Estas são as palavras secretas para criticar o Governo de Pequim

Os utilizadores chineses de Internet estão a encontrar maneiras criativas de evitarem os filtros da censura, criando todo um novo vocabulário para falar de assuntos sensíveis.

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Cerca de metade dos 1,3 mil milhões de chineses usam a Internet, GREG BAKER/AFP

Assim como há palavras a serem introduzidas na língua inglesa — o Dicionário Oxford de Inglês já adicionou este ano “twerking” e “sext” — também o chinês evolui, mas por razões diferentes.

Os utilizadores chineses de Internet estão a encontrar maneiras criativas de evitarem os filtros da censura, criando todo um novo vocabulário para falar de assuntos sensíveis. Muitas palavras só precisam de uma pequena alteração no tom para que o som signifique uma coisa completamente diferente. Este ano, 25 novas palavras ou frases foram acrescentadas à colectânea, não oficial, que está a ser feita.

Em Decoding the Chinese Internet: A Glossary of Political Slang [Descodificar a Internet: um glossário de calão político], os autores Perry Link e Xiao Qiang escrevem que a inovação linguística ajudou a criar um “reino novo e livre” numa China repleta de temas tabu.

No final do ano passado, eram cerca de metade dos 1,3 mil milhões de chineses que usavam a Internet, segundo a estatística do Centro de Informação da Internet. Entre eles, 198 milhões são utilizadores mensais do Weibo, a versão chinesa do Twitter, um fenómeno que cresceu 38% em relação ao ano anterior.

Mas o Weibo é totalmente controlado, e o acesso às redes sociais como o Facebook, o Twitter e o Instagram está bloqueado.

“Os utilizadores chineses da Internet ainda falam num ambiente fortemente controlado, pelo que a sua necessidade de maior liberdade de informação e expressão leva-os a encontrar uma linguagem codificada e metáforas que lhes permitam evitar a censura”, escrevem os autores no seu relatório.

Muitas das metáforas descrevem o governo, mas também se referem aos púdicos censores. Um dos mais famosos destes casos anda à volta de uma personagem chamada “Cao Ni Ma” [“calpaca”, por se parecer à alpaca, mas o bicho não existe, é um meme que se tornou mascote dos que lutam pela liberdade de expressão e já inspirou poetas, escritores e artistas plásticos]. Com uma pequena nuance, a palavra torna-se um palavrão que vamos evitar referir para proteger os olhos mais inocentes.

Eis alguns dos termos acrescentados já este ano a este léxico:

O teu país

Em vez de “China”, é comum usarem “o teu país” (como fazem os japoneses e os coreanos quando dizem “meu país”). Mas ao darem a volta à expressão, os utilizadores liberais e pró-direitos humanos usam “teu país” para se referirem aos nacionalistas que dirigem o país. “Expressões como ‘teu país’ separam o Partido Comunista Chinês do Estado, quando os dois são frequentemente confundidos na retórica oficial”, diz o relatório.

Vejam-se estes exemplos tirados do Weibo:

@kongsanduo: O Ocidente inventou o combóio, o carro, o avião, a bicicleta, a moto, a electricidade e os electrodomésticos, entre outras coisas. O teu país inventou o hukou [o sistema de registo de famílias, que faz um cidadão perder direitos quando se muda], a política do filho único, as taxas quando se quer escolher a escola, as restrições nas matrículas dos carros, as restrições à compra de casa, etc.. Enquanto outros inventaram coisas para conveniência do povo, o teu país inventa coisas que restringem a liberdade do povo.

@Gongcheng: Os programas de TV no teu país saíram finalmente do longo controlo do teu partido e tornaram-se como os da Coreia do Sul.

Verificar o contador da água

Não queres que a polícia te bata à porta. Só traz problemas. Por isso, os polícias fingem ser fiscais da companhia da água para levar as pessoas a abrirem a porta. Dessa forma, “ler o contador da água” tornou-se o calão da Internet para a presença da polícia em casa.

@guhuomaoshaoye: Olá, temos aqui uma encomenda para si. Por favor assine. Olá, a companhia da água está aqui para ver o contador. Olá, por favor despache-se e abra a porta. Não lhe vamos fazer mal. Se não abrir a porta, abrimos fogo!

Brincar às escondidas (e morrer)

Há uma nova forma de morrer na China: a brincar às escondidas. Este eufemismo tornou-se uma maneira de dizer que alguém morreu quando estava sob custódia da polícia, de forma suspeita. É uma referência à explicação dada pelas autoridades policiais depois de um agricultor, Li Qiaoming, ter morrido quando estava detido e acusado de extracção ilegal de madeira, em 2009. A polícia disse que Li morreu de uma ferida auto-infligida quando brincava às escondidas com outros presos. Brincar às escondidas significa, agora, brutalidade policial.

@Dong Minghui: Há um lugar, um lugar mágico, onde se pode morrer a vomitar, onde se pode morrer de anomalias físicas, morrer por brincar às escondidas e por tantas outras formas mágicas. Que lugar mágico. Que país mágico!

@Qubo: Morte por brincar às escondidas, morte por tomar um duche — isto já não é notícia. O novo poder não é vigiado, é inevitável que ocorra violência associada ao trabalho oficial. Não importa quem és, não conseguirás fugir quando te cruzares com ela.

País de joelhos

É uma brincadeira com “distinto país” e troça da ideia de que os chineses deviam ajoelhar-se em frente dos edifícios governamentais para fazer ouvir as suas preces. Sugere que os cidadãos se sentem compelidos a ajoelhar-se se quiserem que aconteçam coisas que deviam ser delas por direito.

