aboim Ascensão, em Faro, o primeiro Centro de Acolhimento Temporário de Emergência criado no país, explica que este tipo de abandono — crianças literalmente deixadas para trás nos hospitais ou na rua — tem de facto diminuído. Mas nota que outras formas de abandono não são menos graves. E indigna-se com a falta de respostas que persistem: “Não há um sistema nacional de emergência infantil. Instituições com equipas técnicas especializadas, que recebam os bebés e rapidamente iniciem o estudo da família, seja para o rápido regresso à família de origem, seja para o rápido encaminhamento para a adopção”.

Resultado: ficam muito mais tempo do que seria desejável nos hospitais —“E um bebé num hospital não tem actividade lúdica de espécie alguma, não tem estimulação dual, não tem colo. Alguns entram em depressão, desenvolvem a chamada depressão anaclítica, que tem sintomas físicos, até, como a não emergência do sorriso.”

As “rejeições” do Amadora-Sintra
O Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca — mais conhecido por Amadora-Sintra — faz saber que não tem registo de “abandonos”, “mas sim de rejeições”. Ou seja, “mulheres que, tendo os seus filhos no hospital, optam por dá-los para adopção”, explica Paulo Barbosa, do serviço de imprensa, em resposta por escrito, depois de consultar os Serviços Sociais.

Sete recém-nascidos foram alvo de “rejeição” em 2012, seis em 2013 e dois em 2014. São sobretudo filhos de mulheres “com muitos filhos, jovens e sem relação com o pai da criança”.

Quando acontece, prossegue, há “uma participação ao Tribunal de Família e Menores e a confirmação da vontade da mãe de doar o bebé para adopção”.

De resto, manda a lei que nos casos em que os pais abandonam permanentemente as crianças, cabe ao Ministério Público garantir que elas possam ter uma nova família, com novos pais.

Em média, no Amadora-Sintra, os bebés que são alvo da “rejeição” das mães permanecem três meses, diz o responsável pela comunicação do Amadora-Sintra, “até que um centro de acolhimento idóneo, nomeado pelo tribunal, os venha buscar”. Que riscos para estes bebés que passam tanto tempo entre enfermeiros e médicos? “O tribunal considera o hospital idóneo e protector. É evidente que as crianças ficam sujeitas a infecções [hospitalares] e o desejável seria saírem para uma instituição assim que estivessem aptas para ter alta. Mas as instituições não têm capacidade de resposta.”

Maria do Céu Machado também não esconde os riscos. “Em Santa Maria conseguimos dar resposta e arranjar rapidamente instituições de acolhimento. O risco psicológico e físico é sempre maior no hospital. Há riscos de doenças e, num quadro de um grande hospital, não se consegue acarinhar e dar afectos de forma tão próxima como numa instituição.”

Luís Villas-Boas diz que não havendo problemas de saúde, o que é suposto é que o bebé fique no hospital 3, 4 dias. Tudo o resto é demasiado — “Mas como encaminhá-los para outros locais” se faltam vagas? Recorda que em 2012 foi nomeado um grupo de trabalho, que ele próprio dirigiu, que tinha como missão apresentar um relatório com recomendações para melhorar o sistema de protecção de crianças. E que em Junho de 2013, uma resolução do Conselho de Ministros dava conta das recomendações do grupo, nomeadamente a importância de um Sistema Nacional de Emergência Infantil e da intervenção precoce. “Não se cumpriu. Nada.” E remata: “Está de rastos o direito das crianças em Portugal.”

Outros dados:
Em 2014 as CPCJ acompanharam 73.019 processos de crianças (entre novos e transitados de anos anteriores). A “exposição a comportamentos que possam comprometer o bem-estar e desenvolvimento da criança” representa a maior fatia das situações de perigo (26,2%). Segue-se a negligência (23,2%). Os casos em que a criança é sinalizada por estar “abandonada ou entregue a si própria” representam apenas 1,9% do total.

Olhando para esta última categoria: a maior parte das situações (52%) dizem respeito à ausência da família — temporariamente ou permanente. Por exemplo, as crianças ficam em casa, sós, ou com irmãos menores, por períodos de tempo prolongados. O abandono literal (de bebés ou mais crescidos) representa pouco menos que 7,5% dos casos.

Em 2014 foram abertos 585 novos processos por “abandono/criança entregue a i própria”, contra 1150 em 2013, e próximo dos 580 de 2012. O grupo etário dos 0-5 anos é o segundo mais representado entre as situações de “abandono/entregue a si próprio” sinalizadas pela primeira vez em 2014, a seguir ao dos 15-18 anos (31%).

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