Cave Story: Estar à espera ou procurar
Só têm dois EP e um single, o suficiente para que os comecemos a seguir (por exemplo: dia 23 no Milhões de Festa). Numa sala nas Caldas da Rainha, os Cave Story inventam pérolas rock desalinhadas.
“Vimos a frase Richman is God algures num post do Facebook e achámos que era uma frase incrível. Quer dizer, o Jonathan Richman é a pessoa menos indicada para ser Deus”, conta Gonçalo Formiga, guitarrista e vocalista dos Cave Story, trio nascido nas Caldas da Rainha que, com esse single, e com o EP Spider Tracks, editado na recta final de 2014, se tornou um segredo cada vez mais mal guardado do rock cá da terra. Ao vivo, são uma banda incendiária, tratando as canções com uma urgência inspiradora e com um prazer evidente pelo turbilhão eléctrico crescente. Em estúdio, são autores de canções, esses curtos pedaços de linguagem musical tão terapêuticos para o correr dos nossos dias (mais ou menos) desencantados. Nelas, além de Richman e dos seus Modern Lovers, distinguem-se fogachos dos robóticos Devo, do nervo deliciosamente geek dos Feelies, do temperamento dos Television Personalities, do lirismo alucinado de Stephen Malkmus, do primitivismo dos The Fall ou de uns Velvet Underground que tivessem posto de lado o cabedal e o chicote e, com sorriso irónico, encarassem o sol que brilha no céu.
Ou seja, os Cave Story sentem-se próximos da atitude criativa do pós-punk, esse período especialmente fértil da música popular urbana em que todas as ideias pareciam passíveis de ser experimentadas. “Era complexo e ambíguo, abria-se criativamente e era interessante por não se reger por regras não escritas: ‘eu só gosto de garage rock e se tiver um sintetizador é uma porcaria’ ou ‘só gosto de punk e tem de ser sempre acima de 180 rpm’. Com o pós-punk deixou de haver tantas regras e é por isso que nos identificamos." E é precisamente por se identificarem com essa ausência de rótulos e de regras que será avisado não lhe chamarmos pós-punk. Porque, afinal, o que é que isso quer dizer em 2015? “Já vimos comentarem que, ‘dentro do estilo pós-punk, os Cave Story são diferentes das Savages’. Mas o que é que isto quer dizer? O que é que interessa? Porquê afunilar?”, questiona Gonçalo. Tem razão. Não é preciso enfiá-los às três pancadas numa qualquer genealogia. Eles tratam de o fazer, de forma cuidadosamente desordenada. “Eu faço música que consegue ser abrangente e é exactamente isso que quero que seja, caso contrário aborreço-me." Fala-nos então de Taking Tiger Mountain, um dos grandes álbuns de Brian Eno, o segundo a solo. “É um disco que adoro e que ouço umas três vezes por semana. E acho que arranjar alguma designação em termos de estilo para aquela música é forçado. É o disco de alguém com muitas ideias que criou o álbum que fazia sentido na altura em que o fez. Não acho que haja um fio condutor e não acho que isso seja mau."
Simples e directos
Os Cave Story são formados por Gonçalo Formiga e Ricardo Mendes (bateria), amigos desde a infância, e por Pedro Zine (baixista). São banda familiar: ensaiam em casa da avó de Gonçalo e foi também ali, nas Caldas da Rainha, que gravaram os três registos que têm até ao momento: Demos (2013), o single Richman, e o EP Spider Tracks. É ali que se juntam para se atirarem a jams de dezenas de minutos de que poderiam resultar canções muito longas e de estrutura intrincada. Essa porém, não é a natureza da banda. “O mais fácil é chegar à sala de ensaios, começar a rockar, e de repente temos uma canção com dez partes diferentes, super complexa e muito avant-garde, mas isso entedia-nos. Falta aquilo que uma canção tem." Ou seja, uma simplicidade muito evidente ao ouvido e, aparentemente, muito fácil de atingir, mas que, na verdade, é “um desafio enorme”. As canções dos Cave Story conseguem criar com mestria essa ilusão de simplicidade. São directas e sem refrão evidente, com letras curtas para que as palavras ganhem maior impacto. Parecem construir-se em volta de um motivo, como essa Southern hype que se desenrola em volta de uma linha de baixo circular, âncora de toda a canção.
A música dos Cave Story não aponta numa mesma direcção, mas já reconhecemos nelas uma marca autoral, que sobressai no gosto pelas referências pop, quer sejam jogos de consola (Cave Story é um desses jogos, Fantasy football, título de uma das canções de Spider Tracks, outro), músicos como Jonathan Richman ou Jowe Head (no ano passado gravaram uma versão de Helicotper spies, dos Swell Maps), ou o gosto pelo humor deadpan: “Li uma entrevista a uma banda [americana] chamada Speedy Ortiz em que ela [a fundadora Sadie Dupois] dizia que gostava de ser numa banda rock o que o Loius CK é para a comédia. Não foi eu que o disse, mas identifico-me totalmente." Gonçalo gosta de alguma ambiguidade. “Aquela coisa de não perceberes bem o que está a acontecer. Às vezes estou a tocar as músicas e dou por mim a pensar, ‘mas eu devo estar triste ou estar contente?’. Depois acabo por ficar num meio-termo. A piada está aí."
Banda auto-sustentável, os Cave Story têm visto colarem-lhes algumas vezes a etiqueta lo-fi, culpa da voz afogada na mistura e do som subterrâneo, sem gosto nenhum pela aparência cristalina das produções hi-tech. Quanto a essa questão, Gonçalo é tudo menos ambíguo. Que é isso do lo-fi? “Não sei qual é a linha que separa a alta da baixa fidelidade. Se considerarmos o MP3 baixa fidelidade, então andamos todos a ouvir lo-fi. Não é uma questão de escolher gravar em cassete porque é fixe e punk-rock. Gravas assim porque tens um gravador, dois microfones e sabes trabalhar com eles. E o resultado não me soa nada lo-fi." Não soa, de facto.
Depois de Richman e de Spider Tracks, depois dos concertos que têm ajudado a passar a palavra e a dar conta da preciosidade rock’n’roll que temos perante nós (o próximo será no Milhões de Festa, em Barcelos, onde actuam dia 23 de Julho), os Cave Story irão estrear-se em longa-duração em 2016. Antes disso, poderá haver novo EP. Gonçalo sabe que a banda já tem várias canções, mas não sabe ainda o que a banda fará com elas. Faz sentido. “O que fizemos até agora não foi resultado de uma procura, foi a procura em si. Não sei se queremos encontrar o que quer que seja. Se calhar o melhor será continuar a procurar e ir descobrindo o que surge de novo. Porque quando encontrarmos o que procuramos, o mais provável é que isto tudo se torne aborrecido."
Tendo em conta aquilo que nos ofereceram até agora, fazemos votos de que nunca encontrem o que quer que seja que procuram. Para que nunca se aborreçam.