Carvão: O Reino Unido despede-se da revolução industrial

Encerramento das três últimas minas de carvão marca o fim de um sector que moldou a sociedade britânica. A amarga disputa que opôs sindicatos de mineiros a Margaret Thatcher constitui um capítulo central no declínio da indústria.

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Peter Andrews/Reuters

O secretário-geral do Sindicato Nacional dos Mineiros (NUM, na sigla inglesa), Chris Kitchen, chamou-lhe “o fim de um modo de vida”. Mas é mais do que isso, é o fim de uma era que começou com o arranque da revolução industrial no século XVIII e moldou profundamente a sociedade britânica.

Com 36 anos, Lee Saunders exerceu todo o tipo de funções em Hatfield, onde também trabalharam até ao encerramento o pai e o irmão. Ao The Yorkshire Post, o mineiro conta que a principal dificuldade vai ser encontrar um novo emprego. Com funções “altamente especializadas” e muito específicas, dificilmente os desempregados das três minas vão arranjar algum ramo da indústria que consiga “tirar partido” dessas qualificações, prevê.

Em pior situação estão os mais velhos, cuja esperança de reintrodução no mercado de trabalho é reduzida. Aos 59, Keith Franks desconfia que não irá conseguir encontrar um novo emprego a tempo inteiro. Ao mesmo jornal local, o mineiro que começou a actividade em 1973 diz que, tendo assistido ao declínio da indústria, “não consegue deixar de sentir que poderia ter havido uma alternativa”.

A notícia já tinha chegado em 2014, ano do 30º aniversário da greve dos mineiros de 84/85, mas as minas começaram a suspender a actividade mais cedo que o previsto. O motivo? O carvão importado mais barato e a aposta em fontes energéticas mais verdes são elementos que contribuem para uma explicação.

A 29 de Junho, Hatfield anunciou que iria deixar de laborar por não conseguir escoar o carvão que produzia. Com quase 100 anos, a mina, propriedade de um fundo detido pelos próprios funcionários, deixou de ter quem comprasse a sua matéria-prima, deixando 436 trabalhadores no desemprego.

Também a UK Coal, a empresa que detém as duas outras minas, enfrenta os mesmos obstáculos. Na década de 60, Thoresby era uma das 46 minas de carvão de Nottinghamshire. Dez dias depois de Hatfield ter fechado, Thoresby, que empregava 585 trabalhadores, seguiu-lhe o exemplo.

Ascensão e guerra perdida

Para entender o papel estruturante das minas de carvão na história do Reino Unido é preciso recuar a uma era pré-industrial. O carvão ocupa um lugar tão determinante no desenvolvimento tecnológico que que o historiador britânico Eric Hobsbawm lhe reserva o epíteto de catalisador da revolução industrial.

Com o carvão como principal combustível doméstico, o grande desenvolvimento das cidades a partir do século XVI levou a um aumento na sua procura e produção. Como consequência, as minas expandiram-se e, dois séculos depois, “era uma indústria moderna em embrião, que chegou a empregar as primeiras máquinas a vapor para a operação de bombagem”, escreve Hobsbawm no livro A Era das Revoluções (Editorial Presença). “As minas exigiam não só máquinas a vapor em grandes quantidades e de grande potência, como também meios eficientes de transporte de enormes quantidades de carvão, das minas para o porto de embarque. O caminho-de-ferro era uma resposta óbvia”.

Em 1800 a Grã-Bretanha era responsável por 90% da produção de carvão, o que significa que “era suficientemente grande para estimular a invenção que iria transformar as indústrias de bens de capital: os caminhos-de-ferro”, explica o historiador. “Tecnologicamente, os caminhos-de-ferro são os filhos das minas, nomeadamente das minas de carvão do norte de Inglaterra”, escreve. Já a revista The Economist, numa reportagem sobre o fecho de Hatfield, apontava o carvão como pilar fundador da economia moderna britânica. 

