Carmen Miranda é uma emigrante como as outras: voltou à terra em Agosto

Antes de a levar ao Brasil, o Real Combo Lisbonense tinha de a trazer aqui: Várzea de Ovelha, o lugar onde a rapariga dos chapéus tutti-frutti nasceu e foi baptizada. Um baile popular, para ela matar saudades da terra, para a terra matar saudades dela.

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O Real Combo Lisbonense recriou o imaginário de Carmen Miranda em Várzea de Ovelha Fernando Veludo/NFactos
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Já no encore, o concerto transformou-se num baile popular Fernando Veludo/NFactos
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Margarida Campelo, uma das três Carmen Miranda do Real Combo Lisbonense Fernando Veludo/NFactos
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O palco foi montado no lugar de São Martinho da Aliviada, muito perto da igreja Fernando Veludo/NFactos
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Antes do concerto do Real Combo Lisbonense, houve acordeões e zés-pereiras Fernando Veludo/NFactos
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Maria do Carmo, proprietária do café Carmen Miranda Fernando Veludo/NFactos
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A Igreja de São Martinho da Aliviada, onde Carmen Miranda foi baptizada Fernando Veludo/NFactos

Mas o que faria ela em Várzea de Ovelha, lugar onde então não havia – continua a não haver – avenidas, Copacabana, arranha-céus e estúdios de cinema com estrelas (ela diria stars, embora tenha sido sempre mais fiel a “eu te amo” do que a “I love you”) do tamanho e do sarcasmo de Groucho Marx? Mais grave: onde arranjaria ela bananas e ananases para os seus chapéus tutti-frutti e, sobretudo a sua palavra inglesa favorita, “money, money, money”, bem de primeira necessidade cuja escassez continua a alimentar sucessivas vagas de emigração em todo o concelho de Marco de Canaveses (embora já não para o Brasil, como foi tradição passada de pais para filhos e de avós para netos)?

Não se pode não pensar nisso quando se vai a caminho de Várzea de Ovelha – ou, para sermos mais precisos, da Igreja de São Martinho da Aliviada, onde Carmen Miranda (aliás Maria do Carmo Miranda da Cunha) foi devidamente baptizada antes de sair para o Brasil num barco a vapor e onde quarta-feira, na noite em que passaram 60 anos sobre a morte da “Brazilian bombshell”, possivelmente a estrela mais Technicolor de toda a geração Technicolor, uma big band de Lisboa veio matar saudades da menina que nunca voltou à terra mas ali deixou nome de ruas, travessas, museus e cafés. E sobretudo muitos primos.

 A4 acima, direcção Marco de Canaveses (a de Avelino Ferreira Torres, mas também a de Caetano Veloso e David Byrne: "Marco de Canaveses é o nome da terra onde iaroxum nasceu/ And the taste of eath flower is sweet/ So why do they say she's a bad girl?"). Depois, estradas aos ziguezagues que sempre acabam por ir dar a um rio, igrejas românicas que só abrem ao domingo: estaremos perdidos, mas já não estaremos longe, porque o café de berma de estrada que aparece quando se torna inviável prosseguir sem indicações tem o nome dela, Carmen Miranda.

Se não tivesse ido para o Brasil, Carmen Miranda podia ter passado uma parte da sua vida aqui ao balcão. Também se chama Maria do Carmo, a proprietária, mas nunca se abrasileirou: a mãe, que nasceu no Brasil, filha de emigrantes portugueses, é que “veio para cá pequena” e acabou aportuguesada. A história de Carmen Miranda, apesar de ter acabado mal, é bem mais apaixonante: “É um orgulho o sucesso que ela fez além-fronteiras. Se tanta gente se orgulha dela e não é cá da terra, imagine o que isto é para nós.”



Na parede, o cartaz do baile popular que o Real Combo Lisbonense, a Câmara Municipal do Marco de Canaveses e a NOS prepararam para “os 60 anos do desaparecimento da Pequena Notável” ocupa o mesmo espaço das convocatórias para a Taça da Bifana organizada pelo Grupo Cultural e Desportivo de Gouveia. Ao lado há uma foto muito ampliada de Carmen Miranda a sorrir para a objectiva, “apesar de um pouco triste”.

A propósito: primeira à esquerda, sempre em frente até à ponte sobre o rio Ovelha, depois direita, e novamente à esquerda pela Rua Carmen Miranda. Faltam duas horas para o concerto e não tarda duas das muitas primas de Carmen Miranda não vão chegar ao Brasil mas vão chegar à Madeira.

