Numa praia do Funchal pode-se nadar num mar que não se vê
Capital madeirense tem a única praia do país adaptada para invisuais. A ideia era tornar a Praia Formosa acessível a pessoas com dificuldades de locomoção, mas o projecto de um cidadão foi alargado pela câmara aos deficientes visuais.
A ideia foi posta em prática na Praia Formosa, a maior da cidade, e consiste na colocação na água de uma linha de bóias equipadas com sensores, que informam, através de sinais sonoros, os utentes sobre a profundidade do mar, indicando também a distância da praia e a direcção da mesma.
Toda essa informação é transmitida para uma bracelete usada pelos banhistas invisuais, que têm, a qualquer momento, a possibilidade de pedir ajuda aos nadadores-salvadores através de um botão SOS.
A ideia de criar uma praia adaptada chegou à Câmara do Funchal através do orçamento participativo. O projecto vencedor foi uma praia adaptada para pessoas com dificuldades de locomoção, mas a autarquia quis ir mais além e alargou a ideia aos invisuais e às pessoas que, não sendo cegas, tenham dificuldades de visão.
“Quisemos ir mais longe, porque consideramos que fazia todo o sentido o Funchal, que é uma cidade de praia e turística, ter esta oferta”, explicou ao PÚBLICO o vereador Domingos Rodrigues, responsável pela execução dos projectos saídos do orçamento participativo. “Somos uma cidade muito procurada por turismo sénior, e por isso esta praia não é apenas para os funchalenses mas também para os turistas que nos visitam”, acrescentou o responsável municipal, dizendo que o sistema respeita todas as normas e exigências nacionais e internacionais.
Com pouca ou nenhuma legislação nacional sobre esta matéria – a que existe é pouco exigente –, a Câmara do Funchal adaptou o modelo francês para este tipo de praias, um dos mais avançados do mundo, para concretizar o projecto.
“Cumprimos todos os critérios do nível 4 [o mais elevado] do modelo francês”, adianta Domingos Rodrigues, dizendo que “não é vergonha nenhuma” copiar os melhores. “Se o modelo existe e é bom, é melhor não inventar e aproveitar o que já foi testado com sucesso.”
Na Praia Formosa, foi construída uma zona de sombreamento, colocado um passadiço em madeira para as cadeiras de rodas circularem até à zona adaptada, e os vestiários foram remodelados, bem como os duches e sanitários. A colocação de sinalética específica e a criação de zonas de estacionamento para pessoas portadoras de deficiência completam as infra-estruturas de apoio.
“Adquirimos três cadeiras de rodas especiais, duas que flutuam (para os que não sabem nadar) e outra que permite ao utilizador deixar a cadeira na água, nadar, e depois voltar à cadeira para regressar à praia.” Todas têm rodas que permitem circular com facilidade em qualquer tipo de terreno, incluindo areia, facilitando assim o acesso ao mar. “Fizemos tudo de forma a que as pessoas sejam o mais autónomas possível na praia.”
A ideia da autonomia, de permitir que as pessoas se desloquem na praia sem ajuda de outras, foi a trave mestra de todo o projecto. E a parte dedicada aos invisuais, que precisam de ajuda para entrar, nadar e sair da água, foi o ponto de honra dos promotores.
Utilização gratuita
O equipamento Audioplage adquirido, com tecnologia francesa, engloba as bóias sinalizadoras e as braceletes, e permite a utilização simultânea de cinco pessoas. “Este foi o primeiro passo, e sei que agora não podemos voltar atrás. É um direito das pessoas, e elas vão querer mais. Fico satisfeito com isso”, afirma Domingos Rodrigues, dizendo que o projecto é pioneiro em Portugal, e até na Europa, onde são poucos os países com estas infra-estruturas para invisuais.
“Fora de França, este sistema para invisuais só existe numa praia grega e num espaço balnear espanhol”, afirma o vereador, vincando que estes equipamentos são “obviamente” de utilização gratuita. “O objectivo foi, e é, proporcionar a todos um simples e prático acesso à praia.”
Tudo isto foi feito com pouco menos de 100 mil euros. O maior investimento foi feito nas cadeiras de rodas anfíbias e todo-o-terreno — cada uma custa três mil euros —, nas muletas que flutuam e no sistema Audioplage. “A maioria das infra-estruturas de apoio necessárias já existiam, só tivemos que efectuar algumas adaptações”, explica o vereador, frisando que o objectivo é que a praia funcione durante todo o ano.
“Os únicos condicionalismos são as condições do mar e a meteorologia, tal como de resto acontece para todas as pessoas”, ressalva o responsável pela operacionalização dos projectos do orçamento participativo. “Ninguém vai nadar com a bandeira vermelha, não é?”
Com um tecto de 500 mil euros, previa-se que o orçamento participativo apoiasse os cinco melhores projectos, mas acabaram por ser aceites seis. “Recebemos 44, alguns deles muito interessantes, e conseguimos aprovar seis”, sintetiza Domingos Rodrigues, explicando que todos eles encaixam no orçamento previsto.
