A noite em que Sines foi do rap chileno e do rock maliano
Com as actuações da chilena Ana Tijoux e dos malianos Songhoy Blues, o Festival Músicas do Mundo ganhou mais dois concertos brilhantes para emoldurar e colocar na parede das melhores memórias. Não espantaria que a melhor noite do FMM 2015 tivesse acontecido esta quinta-feira.
Esse tema de Violeta Parra, um dos símbolos maiores da canção política chilena, seria interpretado pela cantora angolana Aline Frazão no Castelo de Sines, tendo-lhe vindo à memória ao receber também ela uma mensagem há mais de um mês informando-a de que Luaty Beirão (músico do colectivo Batida) e outros 14 activistas tinham sido presos por ordem do Ministério do Interior angolano.
Alina desabafou que “a História é irónica e repetitiva”, e disse um por um os nomes dos 15 activistas antes de avançar, a solo, com a sua mais arrebatada interpretação da noite, acrescentando que o sentido dessa sua escolha era reforçado pela actuação que se seguiria de Ana Tijoux.
Horas mais tarde, num dos dois esplendorosos concertos da noite que hão-de ficar para a história do Festival Músicas do Mundo, Tijoux conquistaria o público com um hip-hop que nunca tropeça num discurso mole, em que cada palavra é reivindicativa, politizada, e em que cada tema assume uma posição. Mas a rapper chilena fá-lo não como um monólogo lamuriento de alguém amargurado com o mundo e desesperançado com as situações à sua volta, antes convocando quem tem pela frente para dentro do seu discurso. Tanto assim que em Sacar la voz, depois de uma longa introdução em que se referiu à importância da palavra na cultura chilena e de brandir essa mesma palavra contra a crise, a corrupção na política e um sistema que se impõe e controla pelo medo, avançou para o tema e, em reacção ao seu discurso, teve como resposta um coro popular quando a canção parecia já ter terminado. A imagem era óbvia: a de uma passagem de testemunho – do palco para a assistência, de uma voz para outra, até serem muitas.
É sempre esse efeito de contágio e de partilha colectiva que Tijoux propõe. Desde logo, quando arranca o concerto com Antipatriarca, canção abertamente apontada contra uma sociedade arquitectada no masculino, mas também quando depois visita 1977, exemplo da sua reclamação como parte da vida do seu país, Vengo, claro na incorporação recente de sonoridades latino-americanas no seu fluxo hip-hop, ou Shock, tema maior da sua discografia, libelo alinhado com os protestos estudantis de 2011 que reclamavam um acesso universal à educação no Chile.
O final quase punk à la Manu Chau com o excelente Somos Sur (um hino à insubordinação e em defesa da Palestina) tratou de deixar claro que entre Portugal e Ana Tijoux está a nascer um amor recíproco.
O Mali como nunca o ouvimos
Não será exagerado dizer que antes de Ana Tijoux, também os malianos Songhoy Blues gravaram o seu nome no livro de honra do festival. Foi seguramente um dos melhores concertos a que o FMM alguma vez assistiu, feito de uma simplicidade quase impossível: depois de uma longa convivência com a música de guitarras do Mali, percebemos na quinta-feira que até agora o que nos tinha chegado tinham sido sempre blues e rock temperados pelo deserto, mas nunca assim tão directos e desprovidos de encenação. O quarteto formado em Bamako não traja roupas exóticas, não lança aqueles gargarejos típicos de quem chama alguém que se encontra duas ou três dunas adiante; são apenas quatro rapazes com guitarras, baixo e bateria que sobem ao palco para tocar rock. E, acredite-se, nunca antes Sines tinha rockado assim.
Se é possível seguir sem dificuldade de maior o trilho com as pistas deixadas por Led Zeppelin ou Jimi Hendrix, temas explosivos como Soubour, Al Hassidi Terei e Irganda jamais poderiam ter nascido se não no Mali. Difícil de descrever a espantosa vitalidade que existe no virtuosismo de Garba Touré na guitarra e o fulgor inesgotável do vocalista Aliou Touré, muito mais eficaz em concerto do que em disco, dir-se-ia, ainda assim, ter-se assistido a um sublime encontro musical entre Jack White a Ali Farka Touré.
