Guiné tem um novo primeiro-ministro e a instabilidade do costume

Presidente da Guiné-Bissau deu posse a Baciro Djá como chefe de Governo, numa tentativa de solução rápida para uma crise que ninguém sabe como vai acabar. Militares continuam à margem.

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Baciro Djá foi ministro da Presidência do Conselho de Ministros. Demitiu-se por divergências com Domingos Simões Pereira, a quem acaba por suceder no cargo de primeiro-ministro AFP PHOTO / SIA KAMBOU

A decisão do Presidente, anunciada a 12 de Agosto, criou uma situação peculiar na Guiné-Bissau: o chefe de Estado, o primeiro-ministro demitido e o recém-empossado chefe de governo, Baciro Djá, são todos do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), que está em maioria no Parlamento, mas a queda do executivo até agora liderado por Domingos Simões Pereira é condenada pela generalidade do partido — um dos membros do comité central, Fernando Saldanha, disse à agência AFP que está em curso um “golpe de Estado constitucional” e que “nem o partido, nem o povo da Guiné-Bissau aceitarão a nomeação de Baciro Djá”.

Mas o facto é que Baciro Djá assumiu oficialmente a função de primeiro-ministro nesta sexta-feira, numa cerimónia em que o Presidente da República afirmou que “foram cumpridas todas as formalidades constitucionalmente prescritas”, numa resposta aos que o acusam de ter passado por cima da Constituição. José Mário Vaz disse que a sua decisão foi tomada após “a análise dos resultados eleitorais, bem como a audição das forças políticas representadas na Assembleia Nacional Popular”.

No discurso proferido na cerimónia de tomada de posse, o Presidente guineense confirmou a incompatibilidade com o anterior primeiro-ministro, pouco mais de um ano depois de ambos terem chegado ao poder nas primeiras eleições após o golpe militar de Abril de 2012, que derrubou o governo de Carlos Gomes Júnior.

“Quando há pouco mais de um ano dei posse ao primeiro-ministro do governo anterior, não contava que a evolução dos acontecimentos nos obrigaria a nomear, hoje, um novo chefe de Governo. Mas a dinâmica da condução dos assuntos do Estado impõe a tomada de decisões, nem sempre agradáveis, em nome dos mais sagrados interesses e aspirações legítimos do nosso povo”, disse José Mário Vaz, numa declaração que é também um reconhecimento do desagrado com que a sua decisão foi recebida em vários sectores da sociedade guineense.

Mensagem para fora
Para o Presidente, o afastamento de Domingos Simões Pereira não constitui nenhum problema constitucional, já que o novo primeiro-ministro pertence ao PAIGC, partido que venceu as legislativas no ano passado. Na cerimónia de tomada de posse, José Mário Vaz fez também uma referência indirecta ao que o separava do rumo político do anterior governo, sublinhando que Baciro Djá foi director nacional da campanha eleitoral do PAIGC: “Portanto, o dr. Baciro Djá, que percorreu o país de lés-a-lés durante essa campanha, é um conhecedor profundo das promessas eleitorais do partido e do seu então candidato presidencial.”

O novo primeiro-ministro prometeu promover “um diálogo franco, honesto e sincero para busca de soluções, concertadas e duradouras, para a Guiné-Bissau, quer para ultrapassar a crise em curso, assim como para a governação do país”.

José Mário Vaz e Baciro Djá deixaram também uma mensagem para fora do país, em particular para os Estados que prometeram ajudar a Guiné-Bissau com cerca de mil milhões de euros numa conferência internacional de doadores que decorreu há apenas cinco meses, em Bruxelas — Portugal foi um dos participantes e comprometeu-se com um programa de cooperação no valor de 40 milhões de euros.

Os agradecimentos à comunidade internacional por “todo o apoio que tem prestado ao país” tem como objectivo assegurar o resto do mundo que a Guiné-Bissau não corre o risco de resvalar novamente para um período de grave convulsão política, mas a realidade tem-se encarregado de pôr reticências às garantias do Presidente e do novo primeiro-ministro.

Em declarações ao PÚBLICO, o antigo Presidente de Timor Leste e ex-representante das Nações Unidas na Guiné-Bissau, José Ramos-Horta, disse que o país “resvala por um trilho perigoso”, e que a responsabilidade é de José Mário Vaz. “Tem que haver preços a serem pagos: a comunidade internacional não pode encarar esta situação de ânimo leve e dar seu aval, isto é, reconhecimento de facto, a um governo saído de uma arbitrariedade do Presidente da República”, disse Ramos-Horta.

