Seria “odioso” retirar filhos aos pais por falta de apoios do Estado às famílias

O PÚBLICO ouviu especialistas sobre a mais recente decisão no processo da mãe a quem foram mandados retirar sete filhos. Rui Pereira diz que os tribunais não se podem substituir às falhas das políticas sociais. Rui Rangel considera que “este é um processo assustador para as crianças”.

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Liliana Melo está a trabalhar desde Junho de 2012 e tem dito em várias ocasiões que tem condições para ficar com os filhos Rui Gaudêncio
Rui Pereira tem dúvidas sobre constitucionalidade dos projectos
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Rui Pereira: “Quem falha aqui, à partida, não são os tribunais" Pedro Cunha

O caso chegou ao Supremo Tribunal de Justiça (STJ) no ano passado. E, tal como o PÚBLICO noticia na edição desta terça-feira, os juízes pronunciaram-se recentemente: não encontraram qualquer ilegalidade nas decisões proferidas. Espalhadas por diferentes instituições de acolhimento, tendo em vista a sua futura adopção, durante quase três anos as crianças não viram a mãe. E foi assim até ao último mês de Março.

Entretanto, voltaram a contactar com ela porque o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem considerou que o Estado português tinha de garantir um regime de visitas, provisório, que permitisse a Liliana visitar os filhos e aos vários irmãos contactarem uns com os outros. Até que houvesse um desfecho judicial. Agora, arriscam-se a ser definitivamente separadas — ainda que a defesa já tenha apresentado um recurso para o Tribunal Constitucional da decisão do STJ.

“Este é um processo assustador para as crianças”, diz Rui Rangel, da Associação de Juízes pela Cidadania, lamentando a lentidão da Justiça e sublinhando que uma eventual integração futura destas crianças em famílias adoptivas está hoje mais prejudicada. “É absolutamente perturbador.”

Já Rui Pereira, cujo observatório a que preside foi criado por elementos das forças de segurança e académicos para prevenir os maus tratos contra crianças, é mais cauteloso. Diz que “devem ser os médicos, os pedopsiquiatras” a avaliar se, num caso destes, que se arrasta no tempo, as visitas dos pais prejudicam os menores acolhidos, e não os juízes ou os juristas. A criança mais nova tinha seis meses quando foi para uma instituição, e está agora a caminho dos 4 anos; o mais velho ainda não tinha 8 anos e tem agora 11.

Sublinhando que está “em desvantagem”, em relação aos tribunais, no que diz respeito ao conhecimento da história desta família, Rui Pereira lembra que “quer a Constituição da República Portuguesa quer a Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo contemplam a família como o núcleo fundamental da sociedade”, que a retirada das crianças surge “quando há situações de risco, como violência doméstica, exploração laboral, perigo de ofensa à integridade física e sexual, por exemplo”, mas que “a insuficiência económica é a fronteira”.

O também ex-juiz do Tribunal Constitucional admite que “a decisão do STJ pode ser (não sei se foi) originada por uma falência das políticas sociais do Estado de apoio às famílias, o que é grave”. E acrescenta: “Quem falha aqui, à partida, não são os tribunais, que provavelmente entenderam que havia uma situação de perigo para as crianças, mas o Estado, nas suas políticas sociais, tem de criar alternativas a estas decisões de retirada dos filhos às famílias quando estão em causa insuficiências económicas.”

“Um problema humano”
Rui Rangel, por seu lado, questiona: “Estamos no domínio do ser ou do dever ser?” E responde: “Temos o Estado que temos. Temos um problema grave de demografia e o Estado não tem políticas de incentivo à natalidade, por exemplo. O Estado não tem políticas de apoios para este tipo de situações.” De resto, “está por provar” que o problema, no caso de Liliana Melo e da sua família, “seja apenas económico”. É que, sublinha: “Eu não posso ter os filhos que quero, posso ter os filhos que tenho capacidade para ter.” E Liliana Melo teve 10. “As pessoas têm direito a terem os filhos que quiserem se tiverem condições para os criar com dignidade.”

