O mais rebelde dos trabalhistas quer enterrar o New Labour e ressuscitar a esquerda clássica
Nem a opinião pública, nem o próprio Partido Trabalhista levaram muito a sério a candidatura de Jeremy Corbyn à liderança do Labour. Um mês depois, o deputado lidera as sondagens e está a demonstrar que a esquerda tradicional não foi afastada pelo New Labour de Tony Blair.
Os resultados catastróficos do Partido Trabalhista nas eleições de Maio, e a consequente demissão do seu líder, faziam adivinhar uma reflexão sobre a identidade do partido. Mas poucos previam que o futuro do Labour pudesse passar pelo seu passado e, nomeadamente, por Jeremy Corbyn, o “mais rebelde trabalhista” dos últimos tempos, segundo as descrições dos jornais The Guardian e Daily Mirror, ele que foi eleito pela primeira vez como deputado há 32 anos.
Foi em 1983 que Corbyn foi escolhido para representar o círculo de Islington North, em Westminster. Tinha 33 anos e assumia-se claramente como um homem da esquerda tradicional britânica, um socialista representante dos trabalhadores e identificado com os sindicatos. Aos 66 anos, várias reeleições consecutivas depois, mantém o mesmo registo, mas acrescenta-lhe uma oposição feroz à austeridade, à semelhança de outros partidos europeus de esquerda.
Corbyn é um fã incondicional do trabalho feito nos anos 1940 pelo Labour, que “criou o Estado-social no Reino Unido”. Nessa linha, as principais causas pelas quais se bate são uma maior protecção dos serviços públicos, nomeadamente no sector da saúde, o aumento da taxação às empresas e aos britânicos mais ricos e um maior controlo do Estado sobre os bancos.
Mas Corbyn também ganhou o rótulo de activista na defesa dos direitos humanos, sobretudo pelo seu trabalho fora de portas. Esteve envolvido na luta contra o apartheid na África do Sul e foi um dos principais defensores da libertação de Nelson Mandela — foi preso em 1984, por violar uma proibição de protesto, em frente à embaixada sul-africana em Londres. Posicionou-se contra Israel na defesa dos palestinianos, pediu justiça para as vítimas do ditador chileno Augusto Pinochet e foi uma das principais vozes a favor da desnuclearização.
Algumas das causas que o socialista de Islington North defendeu geraram polémica e contribuíram para o surgimento de um certo sentimento adverso à sua pessoa, tanto de fora, como dentro do próprio Partido Trabalhista. Isto porque chamou “amigos” a membros do Hamas e convidou representantes do Sinn Fein, incluindo o seu líder Gerry Adams, a visitar o Parlamento britânico, pouco tempo depois do atentado de Brighton (1984).
A notoriedade de Corbyn assentou, durante muitos anos, quase exclusivamente junto dos sindicatos britânicos. Mas em 1997, a chegada ao n.º 10 de Downing Street de Tony Blair, colega de geração e de partido, e a sua estratégia deliberada de aproximar o Labour do centro, fez nascer o verdadeiro “rebelde”. Diz o Guardian que Corbyn desafiou as decisões do partido por mais de 500 vezes desde que Blair assumiu o Governo.
“Nunca me considerei parte do New Labour”, disse Corbyn, num debate, no início de Junho.
O mais conhecido braço-de-ferro entre ele e a direcção do Partido Trabalhista foi em 2003, quando o deputado deu a cara pelo movimento de oposição à participação do Reino Unido na invasão do Iraque, o “Stop the War Coalition”.
“Outsider”
Corbyn recebeu, quase automaticamente, o rótulo de “outsider” na corrida à liderança trabalhista, quer pela dificuldade em angariar o apoio de 35 deputados para oficializar a candidatura — conseguiu 36, a poucos minutos do final do prazo — quer por uma certa descredibilização, por parte da opinião pública e do seu próprio partido. Representava uma ala do Labour que se dizia estar ultrapassada pela estratégia centrista de Blair, “o mais bem-sucedido líder do partido” (The Independent).
“Corbyn não é um político sério”, escreveu o analista trabalhista Leo McKinstry, no Telegraph, pouco depois de ter sido tornada pública a candidatura do deputado. “Pelo contrário, ele é um trotskista, cujas visões permanecem congeladas desde o final dos anos de 1960”.
Contra Corbyn concorrem Andy Burnham, Liz Kendall e Yvette Cooper, três candidatos mais novos e, assumidamente, mais moderados, todos com experiência dentro do partido.
“O nosso partido tem de voltar a ser um movimento social”, pode ler-se na mensagem que Corbyn deixou no site do Partido Trabalhista, no qual admite que este perdeu parte da sua identidade original. “[O partido] foi fundado para fazer frente à injustiça e, demasiadas vezes, perdemos o nosso rumo, ignorámos os nossos apoiantes e fomos intimidados pelos poderosos interesses económicos e pela imprensa”, acrescenta, lembrando que a força do Labour continua assente na “ligação com as classes trabalhadoras” e com os sindicatos.
