Crime de abandono de idosos atirado para a próxima legislatura

Conselho de Ministros aprovou estratégia de protecção do idoso.

Foto
Daniel Rocha

Com a Assembleia da República já em férias, o estatuto do idoso, como lhe tem chamado ao longo do seu mandato a ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, apenas foi consagrado em formato de resolução do Conselho de Ministros em vez de lei – o que anula o seu peso legal, uma vez que a criminalização do abandono implica alterações ao Código Penal que teriam de ser aprovadas pelos deputados. A questão fica assim em banho-maria até à próxima legislatura, altura em que os deputados poderão vir a pronunciar-se sobre o tema.

A resolução determina que quem tenha um idoso a seu cargo e o abandone num hospital ou noutro estabelecimento de prestação de cuidados de saúde incorre em crime. Por outro lado, injuriar ou difamar alguém especialmente vulnerável, gestantes incluídas, passa, segundo o documento, a ser crime agravado: “Constitui circunstância agravante dos crimes de injúria e difamação ser a actuação dirigida a pessoa particularmente indefesa, em razão da idade, deficiência, doença ou gravidez”.

Paula Teixeira da Cruz quer ainda ver alterado o regime legal aplicável às pessoas consideradas incapazes do exercício pleno dos seus direitos por motivo de doença, o que implica uma revisão ao Código Civil que também só poderá ir por diante depois de eleito um novo Parlamento. Uma das ideias é tornar nulos os testamentos dos idosos internados em lares quando sejam feitos a favor dos prestadores de cuidados, e desde que os proprietários dos bens “se encontrem em situação de incapacidade, ainda que não tenha sido decretada qualquer medida de salvaguarda de direitos” dos próprios.

Outra proposta consiste em impedir os descendentes dos idosos de herdar o seu património caso tenham sido condenados por maltratar os pais - uma medida a que os juristas chamam indignidade sucessória. Por fim, o regime dos incapazes passaria a poder ser graduado pelos juízes em função do grau de incapacidade de cada pessoa. Em vez de decidirem que determinada pessoa é simplesmente incapaz, os magistrados teriam obrigação de estabelecer, com auxílio médico, o grau de incapacidade de cada doente: se pode criar filhos, se pode alienar propriedade, se tem direito a votar ou a gerir os seus bens, por exemplo.

Passaria ainda a constituir crime “lavrar acto notarial que envolva pessoa idosa que se encontre notoriamente limitada ou alterada nas suas funções mentais, em termos que impossibilitem a tomada de decisões de forma autónoma ou esclarecida, sem que esteja assegurada a sua representação legal”. 

Uma das maiores novidades da resolução é o chamado mandato: quem temer poder vir a padecer de uma doença incapacitante e pretenda assegurar a gestão do seu património pode atribuir antecipadamente a alguém da sua confiança poderes de representação, estabelecendo os respectivos limites. Especialista em questões relacionadas com os idosos, Paula Guimarães elogia esta e outras medidas: "É uma belíssima iniciativa. O Governo está de parabéns". Só lamenta que não sejam apenas medidas concretas, mas apenas uma resolução.

Quanto à criminalização do abandono dos mais velhos, pensa que a questão tem de ser melhor trabalhada do ponto de vista legislativo, porque nem tudo é a preto e branco. Lembra-se do caso da filha bipolar obrigada a levar o pai consigo para casa: "Deixou-o morrer". Ou de outro idoso a quem a filha se viu em situação idêntica: "O pai tinha-a violado em pequena". Já em 2013, o sociólogo Manuel Villaverde Cabral criticava o Estado por querer, nesta matéria, "legislar no domínio dos afectos". Para Paula Guimarães, os idosos são um tema suficientemente relevante para darem origem a um pacto de regime entre os principais partidos. "Qualquer partido político que no futuro venha a meter esta resolução na gaveta é responsável por um atentado aos direitos humanos", avisa. 

Questionado pelo PÚBLICO, o PS não se compromete. "O Governo aprovou uma resolução sabendo que a lei determina que a mesma irá caducar sem nunca ter visto a luz do dia. Isto não é governar, é fazer propaganda", acusa o deputado socialista Filipe Neto Brandão. O ministro da Presidência, Marques Guedes, admite que depende da vontade política do próximo Governo levar estas medidas por diante, uma vez que a resolução que visa proteger os direitos dos idosos inclui matéria de competência exclusiva da Assembleia da República: “Toda a documentação está pronta. Desde que haja vontade política da maioria que sair das eleições, o novo parlamento, assim que iniciar funções, estará em condições de imediatamente discutir e, querendo, aprovar esta legislação”. 

Questionado sobre a justificação para uma das bandeiras do mandato de Paula Teixeira da Cruz não ter sido transformada em letra de lei, deu justificações vagas: “Se o parlamento está fechado, já não há hipótese de aprovar a resolução. Não houve janela de oportunidade", respondeu Marques Guedes, acrescentando que a legislação em causa "andou a ser discutida com os operadores judiciários". Uma explicação que não é totalmente verdadeira: apenas as alterações ao Código Civil foram alvo de consulta aos parceiros negociais da tutela, mas não as previstas para o Código Penal, como é o caso da criminalização do abandono dos idosos.

Também a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima receia que a chamada estratégia de protecção não tenha efeitos práticos. E lamenta que não tenha tido o contributo da sociedade civil, apesar de entender que representa uma mudança de paradigma. "A ministra da Justiça não conseguiu fazer aprovar legislação que considerava tão relevante", critica igualmente o presidente do Sindicato de Magistrados do Ministério Público, António Ventinhas. 

O presidente da União das Misericórdias Portuguesas, Manuel Lemos, recorda um caso que o marcou para explicar por que é que tem "seriíssimas reservas" ao documento aprovado pelo Governo. "Um idoso colocado num lar pela família foi retirado de lá contra a sua vontade porque os 250 euros que tinha de reforma faziam falta para pagar umas contas. Ficou a dormir na sala", mas nunca poderia invocar abandono por parte dos filhos. "As instituições de acolhimento deviam ter uma palavra a dizer em casos como este", resume, para fazer mais um reparo: "Não é possível legislar sobre os idosos sem ouvir os especialistas que estão no terreno".

Como outros especialistas, também Manuel Lemos entende que falta a esta resolução uma dimensão social: "Quando muito, isto é para a protecção jurídica do idoso". 

Mesmo que a lei dos idosos tivesse sido devidamente aprovada no Parlamento, isso não seria garantia de que as suas medidas iriam mesmo por diante. No preâmbulo da resolução está escrito que tudo fica dependente "da existência de fundos disponíveis por parte das entidades públicas competentes".


 


Sugerir correcção
Ler 10 comentários