Quem pode ver a arte comprada com o dinheiro público?
É sempre pequeno embarcar em soluções caracterizadas pelo provincianismo e atitudes paroquiais.
A exposição inaugural do novo espaço do MNAC não foi, no entanto, nada do previsto.
Como co-curadora da exposição que foi idealizada e produzida ao longo dos últimos meses, sinto o dever público de esclarecer aspectos que considero essenciais.
A curadoria nas artes visuais assenta na criação de um conceito, uma ideia, em torno da qual se desenvolve um projecto, neste caso expositivo, em articulação com a criação textos que traduzem e reflectem a nível teórico o projecto e as obras que lhe dão corpo. É um trabalho autoral com competências próprias. O conceito de Narrativa de uma coleção (título da exposição em causa) estava precisamente explícito no subtítulo original da mesma: “o legado da coleção da Secretaria de Estado da Cultura ao MNAC”, isto é, o conceito deste projecto e a seleção de obras realizada tiveram por mote a coleção do MNAC, e a importância do novo legado perante as suas lacunas e necessidades.
Iniciada em 1976, a política de aquisições da coleção SEC recuou até início do século XX em situações pontuais, mas a preocupação maior centrou-se na aquisições de obras referentes aos anos de 1960 e no desenvolvimento da coleção daí em diante. Coincidentemente, o período de menor atualização da coleção do MNAC correspondente precisamente ao de maior relevância da coleção SEC, os anos 60, 70, 80 do século XX.
A sua integração no acervo do Museu Nacional de Arte Contemporânea, permite colmatar lacunas de artistas como Pedro Cabrita Reis, Eduardo Batarda, Ana Vieira, Salette Tavares, Rui Sanches, Joaquim Bravo, Pedro Casqueiro (dos quais não existe nenhuma obra inventariada no MNAC), e dotar o museu de núcleos autorais, caso de Paula Rego, Nikias Skapinakis, Rui Chafes, José Pedro Croft, Julião Sarmento, entre muitos outros exemplos.
Inicialmente, o plano para a exposição Narrativa de uma Colecção teve o intuito de seleccionar obras a partir dos anos 60 até ao século XXI, incluindo parte da coleção realizada pelo Instituto de Arte Contemporânea (que surge em 1996 sob a direcção de Fernando Calhau) e que também estava integrada neste plano de incorporação no MNAC. Porém, o espaço existente revelou-se insuficiente, uma vez que as obras posteriores a 1990 correspondem na sua maioria a instalações e vídeos. Para tal seria necessário ocupar o espaço do museu nos seus dois edifícios! (O actual alargamento é muito importante, mas não resolve em definitivo o problema de espaço do Museu Nacional de Arte Contemporânea).
Foi então decidido pelos curadores, David Santos e eu, que a exposição reportaria apenas ao período de 1960 a 1990. O critério electivo procurou ter uma representatividade alargada de artistas mas foi, essencialmente, determinado pelas obras de maior qualidade estética e interesse histórico para o MNAC, havendo por isso artistas com mais do que uma obra, sem que tal procurasse constituir núcleos autorais. A maioria das obras escolhidas eram pinturas, mas existiam também esculturas e objectos, fotografias, instalações e diversas obras em papel a confirmar a diversidade de abordagens na arte portuguesa desses anos.
Narrativa de uma coleção iria assumir-se como uma mostra inédita, por nunca se ter reunido um núcleo tão substancial de peças da coleção SEC para apresentação ao público. Seria, portanto, a primeira oportunidade para ser vista uma parte da coleção criada durante várias décadas pelas entidades governamentais responsáveis pela pasta da cultura, entretanto dispersa em vários espaços. O projecto curatorial foi trabalhado no sentido de uma narrativa aberta da coleção, em alternância, com várias sequências. A proposta visual visava estabelecer relações e diálogos, que proporcionassem uma melhor compreensão da arte realizada em Portugal nestas três décadas e das obras exemplares que esta coleção detém em relação a este período. A montagem procurava agrupar e conjugar linguagens artísticas com maior afinidade formal, o que resultava numa proximidade temporal.
A exposição que inaugurou no passado dia 15 de Julho manteve o título, todavia a mostra nada tem a ver com este projecto. Não tem porque, em primeira instância, o projecto Narrativa de uma Colecção foi fruto de uma co-curadoria, minha e do David Santos. Com a demissão de David Santos do cargo de director e da função de curador, obviamente eu não iria arrogar-me de um projecto que não era só meu e, como tal, assumi também uma posição demissionária da curadoria da exposição. A minha solidariedade é, em primeira instância, com a instituição onde exerço funções, o MNAC, que resultou prejudicada no processo que já é do domínio público mas, neste caso, também com David Santos, que, tal como eu, não aceitou que se cortasse dos textos curatoriais a única frase que justificava que a inauguração do novo espaço do MNAC fosse feita com a coleção SEC: “incorporação da coleção SEC no Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado”.