A vida não ficou fácil para quem teve de subir ao palco depois de Ana Tijoux e dos Songhoy Blues, e o high-life/funk dos Ibibio Sound Machine, apesar de servido num ritmo furioso e com um invejável poderio sonoro, e mesmo tendo soado menos plástico do que há um mês no Largo do Intendente (no Lisboa Mistura), pouco pôde ombrear com aqueles dois exemplos de uma música carregada de verdade. O projecto da cantora Eno Williams, Lagos via Londres, soa muitas vezes demasiado perfeito, anestesiando com tamanha competência.
Ao contrário de Vaudou Game, curiosamente, que depois das duas da manhã aterrou no palco junto à Praia Vasco da Gama para assumir a filiação de Peter Solo em James Brown e largar sobre o público um notável espectáculo de funk togolês, alternando entre a evocação endiabrada de Brown e toda uma lição sobre a cultura vudu, com direito a excertos de rituais locais transformados para guitarra e jogos vocais de chamada e resposta entre Solo e a sua banda francesa.
A noite ainda seguiria para a Coreia do Sul, à boleia dos Idiotape, mas ficando-se por aqui seria apenas um pouco menos do que perfeita.
Quarta-feira de saxofones
Na quarta-feira, a noite de Sines ficou por conta de saxofones incendiários. Sobretudo o do francês Guillaume Perret, músico que se lançou pela Tzadik de John Zorn em 2012, e cujo saxofone tenor, por alguma razão plenamente justificada, emite uma luz vermelha de dentro da campânula. Parece um aviso de que nenhum som que possa vir do instrumento ficará aquém do diabólico. E é, de facto, uma actuação infernizada aquela a que se assiste no Castelo de Sines. A estrela da noite, de acordo com o cartaz, é o incansável Dele Sosimi, antigo companheiro de Fela Kuti, e a sua Afrobeat Orchestra. Sosimi e a sua armada nigeriana e inglesa não desiludem, mas também não surpreendem quem os tenha visto em 2009 no FMM, na altura entregues à animação da aldeia de Porto Covo.
Mas a surpresa, num festival que vive disso, joga-se inteiramente no campo de Perret e da sua formação Electric Epic, uma violenta empreitada musical em que o saxofone é processado por uma gama de efeitos habitualmente ouvidos na guitarra eléctrica (distorção, wah-wah, etc…) e surge sempre a cavalgar temas de rock pesado, com cedências mínimas ao funk e a desenhos melódicos arábicos. Em parte, aquilo que o saxofonista faz, na intensidade e na capacidade de virar um tema do avesso num segundo, lembra a forma estilhaçada que popularizou em tempos os Mr. Bungle, com a diferença de que aqui não há voz nem prazer patológico num varrimento enciclopédico de géneros musicais.
O outro saxofone incendiário caberia a Arturo Santillanes, líder dos Troker, que no final da tarde juntariam jazz, rock, hip-hop e música de raiz mexicana num concerto equilibradíssimo em termos de admirável proficiência instrumental e apurado sentido de espectáculo. O dia, no entanto, havia já começado com um concerto que, ao contrário das passagens de Thea Hjelmeland e dos La-33, é merecedor de atenção. A voz enorme do fadista Ricardo Ribeiro ocuparia o palco do Castelo na companhia, entre outros, do guitarrista Ricardo Rocha, repetindo uma parceria que, ao vivo, se ouvira há um ano no festival Bons Sons. E há algo de muito particular e especial quando estes dois se juntam porque, nos momentos em que os discursos estão sintonizados, observamos dois concertos em paralelo que não se anulam – o canto de fibra gitana do fadista, como que tomado pelo mesmo transe que impelia o paquistanês Nusrat Fateh Ali Khan, e a execução atraída pelo abismo do guitarrista. Quando acontece, assiste-se a uma espécie de big bang controlado, dois corpos numa genial luta sem vencedor.