Fear and loathing na América — adeus Jon Stewart
Esta é a última noite do Daily Show que conhecemos há 16 anos. A sua mistura de comédia, política, jornalismo e poder perde o apresentador que lhe deu identidade.
É como o fim de uma relação vivida em registo Truman Show: vimo-lo crescer, politizar-se e escolher amigos e inimigos, o mundo a mudar. Escreve-se que "é fácil tomá-lo como garantido". Não é só Barack Obama que não quer ver Jon Stewart ir embora – "Uma grande dádiva para o nosso país", elogiou-o, já abafado pelas palmas na sua última dança com Stewart há dias no Daily Show. "Stewart tornou a vida um pouco mais suportável para milhões", hiperbolizou Robert Lloyd no Los Angeles Times.
Há um elo particular entre Stewart, as suas quatro doses semanais de catarse e aqueles que agora se despedem dele – mesmo os que podem querer vê-lo pelas costas, os seus alvos de eleição. A sua mistura de comédia, política e informação estendeu-se da América a outros países, como Portugal (Gato Fedorento Esmiúça os Sufrágios) ou o Egipto (com o programa de Bassem Youssef), que o receberam em suas casas e tentaram emular o seu formato para explorar um pouco mais o âmago da cultura democrática mediática. Na América, é "talvez o nosso maior satirista político", opinou esta semana na Salon Bill Curry, ex-conselheiro de Bill Clinton. "Um Will Rogers e Mark Twain dos dias modernos", para o seu amigo-inimigo John McCain, senador do Arizona pelo Partido Republicano. Alternativa ao jornalismo "A chegada de Stewart à Comedy Central em 1999 coincidiu com a ascensão da Fox News", situa Brian Lowry, crítico de TV, na Variety. E precedeu em três anos o evento definidor do século XXI até agora, os atentados de 11 de Setembro de 2001. Já com George W. Bush no poder na esteira de uma eleição contestada, com a guerra no Iraque e o teatro em torno das armas de destruição maciça em curso, o Daily Show era o ponto de passagem obrigatório para quem queria ver o que Jon Stewart tinha a dizer sobre os temas quentes e divisivos da década. Tudo isso, acrescenta Lowry, "espoletou torrentes de cobertura partidária que parecia tornar-se mais hiperbólica e aquecida a cada momento que passava, aumentada pelas pressões empresariais da era digital e a eleição de Barack Obama". Na noite de 4 de Novembro de 2008, quando se fazia história e o primeiro negro era eleito para a Casa Branca, três milhões de pessoas escolheram ver no directo do Daily Show quem era o novo Presidente dos EUA (a emissão mais vista foi a da ABC, com 13,1 milhões). Uma confluência de factores em que as vozes dos comediantes "soavam mais sóbrias" do que as dos jornalistas de televisão e as dos políticos, defende Lowry. Stewart e o Daily Show não estiveram sempre no topo, com a qualidade da comédia ou da análise a ser irregular ao longo de 16 anos, mais previsível ou, segundo os seus críticos, menos dura com uma presidência Democrata. Mas a maratona termina com quatro eleições presidenciais, 18 Emmy e dois Prémios Peabody no bolso. A primeira cobertura eleitoral foi a Indecision 2000. A próxima – e que já não terá o homem que se descreve "à esquerda" e a sua equipa que já em 2008 admitia, pela voz do argumentista J.R. Havlan, que "provavelmente não é segredo onde nos situamos politicamente" – é Democalypse 2016. Jon Stewart, nascido Jon Stuart Leibowitz, diz que sai porque "já não tinha a mesma satisfação" no esmiuçar das notícias e ao pensar em mais uma campanha, como explicou ao Guardian este ano. No meio de uma América bipolar Esta quinta-feira, Stewart e a sua equipa chegam então à meta. O 2290.