Pouco antes da Primeira Guerra Mundial, o sector atingiu o auge. Chegaram a trabalhar nele mais de um milhão de homens e crianças, tendo mais tarde entrado em declínio com a procura de outras fórmulas energéticas. 

O ponto de não retorno deu-se na década de 1980, quando a greve dos mineiros contra o fecho de 20 minas do Estado saiu derrotada. A então primeira-ministra, Margaret Thatcher, fez disso ponto de honra e os festejos dos mineiros na data sua morte em 2013, quase três décadas depois da greve, ilustram as cicatrizes deixadas pela contenda.

O objectivo da primeira-ministra era fechar as minas que não davam lucros e, no desenrolar do processo, acabar com a influência dos sindicatos. Desde que subiu ao poder em 1979, Margaret Thatcher estava bem ciente da preponderância do National Union of Mineworkers nas decisões políticas. Duas greves dos sindicatos dos mineiros em 1972 e 74 contribuíram para acabar com o governo conservador de Edward Heath e Thatcher queria certificar-se que tal não voltaria a acontecer.

Em Março de 1984, a autoridade estatal que geria a mineração de carvão, o NCB (sigla inglesa para National Coal Board), anunciou que iria fechar 20 poços de carvão que não geravam lucro (mais tarde veio a saber-se que a verdadeira intenção era fechar perto de 75), o que significaria a perda de 20 mil postos de trabalho. A greve para evitar o encerramento foi então decretada e envolveu mais de 120 mil trabalhadores. Durante um ano, entre cargas policiais sobre os piquetes e ferozes campanhas nos media, aquela que ficou conhecida como uma das mais amargas disputas na história industrial britânica prosseguiu, tendo terminado em Março de 1985.

Um delegado sindical nos anos 1980, explicava em 2014 à revista New Statesman o motivo para o fim da greve: “Os homens voltaram ao trabalho não porque tenham deixado de acreditar naquilo pelo qual estavam a lutar. Hipotecas estavam a ser executadas, casamentos estavam a acabar e não havia fim à vista”. O dirigente recordou que já não estavam “a fazer piquete para impedir a circulação de carvão ou aço”, mas a “pessoas que tinham feito piquete connosco durante um ano”. O protesto terminou sem que o fecho das minas fosse suspenso.

Para que se tenha ideia da tensão entre governo e mineiros, documentos desclassificados em 2014 mostram que Margaret Thachter esteve prestes a chamar o exército para intervir na greve, durante o Verão de 1984. O objectivo era proteger os mineiros que quisessem trabalhar, para que estes ajudassem a movimentar o carvão. Quando Thatcher morreu, em 2013, o New York Times foi falar com os antigos mineiros que se viram sem emprego depois da onda de encerramentos e privatizações das minas levada a cabo pela primeira-ministra britânica. Neil Wale, 49 anos, antigo mineiro, dava então voz a um ressentimento que se pode estender a toda uma classe profissional: “A senhora Thatcher? Devia apodrecer no inferno pelo que nos fez.” 

Mais contido, mas igualmente atormentado, um velho mineiro que não quis ser identificado recordava o papel da governante na fractura da sociedade britânica. “Apenas não mencione o nome dessa senhora. Ela pôs as pessoas umas contra as outras, dividiu famílias e os efeitos continuam a fazer-se sentir hoje. Ainda há pessoas que não se falam, que passam a estrada em vez de terem que se deparar com alguém com quem trabalharam durante trinta anos”, lamentava.

Mais tarde, nas suas memórias, a primeira-ministra escreveu que “de 1972 a 1985, o senso comum dizia que o Reino Unido podia apenas ser governado sob o consenso dos sindicatos”. O declínio da indústria de carvão foi acompanhado pela queda da influência do NUM. Quando Thatcher chegou ao poder, em 1979, o Reino Unido produzia 122 milhões de toneladas de carvão a partir de 219 minas. No ano da sua morte, a produção doméstica ficou-se por 13 milhões de toneladas, a mais baixa desde que há registo, e havia nove minas ainda a funcionar que empregavam quatro mil trabalhadores.