Como é que a simples TRANSCRIÇÃO de um despacho do SEC pode ser objecto para tanta controvérsia?!
Esta exigência de truncar os textos de catálogo, texto de parede, textos para divulgação, sob risco de revogação do despacho, chega quando quase metade da exposição já estava montada. Era absurdo que todo o projecto desenvolvido ficasse destituído de sentido. E, como tal, impossível de aceitar por violar os princípios éticos, de rigor, das competências autorais do curador, e as suas obrigações na relação com o público. Os visitantes vinham ao MNAC para ver o quê? Uma itinerância de obras em depósito em Serralves? David Santos, depois de saber da revogação do despacho, foi levado a dar indicações para cancelar a exposição. As obras que já estavam montadas foram retiradas da parede e guardadas. O projecto para o qual tínhamos dedicado o nosso trabalho dos últimos meses tinha ruído.
Nessa altura, sem curadores para montar a exposição, a Direcção-Geral do Património Cultural tomou as rédeas do assunto, determinada a inaugurar dia 15, com uma exposição que deixara de ter a ver com o MNAC. De forma inédita e surpreendente foi chamada uma equipa de Serralves. Aproveitando-se os pregos e parafusos na parede para remontar a parte da exposição que já estava avançada, como se tal não fosse praticamente um “plágio”, com extrapolação do conceito inicial já truncado com as decisões anteriores.
Assim, as primeiras salas correspondem na sua maioria e abusivamente à proposta curatorial originalmente desenvolvida, com os diálogos pensados entre obras e artistas que reflectem os anos 60 e 70. Trabalhos que se inscrevem na linguagem estética do abstraccionismo, com jogos cromáticos em composições geométricas, criações que exploram a arte cinética e a Op Art, mas também obras da nova-figuração. A restante montagem, ainda que conserve algumas das obras nos locais atribuídos no plano, anulou o desenvolvimento conceptual previsto, excluindo lamentavelmente vários artistas como Miguel Branco, Paulo Nozolino, Gérard Castelo Lopes, Víctor Pires Vieira, José Loureiro, Ana Vieira, Clara Menéres, Emília Nadal, entre outros peças de relevo e obras quase desconhecidas de Pedro Cabrita Reis, Julião Sarmento, Júlio Pomar, etc.
Na ficha técnica a curadoria foi substituída por Concepção e Organização: Museu Nacional de Arte Contemporânea-Museu do Chiado com a colaboração da Fundação de Serralves – Museu de Arte Contemporânea. Concepção e organização? De quê? De distribuir em três dias de forma solta e sem qualquer narrativa as obras pelas paredes vazias? É que o MNAC vem mencionado, mas a sua equipa não participou dessa tarefa. E não foi por “razões incidentais” como disse o senhor Secretário de Estado da Cultura à imprensa, que “não foi possível contar com a equipa inicial desta exposição”, foi porque o rigor e o profissionalismo não nos permitiram aceitar as decisões superiormente tomadas por imperativos éticos decorrentes das competências inerentes à curadoria. Tiveram também a necessidade de cortar a referência à produção desenvolvida durante meses, porque lá estava o meu nome, o que reflecte bem o pensamento de quem o fez...
A exposição que constituiria um testemunho incontornável no percurso da coleção SEC e um momento histórico de regozijo para o MNAC, na dupla ampliação do seu espaço expositivo e do seu acervo, tornou-se num momento histórico triste para a história e a equipa deste museu, não é uma exposição do MNAC, nem nos conteúdos, nem na forma. Custa a acreditar que tenham tido coragem e coerência para chegar a este nível e a total falta delas para manter a coleção SEC no MNAC, depois de concluírem, passado anos de discussão e grupos de trabalho, que esse era o melhor caminho. Qual a explicação para a revogação do Despacho n.º 1849-A/ 2014? De acordo com o Despacho n.º 7863 de 6 de Julho de 2015 “revogo, por mera conveniência, o meu despacho (…) publicado no Diário da República n.º 25, 2ª série, de 5 de fevereiro de 2014.” Será que quem diz a verdade não merece castigo?
Face a tudo isto, importa esclarecer algumas questões de verdade e inverdade:
É inverdade que não tenha havido por parte do MNAC um esforço de colaboração e entendimento. Prova disso é o próprio subtítulo, que foi alterado de “O legado da Secretaria de Estado da Cultura ao Museu Nacional de Arte Contemporânea” para “Arte Portuguesa na Colecção da Secretaria de Estado da Cultura (1960-1990)”, na sequência de um acordo verbal com a DGPC em que foi estabelecido que nos textos curatoriais seria mencionada a incorporação da coleção SEC no MNAC. Acertados, a equipa de curadores continuou o seu projecto.
