A minha guerra insana contra a natureza
São duas as frentes de batalha. Uma delas desenrola-se no parqueamento de blocos de cimento diante da entrada. É uma composição harmoniosa, cada peça rigorosamente alinhada com outra, num vasto quadriculado de encher o olho para quem gosta de geometria.
Estava um brinquinho quando nos mudámos. Bastou o sol aquecer depois das chuvas, no entanto, para começarem a brotar ervas, esgueirando-se pelas frinchas.
A minha mulher foi a primeira a atacá-las. Num fim de tarde deu-lhe um acesso e, agachada, pôs-se a arrancar as plantas emergentes, uma a uma, à mão. “Meta sal”, gritou alguém, de dentro de um carro que passava na rua. “Vai ver que funciona”, insistiu o anónimo consultor herbáceo, já o automóvel ia lá à frente e a voz mal se ouvia.
Fui encarregue da missão, que executei com zelo culinário. Salpiquei de branco os caules que tinham resistido, na expectativa de os desvitalizar. O efeito foi porém o contrário e a Primavera voltou a germinar com redobrado fulgor. No embate seguinte, carreguei violentamente no sal, à guisa de químico e não de tempero. O reticulado ficou com as linhas tapadas por alvas mini-cordilheiras. Fosse lá o que estivesse por baixo, sucumbiria à salinidade e à asfixia, uma morte hedionda.
No passado, salgar a terra era o supremo acto militar de afirmação dos vencedores. Há histórias de povos derrotados, cujas cidades foram queimadas e o solo inviabilizado para futuras gerações.
Horrorizado com este pensamento, passei dias a julgar-me um bárbaro miserável, até que as plantas, zombando da minha angústia, voltaram à superfície. Vieram com o exército renovado, mais forte e numeroso.
O mais fácil seria apelar para armas de destruição maciça, respondendo com herbicidas àquela provocação. Mas estava fora de questão intoxicar o solo apenas para ter a entrada da casa bonitinha. Regressámos ao combate físico, manual.
“Aiiiii!”, gritei ao puxar a primeira erva. Era uma urtiga. Natureza três, humanos zero. Vesti luvas e convoquei o resto da família, para desespero vertebral de todos. “Só assim mesmo”, comentou um passante, ao ver o grupo. “Por que não usam um pesticida?”, sugeriu outro. E assim foi a tarde toda, cada transeunte, um palpite.
Toda a operação, na verdade, não fazia qualquer sentido. Passamos o tempo todo a defender a natureza, mas por causa de dois lugares de estacionamento estávamos empenhados em suprimi-la.
No pequeno quintal nas traseiras travava-se outro combate, contra as ervas no relvado. Promovi meu filho a oficial, pedindo-lhe – eufemismo tipicamente paterno – que tratasse do assunto. A vida selvagem defendeu-se com pólen. Nossas tropas tiveram de recuar, fragilizadas por sucessivos ataques de espirros. Seguiram-se semanas de entupimento nasal.
O ser urbano não convive bem com a vida selvagem. Verde, só se for organizado. Ainda tentei desligar do assunto, deixando a natureza seguir o seu caminho. A flora prosperou e a biodiversidade idem, com mais flores, mais insectos e mais pássaros. A monocultura nunca terá semelhante efeito.
Mas os vizinhos começaram a queixar-se de que a casa parecia abandonada. E o próprio senhorio acabou por pedir para darmos um jeito naquele matagal. “Tem de ser à mão. Mesmo com químicos, elas voltam”, disse-me, e partiu para a filosofia: “Sabe, Ricardo, não se consegue vencer a natureza”. Sim, eu sabia.