º episódio do Daily Show encabeçado pelo fã dos Mets nascido em Nova Iorque e criado em Nova Jérsia, canhoto, judeu, filho de professores com uma relação difícil com o pai, só chega a Portugal dia 13 na SIC Radical. Mas é esta quinta-feira que a América se despede do homem de 52 anos que expôs as "bizarrias cívicas", os comportamentos daqueles "que Philip Roth chamou 'o americano enlouquecido indígena'", lembra David Remnick, editor da New Yorker. Uma América bipolar entre os seus dois grandes partidos, entre os seus dois últimos presidentes, Bush e Obama – mas o programa "não honra a distinção entre esquerda e direita, liberal ou conservador, ou em alguns aspectos entre Democrata e Republicano", disse Stewart à Associated Press. "Só honramos a distinção entre o real e o absurdamente falso. E somos absurdamente falsos." As fake news, a sátira noticiosa que emergiu da voragem do ciclo das 24 horas noticiosas e que agora vive num mar de ultrajes instantâneos medidos por cliques e tweets, são o seu ofício. Estatisticamente uma importante fonte de informação para os jovens americanos, Jon Stewart sempre frisou que não faz jornalismo. Alimenta-se em parte dele. Em Janeiro de 1999 dizia à AP que o mundo das notícias "se descontrolou tanto" que o Daily Show "é como um deve e haver"; em 2004, voltava a mostrar as duas faces da moeda com que joga a sua equipa – "A nossa reunião todas as manhãs é uma discussão explícita sobre o que se passa no mundo. Mas depois o resto do dia é passado a tentar esconder isso sob piadas escatológicas." Em 2009, uma sondagem da Time elegia-o como o locutor noticioso em que os americanos mais confiavam. Esta derradeira semana de Daily Show with Jon Stewart encheu-se de comediantes (Amy Schumer, Louis C.K., Denis Leary) como que para o enfatizar uma vez mais. Mas a Rolling Stone não quer saber disso – para a revista americana, ele é hoje "o último jornalista honesto". Até os jornalistas admitem que ele tocou a sua profissão. "Ninguém nos últimos 20 anos fez mais para mudar o estilo do jornalismo do que Stewart", acredita Ryan McCarthy, editor no Washington Post. Moldou "ritmo, estilo e métodos de distribuição dos media online", "foi a primeira verdadeira estrela da era do jornalismo web". Agora, defende McCarthy, "toda a gente está a fazê-lo", falando de projectos entretanto nascidos como o Huffington Post ou os espaços de comentário online de jornalistas. Para Stewart, a sua equipa estava sim a "praticar uma nova forma de desespero" perante a nuvem de poeira de mensagens contraditórias. O alvo Fox News A entrevista mole de 2011 com Donald Rumsfeld, outro alvo favorito cuja imitação se tornou difícil de reformar quando o político abandonou a Casa Branca, é uma desilusão pessoal do comediante. "Devia ter insistido, mas ele é muito proficiente no desviar da atenção", reconheceu Stewart ao Guardian pouco depois de ter anunciado a sua saída do programa. Rosto de uma equipa de escassas dezenas de pessoas, atirou-se à Fox News e aos hologramas da CNN, a Dick Cheney, Donald Rumsfeld ou às falhas informáticas do Obamacare. Ficam na colecção de clipes o confronto do comentador financeiro da CNBC Jim Cramer com as suas próprias declarações irresponsáveis sobre as sub-prime. Ou a sua ida arrasadora ao magazine semanal de política Crossfire, a desilusão com a inércia da Administração Obama perante a falência dos apoios aos veteranos de guerra ou às equipas de emergência que primeiro chegaram aos escombros do 11 de Setembro. Devorou o escândalo sexual do congressista democrata Anthony Weiner ou a retórica do conservador Glenn Beck, escolhendo como inimigos tanto os poderosos quanto a pizza de Chicago. Inicialmente, no Daily Show, primeiro com o menos político Craig Kilborn e depois com Stewart, brincava-se com tudo e os falsos "correspondentes" iam para a rua explorar o insólito. Os atentados de 2001, os pressupostos da guerra no Iraque – "ele era o único com uma plataforma num canal nacional" a dizer "Não acredito nisso", lembra o analista Eric Boehlert, da Media Matters – ou acontecimentos como o tiroteio de Charleston ou a detenção fatal de Eric Garner são as provas do amadurecimento do lado incontornavelmente político do programa de sátira. O Daily Show saiu da caixa televisiva em 2010, com o Rally To Restore Sanity and/or Fear, que levou 215 mil pessoas a Washington em reacção ao movimento conservador Tea Party.