Quando Thatcher se instalou em Downing Street havia 242 mil trabalhadores na indústria de mineração do carvão. Quando deixou o cargo, 11 anos mais tarde, sobravam 49 mil. No final deste ano não restará nenhum.

As últimas três

Desta vez a história será diferente. Nos anos 80, com a sucessão de encerramentos, regiões inteiras no País de Gales e no Norte de Inglaterra viram-se atravessadas por desemprego em massa, que com ele trouxe variados problemas sociais.
Em 2015, no conjunto, Kellingley, Thoresby e Hatfield empregavam pouco mais de 1700 trabalhadores, pelo que o impacto será residual. Se o efeito económico e social é pouco significante, por razões históricas, o simbolismo é enorme.

Mas para além do simbolismo histórico, isto significa que o Reino Unido fica dependente do exterior em termos de abastecimento, embora mantenha algumas (poucas) explorações de carvão a céu aberto.

O ano de 2002 foi o primeiro em que o Reino Unido comprou mais carvão no estrangeiro do que aquele que produziu, tendo a importação ganhado peso no prato da balança comercial em detrimento da produção nacional desde então. Em 2013, a produção doméstica de carvão fixou-se em 13 milhões de toneladas, contra 49 de milhões de carvão importado (79%). Nesse ano, os principais mercados de abastecimento foram Rússia (20 milhões de toneladas), Estados Unidos (12 milhões) e Colômbia (11 milhões). Os baixos salários e a maior aposta no gás de xisto nos EUA ajudam a explicar que o carvão destes países seja 25% mais barato que o britânico.

Apesar dos subsídios para a aposta em energias renováveis providenciados pela União Europeia, o carvão tem vindo a assumir relevância na produção energética do continente nos últimos anos e o baixo preço no mercado global faz com que seja um combustível apetecível. O Reino Unido não é excepção. Tanto que este combustível representou cerca de 40% das fontes de produção de energia eléctrica em 2013.

Naquilo que parece um paradoxo, a UK Coal (empresa que tomou conta de grande parte das minas na vaga de privatizações de 1994, assumindo o papel que era do NCB) disse à Reuters que apenas 4% da energia do Reino Unido foi gerada por carvão que a companhia vende.

A Drax, a maior central de produção eléctrica a partir de carvão da Europa, pode servir como exemplo para tentar compreender o funcionamento deste mercado: a mina de Kellingley fica a menos de 20 quilómetros da Drax e tem uma linha de comboio directa que faz o transporte do combustível, mas fica mais barato à central ir comprar carvão à Sibéria.

Em 2014, um administrador da mesma empresa explicava ao Wall Street Journal que “o preço internacional do carvão historicamente baixo e uma libra forte significam que os custos são demasiado altos para sustentar o negócio corrente e esta [o fecho] é a única opção válida”. No entanto, o preço está sujeito a uma conjuntura volátil. As tensões diplomáticas com Moscovo podem ditar o corte de abastecimento e, mesmo que sejam encontradas alternativas, o preço da matéria-prima sofreria um aumento. 

Para além dos responsáveis do sector, a volatilidade dos preços nos mercados internacionais preocupa alguns dirigentes políticos, nomeadamente do Partido Trabalhista, do qual o NUM sempre foi próximo.

Já em Agosto, um dos candidatos à liderança do Labour, Jeremy Corbyn, falou na possibilidade de reabrir algumas minas. Até agora foi o único a fazê-lo. Em declarações à BBC, Corbyn disse que, caso chegue ao poder, irá procurar renacionalizar partes do sector energético e reabrir minas de carvão “onde for possível”, desde que seja desenvolvida tecnologia de combustão capaz de produzir menos dióxido de carbono.

Elaborada pelo executivo conservador de David Cameron, uma lei mais restritiva em relação às emissões de carbono entrou em vigor em Abril, com vista a desencorajar a utilização de combustíveis fósseis na cadeia de produção energética, mas o impacto da medida está ainda por avaliar.

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