Num depoimento enviado ao PÚBLICO por email, António Soares Lopes, perito do Programa de Apoio aos Actores Não Estatais, diz que está em curso um “golpe palaciano”, sendo evidente “a deriva em que entrou este país, que muitos acreditavam ter reencontrado o rumo certo, o caminho da recuperação económica e da concórdia nacional”.

“Adivinham-se dias difíceis. Fazendo uma leitura das posições manifestadas pela sociedade civil, sindicatos, partidos políticos, Assembleia Nacional Popular, pode-se concluir que se caminha a passos largos para uma desobediência civil e a consequente paralisação do país”, considera António Soares Lopes.

Discordância geral
Também o jornalista Sabino Santos, chefe de redacção do jornal Última Hora, diz que se percebe “de imediato que mais de 90% de guineenses são contra a posição do Presidente da República”. “Dos cerca de 40 partidos políticos existentes, apenas um, o Centro Democrático, de Impossa Ié, admitiu que o Presidente da República acertou. De resto, todas as movimentações estão a ser feitas com vista a alterar essa decisão”, disse ao PÚBLICO o jornalista, referindo-se em particular a uma acção judicial promovida por uma aliança liderada pelo ex-director da Liga Guineense dos Direitos Humanos, Luís Vaz Martins.

“O sentimento existente é que José Mário Vaz abusou dos poderes e tirou Domingos Simões Pereira. A aliança, para além de pretender fazer o Presidente da República recuar na decisão, prometeu lutar até que este seja destituído do poder, porque é uma ameaça à paz”, afirma Sabino Soares.

“O que mais joga contra o Presidente da República nessa nomeação é que, há dois meses, o demitido primeiro-ministro denunciou que Baciro Djá, enquanto ministro da Presidência do Conselho de Ministros, era a figura que armava intrigas entre o primeiro-ministro e o Presidente da República. Foi por isso que os militantes do partido o criticaram fortemente na reunião do comité central. Em virtude dessas críticas, apresentou o seu pedido de demissão a Domingos Simões Pereira alegando o relacionamento insanável entre eles. O PAIGC, por sua vez, suspendeu-o das funções de terceiro vice-presidente, e o facto de ter sido nomeado pelo Presidente da República sem que a suspensão fosse levantada também pesa, não obstante ele ter recorrido da suspensão”, explicou ao PÚBLICO o chefe de redacção do Última Hora.

No mesmo sentido, o director do jornal O Democrata, António Nhaga, disse ao PÚBLICO que o PAIGC "está dividido e silenciosamente em guerra entre as duas facções; a facção que está no governo e a facção que está na Presidência".

"Felizmente nenhuma destas facções partidárias, em guerra, consegue ter em sua posse o chefe o Estado-maior ou um grupo de militares, como acontecia no passado. Se assim fosse, o país viveria agora outra vez num golpe estado militar", considera Nhaga.

Para o jornalista, o que está a contecer na Guiné-Bissau é "uma espécie de um campeonato político entre as duas facções", que "pretendem mergulhar o país numa crise profunda em defesa dos seus interesses pessoais".

"Entre as duas facções partidárias circula muito dinheiro para a conquista do título deste campeonato político que está a inquietar  toda comunidade guineense espalhada pelo mundo fora", afirma o director do jornal O Democrata.

Para o professor Fodé Abulai Mané, da Faculdade de Direito de Bissau, a actual crise política deve-se à “pretensão do Presidente da República de instaurar um regímen presidencialista”, mas considera que o risco de um novo golpe militar é reduzido. Com “o distanciamento das forças militares do conflito e a concentração da maioria esmagadora da população no lado contra [o Presidente], o risco de conflito violento, pelo menos neste momento, é reduzido. Mas existe alguma potencialidade de haver alguns conflitos, porque o próprio primeiro-ministro nomeado é conhecido pela utilização de argumentos tribais e religiosos nas suas acções políticas”, acusa o especialista num email enviado ao PÚBLICO.

Por agora, a principal dor de cabeça é perceber como vão as instituições, a sociedade civil e a comunidade internacional reagir a um novo governo que terá “poucas chances de chegar ao fim do seu mandato e seria, por isso, necessariamente transitório”, disse ao PÚBLICO o sociólogo e investigador Miguel de Barros, numa referência à falta de apoio tanto no PAIGC como nos restantes partidos com assento parlamentar, que aprovaram duas moções de confiança ao anterior primeiro-ministro, e ambas por unanimidade. Com Joana Gorjão Henriques

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