É verdade que depois dos textos escritos foi-nos solicitado que a frase “incorporação da coleção SEC no MNAC” fosse retirada para “não criar problemas institucionais com Serralves”. Como já foi afirmado publicamente, a frase não era minha nem do David Santos, é da autoria de Jorge Barreto Xavier na qualidade de Secretário de Estado da Cultura, publicada em Despacho, em Fevereiro de 2014.
Só que também é verdade que, após o despacho e durante quase um ano, eu própria assumi a gestão da coleção e a articulação com Serralves foi sempre excelente. A utilização das obras em depósito eram acompanhadas pelo MNAC, em exposições próprias ou em empréstimo a terceiros, bem como as intervenções de restauro. A autorização foi sempre concedida e debatíamos o melhor procedimento de intervenção.
Deve sublinhar-se que esta centralização da gestão da coleção SEC é fundamental, pois não existe só o depósito no Museu de Serralves ou no Museu da Cidade de Aveiro, há depósitos em muitas outras entidades que não têm sequer perfil museológico, por isso o acompanhamento a nível de conservação e o registo centralizado do histórico de uso das obras é indispensável. Aliás, se tal decisão já tivesse sido tomada há mais tempo, ter-se-ia evitado que certas obras fossem dadas como desaparecidas ou que tivesse de haver uma primeira recolha de obras para a exposição Narrativa de uma coleção, apenas para intervenções de restauro. Efectivamente, não pode ser uma entidade como a DGArtes (“casa” onde fui subdirectora e que conheço bem) a centralizar a gestão da coleção, pois não tem competências museológicas, nem tem cabimento no seu perfil institucional. Esse foi um dos motivos do Despacho de Fevereiro de 2014. No entanto, deve ficar claro que a incorporação no MNAC, não implicaria a coleção SEC ter de sair definitivamente de Serralves ou de Aveiro. Os depósitos continuariam, como protocolado, e quando terminassem, deveriam ser reavaliados.
É verdade que “Serralves não gostou que a coleção de Serralves se chamasse coleção do Museu do Chiado” como foi explicitamente assumido por Luís Braga da Cruz na imprensa, e que essa foi a origem da pressão para a alteração de conteúdos escritos do MNAC no âmbito da exposição “Narrativa de uma Colecção”. Só que quem chamou abusivamente “Colecção de Serralves” à Colecção SEC” foi o próprio Luís Braga da Cruz.
É inverdade que se tenha tentado chamar à coleção de Serralves coleção do Museu do Chiado, porque a coleção de Serralves é uma coisa, a coleção SEC é outra, não é de Serralves é do Estado Português, e como tal pública; não mudou de nome e está desde 1990 em depósito em Serralves mas não pertence a esta instituição.
É verdade que foi lá depositada como base de arranque para a criação de um Museu de Arte Moderna, “no sentido de utilizar o acervo de arte moderna”, como se lê no Protocolo.
É inverdade que Museu de Serralves seja de Arte Moderna e que a coleção seja utilizada como se pretendia. Serralves optou por avançar para a criação de um Museu de Arte Contemporânea e, ao contrário do MNAC, contou sempre com verbas de aquisição de obras de arte, pelo que pôde comprar e constituir uma larga e importante coleção nacional e internacional. É verdade que Serralves usou a coleção, mas também é verdade que há muitas peças que nunca foram exibidas e que grande parte da melhor pintura foi enviada para decorar gabinetes, onde permanece há anos.
Para o Museu de Serralves a coleção SEC é um género terciário, um bem tipo patê, que de vez em quando dá jeito para complementar o menu de uma exposição temporária, mas para o MNAC é um género primário, na versão de pão e leite, essencial para alimentar uma coleção com graves carências. Ora sendo esta uma coleção do Estado, faz sentido que seja incorporada onde faz mais falta , onde é mais precisa e onde também pode ser mais valorizada. Ao contrário de Serralves, o MNAC é um Museu Nacional público que tem por missão dar a conhecer a arte portuguesa em exposições que mostrem a sua coleção, pelo que a representatividade dos artistas é basilar e a coleção SEC primordial a essa missão.
É inverdade que o MNAC seja um “rival” de Serralves, não são concorrentes porque, antes de mais, têm missões diferentes. Há anos que estas duas instituições se articulam e colaboram. É por isso que choca a postura tomada por “Serralves” e a ligeireza na forma como aceitou assumir a montagem da exposição inaugural do novo espaço do MNAC, tendo conhecimento do contexto. O contrário, posso afirmar que seria eticamente impensável. É sempre pequeno embarcar em soluções caracterizadas pelo provincianismo e atitudes paroquiais, deixando tolher os espíritos da cultura e permitindo que se crie um pseudo-conflito de interesses Porto-Lisboa. Somos profissionais. O que queremos é a defesa da nossa cultura, da arte e dos artistas, e isso implica cooperação e partilha, para poder utilizar da melhor forma os recursos existentes.
Curadora do Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado