Descuido, contrabando, evasão e bónus
Quando nos descuidamos com um prazo, e basta uns dias, seja do IMI na habitação ou do IUC do carro, levamos logo com uma coima, as custas processuais (cujo valor é muito superior ao custo da carta automática que nos enviam para casa incluindo a amortização do sistema e equipamento informático que a produziu), os juros de mora, isto tudo sem pré-aviso. No caso dos seguros privados, recebemos antecipadamente em casa antes uma carta com a factura com a data limite para pagamento. Tratam-nos com atenção, porque sabem que precisam da nossa fidelização como clientes. No caso da AT só quem se inscreve no portal das finanças para receber esses avisos é que é avisado. Mas quantos cidadãos estarão inscritos? E quantos idosos já se desligaram, ou nunca estiveram ligados à internet? A AT trata-nos a nós, cidadãos cumpridores mas, por vezes, descuidados, com autoridade. O Estado é uma entidade monopolista na cobrança de impostos, o que significa que não tem que nos conquistar enquanto clientes. Mais que cidadãos, somos súbditos que têm de obedecer e cumprir quando se enganam e se, por acaso, acharmos que o Estado se enganou, teremos que entrar numa burocracia complicada para fazer valer os nossos direitos. Mas poderia isto ser de outra maneira? Sim, acho que podia, mas deixarei isso para o fim do artigo.
Fiquei pois curioso de ver como vai a execução orçamental nesta rubrica que surge pela primeira vez nestas análises. Comparando os dados do primeiro semestre de 2014 com o de 2015, a receita fiscal cresceu 3,8%, a receita não fiscal 12,4%, nesta as “Taxas Multas e Outras Penalidades- TMOP” 29% e aqui a rubrica “Outras Multas e Penalidades Diversas” cresceu 88%. Sim, leu bem, a rubrica onde vai parar grande parte dos frutos do seu descuido está a crescer bem. Nas coimas, 90% vai para o orçamento da AT e o remanescente para o Fundo de Estabilização Tributária (FET) e ajuda a tapar o défice. De acordo com uma estimativa ainda provisória, a receita das TMOP ultrapassa as expectativas para este ano, permitindo colocar a nossa estimativa para o défice, sem medidas extraordinárias muito perto dos 3% do PIB, ou seja semelhante à estimativa da Comissão Europeia que é 3,1%.
2. Se a AT fosse mais branda com os cumpridores mas descuidados, como acho que deveria ser, a receita não fiscal cresceria um pouco menos pelo que seria necessário encontrar receita noutras fontes. Um sítio para onde se deve olhar é para o potencial contrabando de tabaco. O imposto que maior quebra percentual terá este ano, em relação ao orçamentado, é o do Tabaco. E isto não se deve apenas a sobre orçamentação, mas a uma queda efetiva nas receitas. Dado que o tabaco é um dos bens de procura rígida, esta quebra não pode ser explicada pela queda do consumo mas, pelo menos parcialmente, pelo contrabando. Outro sítio para onde se deverá olhar é para a evasão fiscal na restauração que, estou certo, terá aumentado significativamente com a subida do IVA da restauração. Caso haja uma mudança de políticas e o IVA voltar à taxa intermédia, acho que se deve tornar obrigatória a utilização de multibanco em casas onde, através de métodos indiciários ou outros, se prove que o volume de faturação é significativo. Causa-me muita estranheza que certos restaurantes da capital com bastante freguesia mantenham, ano após ano, o “não temos multibanco”. Este princípio não se deveria aliás limitar à restauração, mas antes ser estendido a outras áreas.
3. Tem havido algum alarido em torno da devolução de parte da sobretaxa do IRS, com a criação de um simulador por parte do governo, o que só se pode explicar por um misto de época pré-eleitoral e de estarmos a entrar na silly season de agosto. Na realidade o valor de uma eventual restituição parcial da sobretaxa é muito inferior ao que o governo cobra a mais com os descuidos dos cidadãos. É importante relembrar que o princípio da devolução da sobretaxa, como está formulado, e caso as nossas previsões sobre a receita estejam corretas, não faz sentido. O Orçamento de Estado é feito para afectar recursos públicos a vários usos. Havendo uma meta para o défice, e uma previsão para as despesas, as receitas devem ser as necessárias para atingir essa meta. Ora, em primeiro lugar, é necessário olhar para a evolução das despesas e quando se olha para as receitas, mesmo as fiscais, é necessário olhar para a totalidade das receitas. O que as nossas previsões consistentemente indicam é que as receitas fiscais serão inferiores ao orçamentado, apesar de o IVA ter um comportamento melhor que o esperado, sendo que dado que os reembolsos estão a ser inferiores ao período homólogo, a cobrança líquida é superior.
4. Algo que continua a preocupar do lado da despesa, e que necessitará ser bem acompanhado nos anos vindouros, é o sector público empresarial, nomeadamente o que está dentro do perímetro orçamental. As necessidades de reforço das dotações de capital destas empresas reclassificadas foi já de 1583,7 milhões de euros, o que significa que o Estado tem de aumentar a dívida para financiar esta aquisição de ativos financeiros, ou usar parte dos depósitos no tesouro. De qualquer modo a dívida líquida do Estado aumenta. Para além disso, o contributo direto para o défice público destas empresas era em Junho de 638 milhões. Aqui está um tema que o próximo governo terá que continuar a acompanhar.
5. A existência de incentivos para uma eficácia do fisco em relação à fraude e evasão é de saudar. Porém, isto deve ser distinguido da situação dos cidadãos que são cumpridores, mas que eventualmente não cumprem pontualmente as suas obrigações fiscais. Isto significa que deve haver uma mudança de cultura no fisco. Tem que haver mecanismos que revelem a satisfação (ou não) dos cidadãos contribuintes. Uma parte dos incentivos na AT deve estar alinhada com o cumprimento de metas na área do combate à fraude e evasão fiscal, mas outra parte deve estar relacionada com o grau de (in)satisfação dos contribuintes. Fazer um esforço para nos tratarem como cidadãos, e não como súbditos, ajudará à nossa felicidade.
Professor do ISEG/ULisboa, Presidente do IPP-TJCS candidato independente nas listas do PS no círculo de Setúbal