“Se tivessem dignidade, já se tinham demitido”
Lourenço Fernandes Thomaz lança duras críticas à actual direcção da FPR e afirma que a saída de Tomaz Morais e restantes treinadores peca por tardia
Líder do CDUL e uma das vozes mais respeitadas do râguebi português, Lourenço Fernandes Thomaz considera que está na altura de proceder a mudanças profundas na modalidade. Após um “annus horribilis”, o presidente dos vice-campeões nacionais afirma que há “muitos tachos” na Federação Portuguesa de Rugby (FPR) e diz que os actuais dirigentes e técnicos federativos, se “tivessem dignidade e o mínimo de carácter, já se tinham demitido”.
O que é que se passa com o râguebi nacional?
O que se passa no râguebi nacional pode surpreender muita gente, mas a mim não. Não foi este mau torneio da selecção de sevens em Lisboa que provocou esta hecatombe. Isto resulta de uma degradação de tudo, desde os resultados desportivos à maneira de gerir o râguebi, que ganhou maior repercussão por causa de uma entrevista que o presidente da FPR deu após mais um objectivo falhado. Para quem estava atento, não há qualquer surpresa. Em 2006-07 estávamos em 16.º lugar do ranking da World Rugby, em 2010 éramos 19.ºs, em 2012 23.ºs e agora somos 29.ºs, a pior classificação de sempre. Olhando para os sevens, onde fomos oito vezes campeões europeus, agora é um cliché dizer que os outros estão a evoluir muito, mas nós nunca tivemos um investimento tão grande. Os campeonatos nacionais não têm competitividade, não têm nada. Há equipas que ficam oito a nove meses à espera de um ou dois jogos. O terramoto já não é de hoje. Tivemos cinco treinadores da selecção nacional de XV em cinco anos e uma dezena de vice-presidentes da federação que se demitiram. Não há estratégia e andamos a saltar de objectivo em objectivo.
E esses objectivos têm sido falhados?
Esta federação falhou todos. Entrou à pressa a meio de um apuramento para o Mundial 2011 e, antes de este presidente entrar, tínhamos vencido a Roménia, empatado com a Geórgia e perdido com a Rússia. Estávamos em 2.º lugar, posição de apuramento, e deitaram tudo a perder porque ficámos fora dos três primeiros e não nos qualificámos. A seguir foi o Mundial 2015 e foi dito pelo presidente que se falhasse esse objectivo demitia-se. Voltámos a falhar. Surgiram depois os Jogos Olímpicos, novo falhanço. Nos sevens conseguimos manter-nos no Circuito Mundial, sempre como 14.º, mas antes de esta direcção entrar não havia este modelo com equipas residentes.
Nessa entrevista à Bola TV, Carlos Amado da Silva, para além de referir que “não aconteceu nada de mais”, diz também que era tudo “previsível”…
E não fez nada para evitar o desastre? Essa entrevista deixa-me bastante triste e tenho muita pena do que aconteceu nesses 12 ou 13 minutos. Para quem pratica e gosta, o râguebi é um desporto diferente e aquilo foi contra todos os valores do râguebi. O presidente da federação disse mais de 30 vezes a palavra “eu”: “Eu fiz isto”; “Eu não fiz aquilo”; “Eu dei todas as condições”. O râguebi não é isso. O râguebi é um desporto de equipa. Qualquer gestão de um clube ou federação tem que ser feita por uma série de pessoas e não apenas uma pessoa. Como é que se passa um espírito de equipa para dentro de campo se não há esse espírito em que tem responsabilidades? Essa entrevista foi tão vergonhosa, que depois de ser colocada no Facebook da federação recebeu tantos comentários negativos que foram sendo apagados, que o post acabou eliminado. Isto mostra que está tudo doido. Não estamos na Coreia do Norte. As pessoas têm direito a ter a sua opinião. Uma marca que faz isto, e Portugal Rugby é uma marca, está a cometer suicídio. Basta perceber um pouco de comunicação para saber isso.
O presidente da FPR diz que as suas responsabilidades são “administrativas” e que o responsável pelos maus resultados é o director técnico nacional. Tomaz Morais é o único culpado?