Em 1999, quando Jon Stewart transitou de uma carreira como comediante e actor para a sua cadeira num cenário planetário à la noticiário das oito, o Google era um embrião. Não havia redes sociais, a era Clinton chegava ao fim e um telemóvel era quase um produto de luxo. Não havia YouTube para partilhar clipes de boas entrevistas ou indignações explosivas.
A agora conhecida pantomima do humorista passou do seu desconforto com o fato que vestia, confessado ao seu primeiro entrevistado em Janeiro de 1999, Michael J. Fox, aos minutos de mímica e sons guturais que dedicou há dias ao candidato a candidato presidencial pelo Partido Republicano Mike Huckabee. "Nos últimos 15 ou 16 anos temos uma piada constante de que eu na verdade podia fazer o programa sem dizer nada – que podia só fazer caras estúpidas e grunhir. A duas semanas do fim, pensámos 'Sim, sim, porque não?' Foi o que fizemos. E percebi que tenho trabalhado mesmo demasiado", riu-se Stewart depois de testada a fórmula.
Jon Stewart não é perfeito, nem nunca disse que o era. Mas a sua posição na cultura popular assenta em parte na imagem do quase impoluto defensor de princípios, detector de mentiras e verificador de factos dos poderosos. Até Bill O'Reilly, da Fox News, reconhece: "Não gostamos de hipócritas. Ele e eu usámos o nosso desprezo por pessoas desonestas para nos tornarmos bem sucedidos." Mas Stewart é também, como assinalou o Washington Post, aquele que há dias nada perguntou a Tom Cruise, o mais conhecido membro de uma polémica religião, sobre a Cientologia. É também aquele que, como contou o antigo colaborador Wyatt Cenac no podcast de Marc Maron, lhe terá gritado palavrões quando o confrontou com um número que considerava racista.
Em 2011 e 2014, Obama quis ouvi-lo em privado, dissecou o site Politico na semana passada. A Casa Branca estava mais do que ciente de que Jon Stewart "era um influencer-chave dos millennials", reconheceu Dag Vega, que trabalhou na Casa Branca nas relações com figuras mediáticas, ao New York Times. Os nascidos entre 1980 e o os primeiros anos 2000, mais coisa menos coisa, "confiavam nele para ter uma visão honesta das notícias". Para o humorista, actor e realizador Ricky Gervais, a audiência do Daily Show – uma média de 1,5 a 2 milhões de espectadores nos EUA, menos de 1% da população americana, fora a Internet e as transmissões internacionais – "é o público de comédia mais astuto, inteligente e ligado de qualquer programa de comédia em que tenha estado, por causa da cultura que Jon nutriu", disse ao New York Times. Trevor Noah, o seu substituto sul-africano, tem 31 anos. É exactamente um millennial que, ao contrário de Stewart, está por exemplo no Twitter – como o mundo sabe devido aos comentários que fez há anos e que voltaram para o assombrar. A partir de 28 de Setembro, o seu olhar e o Daily Show vai ser um pouco diferente, e talvez os alvos também. "As notícias estão a mudar", disse Noah recentemente aos jornalistas, referindo-se aos consumos online. "O maior desafio [é] como juntamos tudo, olhando por uma lente maior ao invés de ir simplesmente atrás de um caminho, que historicamente era a Fox News." Entretanto, os seus mais famosos antigos colegas estão a seguir o seu caminho ascendente pós-Comedy Central, o canal que tudo tornou possível – John Oliver com Last Week Tonight na HBO, Stephen Colbert como substituto de David Letterman já em Setembro na CBS. Na hora da despedida, questiona-se o que fará Stewart a seguir além de jantar com a família nas noites de semana. Nos últimos tempos, fez um pequeno espectáculo de stand-up, em 2014 realizou Rosewater (baseado nas memórias do jornalista Maziar Bahari) e nestes 16 anos escreveu America e Earth com a sua equipa do Daily Show e apresentou os Óscares duas vezes. Mas garantiu ao Guardian: a política é que "não é a minha cena".
Notícia actualizada às 15h33 de 6 de Agosto - acrescenta-se referência à obra Fear and Loathing in Las Vegas.