O juiz desembargador elogia por isso “a coragem do Supremo Tribunal” de manter as também “corajosas” decisões primeiro do Tribunal de Sintra, em Maio de 2012, depois do Tribunal da Relação de Lisboa, em Dezembro de 2013 e em Abril de 2014.

Marcado desde o início pela polémica — desde logo porque do processo de protecção das crianças que havia sido imposto à família constavam várias medidas que Liliana Melo devia cumprir, e não cumpriu, que iam desde a obrigação de manter a casa limpa à laqueação das trompas — o mais recente capítulo desta história continua, assim, a suscitar opiniões muito diversas.

“Um problema humano foi criado. Não houve violência, não houve agressões, foram referenciados laços de afecto, e como sociedade não fomos capazes de responder a uma questão económica”, diz Ana Cid Gonçalves, da Associação Portuguesa de Famílias Numerosas. “Vamos aguardar para ver o que acontece com o recurso no Constitucional.”

O STJ, no acórdão facultado ao PÚBLICO, passa em revista as dificuldades apresentadas pela família: em 2007, começou a ser acompanhada. Não havia registo de maus tratos físicos, recorda-se nas sucessivas decisões dos tribunais. Fala-se de fortes laços na família. Mas registava-se desorganização da mãe, que não tinha emprego na altura, falta de higiene, problemas graves na habitação, vacinas em atraso, ausência das crianças mais novas do infantário, carências económicas e uma sucessão de gravidezes de Liliana, por vezes não vigiadas. Uma das filhas menores também engravidou, aos 13. Em 2009, ao acordo de protecção das crianças foram acrescentadas novas medidas. O marido de Liliana, pai de seis das sete crianças, muçulmano, religião que ambos professam, devia procurar trabalho remunerado. O casal devia ainda tratar da legalização e documentação de todos os elementos da família — que não recebia Rendimento Social de Inserção.

“Ilegal e injusto”
Mais: Liliana devia provar que estava a ser acompanhada num hospital tendo em vista a laqueação de trompas, algo que sempre se recusou a fazer. Por incumprimento do acordo, em 2012, o Tribunal de Sintra mandou retirar as crianças — sobre a questão da laqueação das trompas, o STJ defende que é “desadequado e impróprio” invocar-se a violação de “preceitos constitucionais”, como fizeram as advogadas de Liliana, porque a decisão dos tribunais não teve “como suporte” esse acordo.

A 8 de Junho de 2012 a polícia foi a casa de Liliana e, cumprindo a decisão do tribunal de Sintra, levou seis menores. O sétimo estava na escola na altura e não foi localizado. Vive fora, com familiares.  

Paula Penha Gonçalves, uma das mandatárias de Liliana, não quer fazer comentários, sem uma autorização da Ordem dos Advogados. Estranha que o STJ tenha divulgado a sua decisão agora, quando foi apresentado um recurso. O processo não chegou ao fim, diz. Acrescenta apenas: “O que nos faz lutar neste caso é acreditar que a matéria de facto que é sempre repetida [nos acórdãos] foi obtida num julgamento ilegal e injusto sem direito ao contraditório.” Um “direito ao contraditório” que o STJ entende que existiu.

Já Rita Lobo Xavier, professora de Direito na Universidade Católica, começa por lamentar que “a morosidade da Justiça ponha em causa todo o tempo das crianças”. Sobre o acórdão do STJ diz que está incompleto. É que, sustenta, “os filhos têm o direito de ser retirados das situações de perigo” mas “também têm o direito à ligação familiar” e a professora acha que o STJ não ponderou devidamente o direito à vida familiar face ao perigo que existia.

Liliana Melo está a trabalhar desde Junho de 2012 e tem dito em várias ocasiões que tem condições para ficar com os filhos.

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