@Zhangsan ZJ: Já passaram mais de 170 anos, mas os mafiosos ainda são mafiosos, as massas estúpidas continuam estúpidas, e o país que se ajoelha mantém-se ajoelhado. Então qual é a diferença agora? As carteiras estão cheias? Somos modernos? Fomos civilizados?

@tooti188: Não há direitos humanos no país que se ajoelha, eu não quero viver num país de joelhos...

A era da Dama

Esta frase nasceu pela junção das alcunhas usadas para o Presidente Xi Jinping — Papá Xi, ou Xi Dáda, em chinês — e da sua mulher, Peng Liyuan — Mamã Peng ou Péng Máma —, que forma uma nova palavra composta que designa marijuana: dama. A China entrou na “era da Dama”, a era da marijuana, que é uma palavra que agora está bloqueada no Weibo.

@zhuodaoren: Olá a todos, sou o Papá Xi! Olá, eu sou a Mamã Peng! Somos o_casal Dama!

@villiva: Será que a combinação do Papá Xi e da Mamã Peng oferece a perspectiva de uma legalização da “Dama”?

Forças (hostis) estrangeiras

De acordo com o China Digital Times, descreve qualquer pensamento ou acção que não se conforme à doutrina do Partido Comunista Chinês. Pequim responsabilizou as “forças estrangeiras”, por vezes chamadas “forças hostis estrangeiras”, por todas as convulsões desde os protestos de 1989 que culminaram na repressão da praça Tianamen, até ao movimento pró-democracia que paralisou Hong Kong no ano passado. Agora, os utilizadores de Internet chineses empregram a expressão “forças estrangeiras” para troçar da ideia de que existe um elemento externo por detrás de qualquer movimento interno, explicam os autores do léxico.

@Haohan Zhangmazi: A polícia do povo adora o povo e luta corajosamente contra os desordeiros que não lhe obedecem. Devem ser forças estrangeiras hostis.

Usar a Internet de forma científica

Esta é uma expressão que ironiza com o slogan do anterior presidente Hu Jintao sobre a necessidade de ter uma “abordagem científica ao desenvolvimento”, que deveria incorporar tanto a ideologia comunista quanto o desenvolvimento material. Agora, para ultrapassar a nova Grande Muralha (Firewall) da China e aceder a sites proibidos, os internautas referem-se ao “uso científico da Internet”  até já existe uma aplicação Google Chrome com esse nome.

@Mr. Ding-LD: Sempre que uso a Internet de forma científica, sinto uma maior determinação em viajar para o estrangeiro. As interrupções do Governo acontecem em todo o lado, mas pelo menos serei interrompido por um governo que não quer saber se eu entro no Facebook.

Voluntário de 50 cêntimos

É o ciber-calão para um comentador online que defende o Governo chinês de borla  em contraste com os “voluntários de 50 cêntimos” recrutados para cumprir essa tarefa, e que alegadamente recebem 50 cêntimos por cada comentário elogioso para o Governo.

Os voluntários de 50 cêntimos emergiram em reacção às criticas ao Governo e ao comentário intelectual liberal, diz o relatório Decoding Chinese Slang. As autoridades também encorajam as pessoas a difundir “energia positiva” online, em campanhas de voluntariado dirigidas pela Liga da Juventude Comunista.

@Lingfengtingyu paomaodao: Os voluntários de 50 cêntimos são muito espertos, conseguem expôr as máculas dos intelectuais numa única frase. Como podemos não os odiar?

Reencarnação

Com tanta gente a “morrer” na rede - isto é, a ter as suas contas nas redes sociais eliminadas pelas autoridades por referências a assuntos sensíveis - alguns cibernautas consegyem “reencarnar” numa nova forma na mesma plataforma, onde continuam a difundir as suas críticas. O seu novo nome de utilizador costuma ser uma combinação do nome antigo e a palavra “reencarnação”, para que os antigos seguidores consigam facilmente identificar a nova conta. “O cartoonista político Kuang Biao já reencarnou dezenas de vezes no Weibo, e de cada vez acrescenta um novo número de reencarnação ao nome”, diz o relatório. “A sua mais recente encarnação, de Maio de 2015, é ‘Uncle Biao Fountain Pen Drawings 47”, informa.

@Chunzhendeyun06: Recomendo vivamente que sigam um bom amigo que já reencarnou muitas vezes: @zhugewenjun

Kim Fatty III

Mas por vezes, os internautas inventam novos termos apenas para serem engraçados. Como neste caso:Uma alcunha para Kim Jong Un, o redondo líder da Coreia do Norte que subiu ao poder após a morte do seu pai, Kim Jong Il, no final de 2011. Os chineses começaram a fazer troça do líder de terceira geração da dinastia Kim chamando-lhe Kim Fatty III. Contudo, o uso de um nome tão pejorativo não tem levantado grandes objecções a Pequim, uma vez que as autoridades chinesas também não estão especialmente impressionadas com o jovem Presidente, que por diversas vezes tem menosprezado o patrono do seu país.

@duoduo: Kim Fatty III anunciou recentemente que a Coreia do Norte ia aterrar no sol. A audiência ficou em polvorosa: “Mas é tão quente no sol, como vamos conseguir aterrar lá?” Kim Fatty III detectou a confusão e explicou: “Só vamos quando já estiver escuro!”, e o público, atordoado com a sagacidade de Kim Fatty III irrompeu num prolongado aplauso.

@yingzhou laoji: É preciso lidar com a questão das armas nucleares da Coreia do Norte o quanto antes. Não acredito que tenham capacidade para enviar uma bomba nuclear para os Estados Unidos, ou mesmo o Japão. A maior ameaça é para a China. Não podemos pensar que Kim Fatty III, que é extremamente arrogante, se comporta racionalmente como as pessoas normais.

Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post


 

 

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