Como é que não tem responsabilidades desportivas? A culpa é do Tomaz Morais, mas quem é que o escolheu? Quem aprovou os seleccionadores? Quem geriu a parte desportiva da federação? Foi o presidente e a sua direcção. Não há volta a dar. A máxima responsabilidade tem que ser sempre do presidente. Dou-lhe um exemplo: sou presidente do CDUL e neste modelo de campeonato sempre disse que queria levar o CDUL a todas as finais. Na época passada, perdemos a final do campeonato contra o Direito e após o jogo coloquei o meu lugar à disposição aos restantes membros da direcção. O maior responsável por essa derrota fui eu, que sou o responsável máximo pelo CDUL. Treinadores e jogadores também têm culpa, mas quem está no topo da pirâmide é o presidente. O que se viu nessa entrevista foi uma desresponsabilização total que me deixou maldisposto. Foi um lavar de mãos como eu nunca vi no râguebi.
Carlos Amado da Silva garante que deu todas as condições para haver sucesso…
Mas quais condições? Deu competitividade interna aos campeonatos? Não. Organizou algum torneio nacional de jeito de sevens? Não. Proporcionou à selecção de XV jogos competitivos? Não.
Um dos jogos disputados pela selecção de XV foi no Quénia e resultou numa derrota humilhante. Compreende a realização dessa viagem?
Perder 41-15 com o Quénia é uma desgraça e, como pessoa do râguebi português, tive vergonha, mas tudo o resto que envolve essa viagem é dantesco. Quando o presidente diz que deu todas as condições, que tem a casa organizada e que só não controla a parte desportiva, como é que é possível uma selecção que está a representar Portugal viajar para o Quénia, um país inseguro com atentados e guerras constantes, chefiada por um team manager? Se tivesse acontecido algum incidente, como teria sido? Não estava ninguém da direcção presente? Pior: entra na cabeça de alguém que cinco ou seis jogadores tenham viajado para o Quénia, que tem milhares de doenças, sem ter as vacinas em dia? Dois eram do CDUL e sei de mais três ou quatro. Isto não é desporto. Ultrapassa todos os limites de uma entidade que quer ser levada a sério. Os 41-15 foram péssimos, mas comparados com o resto…
Perante tudo isso, o que deveria fazer o presidente da federação?
Depois do que aconteceu, depois deste annus horribilis, que é uma consequência do que se passou nos anteriores, qualquer pessoa minimamente decente — incluo aqui o presidente, a direcção, o director técnico, os treinadores e todos os que faziam parte da estrutura — tinha colocado o lugar à disposição. Com isso poupava-se ao râguebi nacional este vexame e esta vergonha de andarem a sacudir a água do capote de uns para os outros. Se tivessem dignidade e o mínimo de carácter, já se tinham demitido. Infelizmente há muitas teias montadas, muitos tachos para agarrar. Não foi assim que fui educado pelo meu avô, que trouxe o râguebi para Portugal.
Inclui Tomaz Morais nesse grupo?
Sem dúvida. Esta reestruturação já devia ter sido feita há muito tempo. Esta estrutura desportiva nunca devia ter entrado por estar gasta, cansada e ter uma teia montada entre ela própria. Mas este timing é péssimo e é um presente envenenado…
Refere-se à anunciada contratação de um treinador francês para a selecção de XV?
Não sei se perante os estatutos é legal contratar um seleccionador a dois meses e meio das eleições, mas se for, o meu conselho é que os alterem. Isto é muito mau para o râguebi português.
As suas críticas estendem-se à gestão financeira?
Não faço ideia de como estará a situação financeira, mas pelo que tenho ouvido e visto, bem não deve estar. Com a má imagem que tem passado, a federação tem que estar preocupada com os seus patrocinadores. Para estar bem financeiramente, tinha que ser bem gerida, mas como é que se pode fazer uma boa gestão se numa entidade com recursos limitados há um treinador, que é o Frederico Sousa, a receber 70 mil euros por ano para estar numa prateleira dourada sem fazer nada? Isso é gerir bem? Agora vai sair o Tomaz Morais, mas como é professor e está requisitado, provavelmente também vai para a prateleira olhar para os outros.
Leia a segunda parte da entrevista carregando aqui