Neste âmbito, e para além da praia adaptada, a Câmara do Funchal vai avançar, por exemplo, com um memorial para animais de companhia integrado num parque para cães, com um skate park, que ficou em segundo lugar nos projectos aprovados, e com equipamentos para carregamento de telemóveis na rua.
“Numa altura em que somos cada vez mais dependentes dos smartphones e dos tablets, e sendo nós uma cidade turística, é uma facilidade que temos o dever de oferecer a todos os que cá vivem e os que nos visitam”.
O orçamento participativo foi uma das bandeiras eleitorais da coligação Mudança, constituída pelo PS, Bloco de Esquerda, PND, MPT, PTP e PAN, que conquistou em 2013 a autarquia funchalense ao PSD.
“Somos novatos nisto, pois foi a primeira vez que fizemos um orçamento participativo, mas temos recebido elogios de vários quadrantes, e muitas autarquias do país têm-nos contactado para saber o que estamos a fazer e de que forma vamos implementar os projectos”, garante Domingos Rodrigues, que trocou as salas de aula da Universidade da Madeira, onde é docente, por um gabinete na Câmara do Funchal.
Um projecto em nome da dignidade
No areal da praia Formosa esta quinta-feira ainda era dia de ensaio. Os equipamentos não estavam ainda totalmente operacionais, e os técnicos da câmara municipal andavam às voltas com os manuais, baterias solares, cadeiras e bóias.
Numa cadeira de rodas, a poucos metros dali, Hernâni Silva observa curioso a azáfama. Para ele, tudo aquilo que está a nascer na Praia Formosa, é uma “grande vitória”.
O projecto de praia adaptada, que foi o mais votado do Orçamento Participativo do Funchal, é da autoria deste funcionário municipal de 45 anos. “Sempre fui um amante da praia, e nenhuma das que frequento são verdadeiramente adaptadas às pessoas com dificuldades de locomoção”, lamenta Hernâni Silva, sublinhando que para uma praia ser acessível “não basta” hastear uma bandeira e apresentar-se como tal.
Hernâni Silva queria uma coisa prática e discreta. “Não gosto de estar dependente dos outros, e sempre que queria ir nadar estava à mercê da boa vontade de alguém”, explica, lamentando a falta de “dignidade” dos sistemas que existem em algumas praias.
Em algumas existem gruas hidráulicas, que carregam as pessoas até à água. “É preciso colocar fitas e mais fitas, é tudo um espectáculo, um palco que se cria na praia para as pessoas com deficiência, que não é digno”, exemplifica, olhando para este novo “pedaço” da Praia Formosa como um modelo de simplicidade e autonomia.
José Figueira não vê, mas sente essa facilidade. Invisual desde jovem, devido a uma doença progressiva, também foi à Praia Formosa tentar perceber essa mudança. Adora o mar. O cheiro. A liberdade que a água proporciona. Até agora, era sempre uma sensação partilhada. “Tenho que ir sempre acompanhado por alguém, para me referenciar”, explica.
Agora, José Figueira já pode ir nadar sozinho. “É um projecto louvável, como são todas as iniciativas que visam a inclusão”, diz, admitindo que tem algumas reticências sobre a forma como tudo irá funcionar no dia-a-dia. “Com miúdos a jogar à bola, música nos bares, pessoas a conversar, será difícil no início lidar com o sistema de avisos sonoros.”
Mas para ele não existem barreiras nem impossibilidades. Fisioterapeuta de profissão e dançarino por paixão, José Figueira já fez muitas coisas que a maioria julga vedadas a invisuais. “Comigo, essa conversa do coitadinho do ceguinho não existe”, afirma, dizendo que já fez ski aquático, ski na neve, e viveu muitas outras experiências. “Quero viver muitas mais”, diz José Figueira, que desde 2011 integra o grupo de dança inclusiva ‘Dançando com a Diferença’.
Por isso, ir ao mar sozinho será apenas mais uma conquista pessoal. “Esta iniciativa vem ajudar e muito, porque ninguém gosta de depender dos outros, muito menos em situações tão simples como sentir o mar à nossa volta.”
Para Hernâni Silva é uma dupla conquista. Poder ter uma praia com acesso facilitado, e sentir que a ideia foi sua. “Tenho que agradecer às autoridades por terem apoiado a ideia, e à população por ter voltado nela”, salienta, pensando que talvez mais autarquias adquiram agora uma nova consciência sobre a importância de incluir todos os cidadãos na vida das cidades.
Noutras praias, noutras cidades, Hernâni Silva já alertou para esta problemática, mas a resposta é sempre matemática. “Dizem sempre que não têm dinheiro, e que estão a tentar melhorar dentro das possibilidades do orçamento.”
A verdade é que as cidades são lugares difíceis, e as praias podem ser caóticas para quem está sentado numa cadeira de rodas. “Temos que serpentear pelas toalhas, rezar para as rodas não ficarem presas, e depois esperar que um nadador-salvador nos auxilie, o que nem sempre acontece.”
Uma odisseia marítima, que Hernâni Silva espera que na próxima semana, quando a praia estiver operacional, termine. “Pelo menos que seja mais fácil, para pessoas com dificuldades de locomoção, sejam elas permanentes ou não, aproveitarem um dia de praia da forma mais natural e independente possível.”