Anti-austeridade
A sondagem do YouGov para o jornal Times, e a mais recente, publicada pelo Daily Mirror, dão a liderança e o favoritismo a Corbyn — 43% e 42% das intenções de voto, respectivamente —, o que provocou algum choque junto dos trabalhistas moderados e um certo regozijo aos membros do Partido Conservador e do UKIP (anti-imigração e anti-Europa).
No Reino Unido, muitos são os que duvidam das intenções de Corbyn, nomeadamente se tem uma vontade genuína de lutar para ser o próximo primeiro-ministro — só volta a haver eleições legislativas em 2020 — ou se apenas pretende fazer do Labour um partido de protesto e anti-austeridade.
“Olha-me nos olhos e diz-me, honestamente, se queres ser o próximo primeiro-ministro trabalhista ou se estás na corrida apenas para protestar”, quis saber Yvette Cooper, num debate emitido pela estação de rádio LBC. “Estou nisto para mudar o partido e o país”, começou por responder Corbyn, antes de assumir: “Todos queremos chegar a primeiro-ministro, em 2020, senão não estávamos aqui”.
O certo é a mensagem de Corbyn está a ter sucesso junto dos militantes trabalhistas que vão eleger o próximo líder e nos quais se incluem os sindicatos — Unite e Unison, dois dos maiores e mais importantes do país, já assumiram publicamente que estão com Corbyn — e as associações filiadas, a grande falange de apoio ao deputado.
Para Tim Bale, professor de política britânica e europeia na Universidade de Queen Mary, a popularidade de Corbyn nas sondagens não está relacionada com algo que o deputado “tenha feito ou dito” durante o seu percurso político, mas “pelo que representa”. Uma visão adversa aos Tories, claro, mas principalmente uma posição contrária aos “centristas do New Labour” que se afastaram da esquerda clássica “para o partido ser eleito”.
“Corbyn é o depósito de todas as esperanças e medos das pessoas de esquerda, que vêem a movimentação do partido para o centro como uma cedência”, uma "venda", disse Bale ao PÚBLICO, lembrando que esta situação tem semelhanças com o que se passa na Europa, onde “as pessoas que se sentem desiludidas pelas políticas convencionais” estão mais abertas a “discursos que lhes possam oferecer uma alternativa”.
José Pacheco Pereira, historiador e analista político, também vê com naturalidade o fenómeno de viragem à esquerda por parte dos partidos socialistas europeus, como resultado de uma reacção às políticas de austeridade.
Em declarações ao PÚBLICO, rejeita, porém, que se possa fazer uma distinção clara entre o New Labour, encabeçado por Blair, e um pretenso “Velho Labour”, ao qual Corbyn é associado. Isto porque, diz Pacheco Pereira, enquanto esteve no poder, Blair não conseguiu “desvincular totalmente” o seu Labour da forte tradição popular, descrita na opinião pública britânica como “esquerda da velha guarda”, assente na classe trabalhadora britânica e nas associações sindicais.
Face a estes argumentos, diz o historiador, a popularidade de Corbyn nas sondagens “não é uma surpresa, para quem conhece a fundo o Partido Trabalhista”.
Que futuro?
Liz Kendall, frequentemente rotulada como a “candidata trabalhista dos tories”, devido ao seu posicionamento, mais ao centro que os rivais, catalogou como um “desastre” o cenário hipotético de uma vitória de Jeremy Corbyn. E alguns dos “pesos pesados” do Labour, como Blair ou David Miliband, vieram a terreno alertar para os perigos de um “regresso à esquerda”. Um dos maiores financiadores do partido disse mesmo que, caso Corbyn seja eleito líder, a 12 de Setembro, o partido corre o risco de se dividir.
Na linha de Kendall, também Tim Bale diz que uma vitória de Corbyn seria “um desastre” para o partido. De qualquer forma, o professor britânico não acredita que o partido possa dividir-se, efectivamente, uma vez que aqueles que se colocam no centro-esquerda acreditam que, em última análise, poderá ser “bom para o partido ser estrondosamente derrotado em 2020”, situação que “acabaria de vez” com as facções do Labour que acreditam na esquerda clássica como forma de voltar ao poder no Reino Unido.
As eleições para a liderança do Labour terão lugar entre 14 de Agosto e 10 de Setembro, e os resultados serão conhecidos a 12 de Setembro. Os militantes do partido, apoiantes e os sindicatos registados devem colocar os candidatos por ordem de preferência. O vencedor será aquele que obtiver 50% de todos os votos, num complexo processo de eliminação sucessiva, que termina quando essa proporção for atingida por algum deles.
Independentemente daquilo que o dia 12 de Setembro trouxer para o futuro do Partido Trabalhista, a verdade é que a candidatura de Corbyn à liderança alargou o espectro da “reflexão profunda” que Ed Miliband tinha pedido, no dia em que se demitiu e fez regressar à ribalta do debate político britânico uma esquerda que parecia estar “adormecida”.
Texto editado por Sofia Lorena