Um fato e três vestidos

Mais até do que João Paulo Feliciano (o mestre de cerimónias dos Real Combo Lisbonense, mentor não só da banda como de todo o projecto Saudade de Você – Às Voltas com Carmen Miranda), Maria Virgínia Ferreira é a grande anfitriã do baile. Pediram-lhe emprestados os terrenos para instalar o palco ao fundo da rua, e da pequena casa onde vive ainda cede electricidade, esferográficas, saca-rolhas e a chave da igreja, que à noite estará aberta (e toda iluminada, não só com imagens da grande diva de Várzea de Ovelha como com o logótipo da NOS…) para que os de fora possam ver a pia onde a prima Carmen foi baptizada.

“É um orgulho”, como já era “um orgulho” para o pai, Óscar, ele sim primo direito, quase irmão de leite: “Nasceu na mesma casa que a Carmen, no mesmo berço que a Carmen. Os pais dela chegaram a vir cá e mantiveram sempre o contacto por carta. Uma vez mandaram um fato branco para o meu pai – era do que ele mais gostava, se o deixassem andava sempre de branco, à brasileira. E para a Maria da Graça mandaram um vestido que deu para ela fazer outros três.”

Aí vem ela, de luto, a descer a rua, 72 anos muito expeditos (portanto: “mais do que idade” para se lembrar “muito bem” da altura em que Carmen Miranda morreu). Também quer o disco que o Real Combo Lisbonense gravou a partir do repertório menos conhecido da prima (“e o livro, ora bote cá!”), mas veio mesmo para ver o concerto: “Vai ser um evento como nunca tivemos. Decerto a RTP nunca cá veio.” Agora está ali para fazer uns directos que hão-de ser transmitidos “até para a Madeira”, e é a deixa de Maria da Graça para reclamar “as quatro, cinco ou seis fotografias autografadas” pela prima Carmen que a estação de televisão “fez o favor de levar e nunca mais devolveu”. Querer ser como ela nunca quis, não valia a pena: “Sermos primos da Carmen Miranda já era uma coisa grande para nós. Uma estrela daquelas! O meu pai dizia que ela tinha 300 pares de sapatos de 20 centímetros. Pequenina mas bonita, não era? E elegante!”

Quando o concerto começa, o largo está cheio de gente e Maria da Graça ocupa a sua cadeira. Não conhece muitas canções além “daquela da baiana” – “Sabe, antigamente não havia aqui nada…” –, mas também não fica de braços cruzados, como a maioria do público, ligeiramente de pé atrás. É uma desconfiança antiga, que apesar dos músicos de fato branco e das três cantoras de ombros à mostra e turbante na cabeça só se vence quase no encore, quando o Real Combo Lisbonense se atira a Mamãe eu quero e finalmente alguns casais dançam aos pares e um comboio fura entre a assistência.



Carmen Miranda é na verdade uma estranha que nasceu em Várzea de Ovelha mas morreu noutra galáxia, em Beverly Hills: “Dá-me ideia que os habitantes deste lugar nunca lhe perdoaram o facto de não ter voltado à sua terra natal – de nunca aqui ter vindo fazer espectáculos, deixar alguma obra”, diz a presidente da Junta de Freguesia de Várzea, Aliviada e Folhada, Maria José Cerqueira. “Existe essa mágoa, e por isso é que é tão importante ter vindo esta gente de fora dar-nos uma lição sobre a Carmen Miranda.”

Para o Real Combo Lisbonense, Várzea de Ovelha era o que tinha de acontecer depois da estreia do espectáculo no Auditório ao Ar Livre da Gulbenkian, em Lisboa, há um ano, acrescenta João Paulo Feliciano: “Procurei muito a presença de Portugal na vida da Carmen – nas comidas da mãe, no facto de ter cantado Uma casa portuguesa e A Severa horas antes de morrer, ela que nunca gravou fados. Aqui tenho a sensação incrível de que toda a gente é remotamente prima da Carmen Miranda. E de que finalmente cobrimos todo o espectro que ela cobriu: a divisão entre as elites e o povo não existia nela nem existia na música dela.”

Segue-se o Brasil. Parece fácil: “Se conseguimos fazer acontecer Várzea da Ovelha, também conseguimos fazer acontecer o Brasil.” Talvez seja a altura de se começar a pensar em Beverly Hills.

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