Presidente demite primeiro-ministro e mergulha Bissau numa nova crise política
Portugal avisa que verbas da comunidade internacional não deverão chegar ao país se não houver estabilidade. Ramos Horta defende desempenho de Domingos Simões Pereira.
Acusando o Executivo de obstrução à justiça, deslealdade, desrespeito institucional, e quebra de confiança, José Mário Vaz diz que a crise põe em causa o bom funcionamento das instituições, no decreto de quarta-feira á noite em que demitiu o primeiro-ministro.
Os “significativos esforços” feitos para ultrapassar a crise foram “em vão”, garante o Presidente.
José Mário Vaz também aponta o dedo ao presidente do Parlamento, Cipriano Cassamá, que no início do mês declarou que o “governo estava em perigo”, após uma reunião dos dois.
O Presidente insinuou ainda, num discurso anterior à publicação do decreto, que haveria corrupção no Governo, questionando o que foi feito com 85 milhões de euros que o país recebeu nos últimos 12 meses. Enumerou outros pontos de litígio, incluindo a nomeação de um novo chefe de Estado-maior das Forças Armadas, o encerramento da fronteira comum com a Guiné-Conacri por causa da epidemia do Ébola e falta de transparência na atribuição de contrados públicos.
Vários países vinham a avisar contra medidas que levassem a um novo período de instabilidade no país. O Governo português, por exemplo, tinha dito que a ajuda internacional recentemente prometida pela comunidade internacional à Guiné-Bissau, no valor de mais de mil milhões de dólares, deveria estar em risco.
“O que se passa na Guiné-Bissau é uma crise política grave que Portugal acompanha com uma enorme preocupação”, disse esta quinta-feira o ministro da presidência, Luís Marques Guedes, citado pela agência Lusa. Esta nova crise poderá mesmo “pôr em causa todos os avanços feitos nos últimos tempos”.
O ex-Presidente da República timorense José Ramos-Horta defendeu pelo seu lado que Timor-Leste deve congelar de imediato a cooperação com a Guiné-Bissau. Ramos-Horta, que mediou as conversações após o golpe de 2012, comentou à Lusa: “A decisão não me surpreendeu mas não deixo de ficar consternado perante a total incapacidade da liderança guineense de superar as diferenças políticas e sociais, fazendo o país recuar de novo, face aos progressos registados nos últimos 12 meses”.
“Se há um país em que não há razão para a mudança de um Governo, a Guiné é um exemplo”, sublinhou Ramos-Horta, notando os “progressos visíveis no plano social e económico, no ambiente político geral, no plano de segurança e no apoio internacional”.
O povo vai à rua
O chefe de redacção do jornal Última Hora Sabino Santos comentou por telefone ao PÚBLICO que “no fundo, não há ninguém que diga que está de acordo com a queda do Governo”. O primeiro-ministro está no poder desde Abril do ano passado, pegando num país que estava “em descontrolo total” no período de transição desde o último golpe.
Domingos Simões Pereira tem apoio popular e mais experiência política do que José Mário Vaz, nota Sabino Santos (Simões Pereira é ainda o líder do PAIGC), dizendo que vai haver agora manifestações a favor do primeiro-ministro demitido. “Não são só apenas os jovens, é o Parlamento, que votou duas moções de confiança apoiando o Governo, são os sindicatos…” enumera. “O povo vai à rua”, garante.
Por outro lado, dentro do PAIGC, não há quem Sabino Santos veja como alguém que possa, ou queira, substituir Domingos Simões Pereira. “Qualquer figura será vista como vinda de um golpe palaciano”, diz. E mesmo que houvesse, o Parlamento que aprova o primeiro-ministro agora demitido não deverá aprovar um outro chefe de Executivo.
“Penso que o Presidente da República não avaliou bem”, comenta o jornalista guineense. Há vários episódios de desentendimento entre os dois líderes, mas Sabino Santos destaca uma aminosidade pessoal antiga, vinda já de 2003 quando Domingos Simões Pereira foi Ministro das Infra-estruturas e José Mário Vaz era presidente da Câmara de Bissau, e em que na sua área o primeiro esvaziou as competências e poder do segundo.
O que se espera agora? “Um, dois, três meses de alguma convulsão.” O exército garantiu que não tomaria posição num país em que houve nove golpes ou tentativas de golpe desde 1980 e onde nenhum governo conseguiu alguma vez cumprir uma legislatura.
“O país pode ficar cronicamente instável”, avisou Ramos-Horta, “e isso significa afugentar os parceiros e investidores”.
Em Março passado, Domingos Simões Pereira e José Mário Vaz deram um sinal de união em Bruxelas, durante uma conferência internacional sobre o país, em que foram prometidas as verbas de cerca de mil milhões de euros por dadoras, verbas que agora estarão em risco.
A actuação de Domingos Simões Pereira nessa mesa redonda de Bruxelas foi importante para que os dadores acreditassem numa possibilidade de estabilidade num país que era cada vez mais visto como dominado pelo narcotráfico, com a colaboração dos militares, e que o FMI punha num relatório recente entre os 20 países mais instáveis do mundo.