A aura de Locarno
Depois de quatro anos de luxo, Locarno 2015 tem uma presença portuguesa mais discreta, restrita à secção de curtas-metragens e a co-produções. Mas há dois filmes nacionais que justificam a atenção.
Numa sequência sem igual nos últimos anos, sucederam-se no certame suíço Gonçalo Tocha com o seu diário açoriano É na Terra, Não é na Lua (2011); João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata com o seu falso noir A Última Vez que Vi Macau (2012); Joaquim Pinto e a sua crónica autobiográfica E Agora? Lembra-me (2013); Pedro Costa e a sua fantasmagoria subterrânea Cavalo Dinheiro (2014). Quatro longas-metragens que souberam aproveitar a exposição garantida pelo certame como “porta de entrada” para o circuito da cinefilia mundial.
Este ano, Portugal não tem nenhum filme nas principais competições de longas-metragens - onde, ainda assim, encontramos uma co-produção portuguesa: Cosmos, do veterano polaco Andrzej Zulawski, rodada entre nós com actores e equipa locais e produção de Paulo Branco. (Uma outra longa co-produzida aparece no concurso paralelo Cineasti del Presente - Olmo & The Seagull, docu-ficção da brasileira Petra Costa e da dinamarquesa Lea Glob, com chancela O Som e a Fúria, a estrutura por trás de filmes de Miguel Gomes, Salomé Lamas ou Manoel de Oliveira). O calendário não terá ajudado - sabendo das limitações à produção dos últimos anos, contar-se-iam pelos dedos os filmes possíveis (o candidato mais evidente, Montanha, de João Salaviza, surgiu entretanto no alinhamento da Semana da Crítica de Veneza).
No entanto, haverá filmes portugueses em Locarno. Fora de concurso, serão exibidas em sessão conjunta as três mais recentes curtas produzidas no programa Campus do Curtas Vila do Conde. O Curtas tem há muito uma relação privilegiada com Locarno – mais recentemente, as quatro curtas comemorativas dos 20 anos do certame, dirigidas por Helvécio Marins Jr., Sergei Loznitsa, Thom Andersen e Yann González, tiveram aí a sua estreia internacional. E os três realizadores dos novos filmes encaixam na perfeição na “aura” de Locarno como festival atento a países “periféricos”, que procura para lá da superfície e da evidência. Sandro Aguilar (Undisclosed Recipients, retrato fantasmático do festival de Paredes de Coura) e o espanhol Lois Patiño (Noite sem Distância, evocação dos contrabandos fronteiriços com Espanha) já são repetentes do festival suíço; Manuel Mozos (A Glória de Fazer Cinema em Portugal, inspirado pelas aproximações ao cinema do escritor José Régio) tem o perfil internacional em ascensão.
No concurso oficial de curtas-metragens, Pardo di Domani, encontramos a polaca Jola Wieczorek com a curta documental que realizou em Portugal no âmbito do curso de documentário pan-europeu DocNomads, O Que Resta; e Maria do Mar, de João Rosas, que recebeu a notícia da sua selecção logo antes do prémio de Melhor Curta Nacional em Vila do Conde.
Não é, dir-se-á, uma representação “de peso”, sobretudo quando comparada com os anos anteriores. Não é. E não é certo que o facto de ser uma representação mais diversificada, com especial incidência no circuito tradicionalmente secundário de curtas-metragens, compense a ausência de um título “de peso” que concentre em si a atenção mediática. Mas acaba por espelhar, de maneiras curiosas, a própria multiplicidade de facetas de uma produção nacional que teima em sobreviver o melhor que pode, de muitas maneiras diferentes e possíveis. A esse respeito, os filmes de Rosas e Mozos inscrevem-se numa linhagem muito mais “acessível”, mais “narrativa”, que não é geralmente identificada com a tendência autoral do cinema que tem granjeado mais renome lá fora.
De certa maneira, foi isso que nos levou às conversas com os dois realizadores: face ao cinema português que se projecta lá fora (de que Miguel Gomes será o melhor exemplo recente), onde se inscrevem estes filmes, estes cineastas?