"Palmira é um cenário perfeito para intimidar o mundo"
O autodesignado Estado Islâmico terá feito explodir um dos principais edifícios de Palmira. Esta cidade antiga da Síria é um “cenário perfeito” para a sua máquina de propaganda.
Depois de na passada terça-feira ter decapitado o antigo director das ruínas de Palmira, Khaled al-Asaad, um arqueólogos sírio de 81 anos ligado ao regime de Bashar al-Assad, o autodesignado Estado Islâmico terá destruído este domingo o templo de Baal-Shamin, a 500 metros do anfiteatro da cidade, palco que os extremistas escolheram para muitas das execuções públicas que têm vindo a fazer – e a filmar – desde que tomaram a região, em meados de Maio. Mas os dois acontecimentos, alerta Amr Al Azm, arqueólogo e membro da oposição síria no exílio, não devem ser vistos no mesmo plano.
A morte “brutal” daquele que foi durante 40 anos o guardião de Palmira – capturado um mês antes, alegadamente sujeito a tortura para que revelasse onde foram escondidos os tesouros da cidade, Khaled al-Asaad foi decapitado na praça frente ao museu que dirigiu e o seu corpo pendurado numa coluna romana – é “uma execução de rotina de um apoiante de Bashar al-Assad”, ao passo que a destruição do templo de Baal-Shamin, “um dos mais bem estudados da cidade”, é “claramente uma acção de propaganda que resulta de muita ponderação e planeamento”, disse Al Azm ao PÚBLICO, numa breve entrevista telefónica ao início da tarde.
A destruição do templo, divulgada às agências internacionais pelo director do departamento de Antiguidades da Síria, Maamoun Abdulkarim, foi já confirmada pelo Observatório Sírio dos Direitos Humanos, organização com sede em Londres e opositora ao governo de Assad.
Muitas vezes apresentado como o segundo templo mais importante da cidade – o primeiro é o de Bel – Baal-Shamin terá caído por terra quando os extremistas do EI detonaram os explosivos que tinha no interior. Apesar de ocupar apenas uma pequena parcela da área que terá tido no seu apogeu, no século II, o edifício era uma “espécie de pequena jóia no esplendor de Palmira”, garante Sylvie Blétry, professora da Universidade de Montpellier que dirigiu missões arqueológicas na região e que estudou muito a iconografia desta cidade que é pela primeira vez referida em fontes escritas no segundo milénio a.C. e que se torna uma das mais importantes da Antiguidade sob domínio romano (a partir de meados do século I).
A relevância de um templo, lembra esta especialista francesa, está directamente relacionada com a importância da divindade que honra, e Baal-Shamin era o “chefe do panteão do Oeste da Síria”, um deus ligado aos astros, à chuva e à fertilidade. O edifício, explica Blétry fazendo um intervalo nas escavações em que está a participar na Palestina, está muito bem documentado do ponto de vista científico, graças ao trabalho dos arqueólogos suíços. Sabe-se até o nome do rico mecenas que o mandou construir – foi o mesmo que custeou a estadia do imperador Adriano na cidade no inverno de 129-130 –, membro de uma das famílias mais influentes da velha cidade. “Era um cenário arquitectónico excepcional e o seu estado de conservação era também extraordinário”, diz a arqueóloga. “Este templo era um exemplo único da mistura de culturas presente em Palmira porque tinha certas características da arquitectura típica local e da arquitectura clássica.”
Béltry não quer acreditar que esteja nos planos do autoproclamado Estado Islâmico destruir Palmira, mas não afasta essa possibilidade porque, pergunta, “quem pode prever o que farão a seguir os extremistas?”.
Escudo contra ataques
Amr Al Azm faz uma análise mais pragmática. Diz o professor de História do Médio Oriente e Antropologia da Shawnee State University, no Ohio, que o EI está longe de ser composto por “bárbaros incultos” que desconhecem o valor do património que têm nas mãos. Tratam, aliás, esta herança cultural como um recurso que pode ser muito rentável a vários níveis, e fazem-no de forma “ponderada”: “O EI tem saqueado o que pode vender e destruído o que não pode para efeitos de propaganda. Foi assim nas cidades históricas do Iraque [Hatra e Nimrud]. E a sua propaganda funciona em dois sentidos – por um lado mostram poder perante os seus opositores no terreno e, por outro, dizem à comunidade internacional que não vai conseguir detê-los por mais que se esforce. Em Palmira já não há estátuas de divindades para destruírem [tudo isso foi tirado e escondido em lugar seguro, provavelmente nas imediações de Damasco, a capital], mas a cidade tem outra grande utilidade que, espero, venha a protegê-la – é um lugar a salvo de ataques aéreos. Dificilmente o exército de Assad se atreverá a bombardear uma cidade património mundial [foi classificada pela UNESCO em 1980].”
Este arqueólogo que chegou a dirigir os laboratórios de conservação do Departamento Geral de Antiguidades e Museus da Síria não sabe porque escolheram os extremistas dinamitar o templo de Baal-Shamin, mas vê a sua destruição como um aviso, estando à espera “a qualquer momento”, de mais um vídeo do EI com as devidas “explicações”. “É mais uma demonstração de poder e impunidade de alguém que tem nas mãos um dos sítios arqueológicos mais importantes do Médio Oriente. Palmira é um cenário perfeito para intimidar o mundo. Quando se quer mandar um aviso, não se destrói a jóia da coroa, destrói-se o que há de mais próximo.” Destruíram o templo de Baal-Shamin, mas deixaram o de Bel de pé. Pelo menos para já.
Para Sylvie Blétry, Palmira é simplesmente o “mais belo sítio sírio para o estudo do período romano”, “testemunho de uma cultura completamente original, verdadeiramente única”. E qualquer ataque contra ela representa uma “perda inestimável”.
Três meses de ocupação
Ao chegarem em meados de Maio, os combatentes do autodesignado Estado Islâmico começaram a usar o museu como tribunal e prisão. Pouco depois armadilharam toda a cidade, como se fosse preciso sublinhar o que pode significar para Palmira estar sob o seu controle. Já em Julho, antecipando o cenário dos últimos dias, destruíram vários bustos fúnebres e o Leão de Al-lat, uma escultura em pedra com três metros de altura que se tornou um dos símbolos daquele sítio arqueológico.
As estátuas que horam as divindades adoradas nos territórios da Síria e do Iraque antes da chegada do islão são consideradas blasfemas pelos extremistas, que as têm destruído à medida que avançam. Mas, note-se, são destruídas apenas as que estão integradas nos edifícios – em relevos e frisos, por exemplo – ou cuja dimensão (e peso) torna muitíssimo difícil o seu transporte. Sempre que o património móvel pode viajar sem dificuldades de maior é confiscado para, depois de vendido graças a poderosas redes internacionais de tráfico de antiguidades, com negociantes de peso em países como Inglaterra e a Suíça que não perguntam de onde vem o que lhes é dado comprar, financiar a jihad.
Segundo as Nações Unidas, desde que o conflito na Síria começou, há quatro anos, foram já destruídos e pilhados mais de 300 sítios arqueológicos, aos quais é preciso juntar os do território iraquiano. Este ano, os extremistas já destruíram parte de Nimrud e Hatra (actual Iraque), importantes centros da antiga Mesopotâmia, região banhada pelos rios Tigre e Eufrates onde há mais de cinco mil anos nasceram a escrita e as cidades.