O Brasil que não se vê
Duas obras de BD sobre uma cultura que habitualmente não se vê, a dos afro-descendentes brasileiros, dos negros do Brasil: Cumbe, de Marcelo D’ Salete, e Tungsténio, de Marcello Quintanilha.
Marcelo D’ Salete (São Paulo, 1979), participou em Abril passado numa sessão do Próximo Futuro, programa organizado por António Pinto Ribeiro, na Fundação Calouste Gulbenkian. E é considerado um dos autores mais singulares da América do Sul, pela representação que tem feito, em vinhetas e pranchas, dos excluídos da democracia brasileira. Em Risco e Encruzilhada (obras sem edição nacional) o pano de fundo era o Brasil urbano, em Cumbe, o cenário é o século XVII.
Para a realização deste livro, o autor estudou a escravatura e as marcas culturais do povos banto (originários da região do Congo e Angola) no Brasil colonial, mas o “material” que encontrou não permitiu apenas construir histórias, tecer personagens. Resgata, com a ficção, uma visão do mundo que enfrenta a violência. Cumbe é feito de quatro contos e em todos há uma separação imposta pelos homens brancos. Na primeira, Calunga, Valu mata a amada depois de saber que será levado para outra fazenda; em Sumidouro, uma bebé é arrancada à mãe antes de desaparecer num poço; em Malungo, Damião não consegue impedir a morte da irmã às mãos do senhor da fazenda. O medo ou a consumação da perda levarão à revolta, à fuga, à vingança. A tragédia surge inevitável, mas não por causa de qualquer fatalismo ou predestinação. É o regime esclavagista que a nutre e pô-la-á em marcha.
Destas histórias, apartam-se o sentimentalismo e a violência explícita. Macelo D’ Salete não representa os desfechos, prefere deixar que os leitores imaginem o que acontece nos espaços entre as vinhetas, o que se segue à ameaça do braço erguido ou ao castigo. A rejeição do sensacionalismo anda a compasso do desenho fino que dá às personagens uma fragilidade impassível, tão esfíngica quanto doce, e do uso poético do preto e branco: cria espaços, sombras em que os corpos, os símbolos e as paisagens se transfiguram, deixando entrar monstros e milagres.
D’ Salete é mestre numa narração silenciosa, minimal – há páginas que dispensam balões em Sumidouro (59-63) ou em Calunga (37-44) – e a mudança de ritmo, exigida pelos acontecimentos, não se faz em rupturas estilísticas ou expressivas, mas numa simples e geométrica multiplicação de vinhetas. Todos estes recursos concorrem para aquilo que une os contos de Cumbe: a dimensão simbólica da cultura. No ambiente desumano das roças e das plantações brasileiras, são os símbolos, as lendas e os rituais que oferecem um sentido às perdas e um significado às relações humanas, que permitem aos homens enterrar os mortos. E continua a viver.
Na São Salvador de Tungsténio, obra elogiada pela crítica brasileira, a secularização já se instalou. Ao fim de meia dúzia de páginas, o leitor está no território do literatura noir e da crónica social, conduzido a um ritmo acelerado e ruidoso sobre a calçada e a areia. O livro explode em enredos paralelos sob o sol baiano, sem maniqueísmos ou pedagogia moral. Um pequeno traficante e um militar reformado (o único branco) não se entendem sobre o que fazer depois de presenciarem uma pesca à bomba, prática proibida e frequente em Salvador. Até que o primeiro avisa Richard, um polícia com “olhar de santo” e preso aos seus instintos, que acorrerá ao local para deter os pescadores clandestinos. Entretanto, no cento da cidade, Keira, a mulher de Richard, faz, numa sucessão de flashbacks, o balanço de um casamento falhado. Todos estão envolvidos nas suas tramas, numa espiral onde cabem o desejo, a vingança, o arrependimento. O traço de Marcello Quintanilha é truculento, ideal para as cenas de acção e o movimento dos corpos, mas é na expressão dos rostos e no retrato da cidade que se revela memorável. O esgar da raiva ou do desespero das personagens confunde-se com o riso e o riso transforma-se em dor. A representação das emoções permanece ambígua, sempre contra a paisagem da praia, das ruas apertadas, das estradas desertas ou inchadas de trânsito. O autor insiste em colocar as personagens num lugar, num espaço real. Não sendo uma BD “documental”, alimenta-se da realidade brasileira. Há alusões à ditadura militar, à pobreza e à desigualdade social, e a violência estala ao longo das páginas. Numa vertigem que acabará derrotada pela aparição tocante e surpreendente dos afectos.