O método da professora condenada: “Calem-se, senão mato-vos!”
A docente era responsável por uma turma do 1.º ano com 27 alunos que relataram bofetadas,pancadas com pau de vassoura, ameaças. Foi condenada a seis anos de prisão e a mais de 18 mil euros de indemnizações.
Um dos menores, a quem a docente chamava “almôndega”, relatou como, num certo dia, “por não saber resolver as contas”, ela lhe “empurrou a cabeça contra o quadro”. O mesmo rapaz terá sido vítima noutras ocasiões: uma vez, “uma pancada com um pau de vassoura”; “uma chapada na face”, noutra ocasião; “uma pancada com um livro de História”, noutra ainda. A outro aluno a docente disse que lhe furava os olhos se contasse algo sobre o que se passava naquela sala de aula, naquele ano lectivo de 2012/2013. Essa criança tinha um problema físico que a tornava especialmente frágil, como se lê no acórdão assinado na segunda-feira por três juízes. A ameaça não surtiu efeito. O menino acabou mesmo por falar.
A professora, com “década e meia de funções docentes”, sempre negou ter sido violenta. Vários colegas disseram nunca ter dado por nada de estranho. Mas também houve quem garantisse que nas salas de aulas mais próximas se ouviam “gritos e a linguagem grosseira” que ela usava.
Os juízes não tiveram dúvidas. “O relato positivo sobre a violência da arguida brota da boca dos bons alunos que eram pouco sovados e até da boca daqueles que negaram ter sofrido pessoalmente qualquer violência física, enfim, daqueles alunos que até gostavam de ir para a escola.”
Alunos de outras turmas e “com diferentes razões de queixa” foram ouvidos. E confirmaram. O tribunal deu como provados três crimes de ofensa à integridade física qualificada e 16 de maus tratos contra um total de 19 alunos. A docente foi condenada a seis anos de prisão efectiva — e os juízes dizem que “há uma forte probabilidade” de “vir a reincidir”.
Os relatos citados no acórdão agora consultado pelo PÚBLICO explicitam os métodos desta professora que comia cereais com leite enquanto dava aulas e que em tribunal defendeu que ser docente é a sua vocação: um aluno disse que levava “carolos” quando não conseguia ler os textos; outro ficou com uma marca tal na mão, depois de uma pancada, que a docente usou “pomada na região atingida para tentar disfarçar”; outro foi atingido por uma cadeira que ela atirou “para o ar para amedrontar”.
Pelos danos não patrimoniais provocados, alguns pais pediram indemnizações. Os juízes concordaram: a professora tem a pagar 18.790 euros, acrescidos de juros de mora. Que danos são estes? A tristeza revelada por alguns alunos, os distúrbios de sono, as dificuldades de concentração e aprendizagem, as dores e o medo.
Algumas mães retiraram os filhos da escola no final do ano lectivo de 2012/2013, “antes de saberem sequer que a arguida era afinal a causa dos transtornos psicológicos evidenciados pelos filhos”. Tudo isto se descreve no acórdão.
Pode voltar?
Ainda assim, a arguida foi absolvida “da pena acessória de proibição do exercício de funções” como professora. Os juízes lembram que a lei prevê que os funcionários públicos que cometam crimes no exercício da sua actividade e sejam condenados a mais de três anos de cadeia podem ser proibidos de exercer. Mas neste caso, em nenhum dos 19 crimes cometidos pela docente a pena individual foi superior a três anos, explica o acórdão.
Contactado pelo PÚBLICO sobre se a docente em causa poderá voltar a dar aulas uma vez cumprida a pena de prisão — e caso esta se mantenha num eventual recurso, que pode acontecer — o Ministério da Educação e Ciência faz saber por escrito que não foi notificado do acórdão.
Acrescenta ainda: “Quando tal acontecer, analisar-se-ão os factos agora provados em sede criminal para efeito de eventual responsabilização disciplinar.”
A docente encontra-se temporariamente suspensa de funções. Quando o processo se iniciou procurou ajuda psiquiátrica. Mas sempre negou tudo. Durante o julgamento fez saber que tinha intenções de voltar a dar aulas.
Os juízes deixam ainda críticas ao “então director do Agrupamento de Escolas Alfornelos”, a que pertence a Escola Básica com Jardim de Infância Santos Mattos. É que alguns pais da turma de 27 alunos desta professora foram tentando saber o que se passava. “A arguida pretendeu silenciar as crianças relativamente à divulgação das agressões mas não logrou fazê-lo totalmente, pois algumas mães aperceberam-se dos sintomas de violência e deslocaram-se pessoalmente à escola para se inteirarem da situação”, descreve-se.
Em Janeiro de 2013 uma funcionária começou a denunciar a situação junto de “entidades públicas”. Escreveu para vários locais, nomeadamente à Comissão de Protecção de Crianças e Jovens da Amadora que em Julho desse ano encaminhou o caso para o Ministério Público. A Inspecção-Geral de Educação e Ciência (IGEC) entrou, entretanto, em campo.
Agora, o tribunal entende que o “então director do Agrupamento” não valorizou as denúncias que lhe foram “dirigidas durante cerca de cinco meses” ficando-se pela “mera e displicente audição” da professora. E isto, prossegue, só “após a intervenção da Direcção-Geral dos Estabelecimentos Escolares quando já corria o mês de Maio de 2013, tendo, por isso, sido igualmente objecto de processo disciplinar pela IGEC”.
O ministério não respondeu em tempo útil sobre em que ponto está este processo mencionado no acórdão contra o ex-director.
Separada, com um filho
O tribunal sublinha a gravidade do que se passou numa “sala de aula, à porta fechada” ao abrigo de uma relação entre professor e alunos pequenos que é, necessariamente, de alguma “dependência emocional”.
Alerta para o facto de as cifras respeitantes ao crime de maus tratos em ambiente escolar estarem a subir na comarca de Sintra, escapando, muitas vezes, “à punição em virtude da forte dependência e da coacção a que as vítimas são sujeitas”.
“Acresce que os maus tratos contra alunos muito novos não raras vezes acabam por redundar em insucesso escolar e exclusão social, que urge prevenir”, acrescenta-se.
O percurso da professora tinha sido, até agora, limpo de incidentes. Nascida em França, filha de emigrantes, veio para Portugal aos oito anos. Teve “um percurso académico regular”. Frequentou o curso de Direito. Depois a licenciatura para ser professora do 1.º ciclo. Diplomou-se aos 30. Entrou nos quadros do ensino público. Exerceu funções de coordenação escolar.
O tribunal não a desculpa que tenha lidado com “as suas dificuldades lectivas à custa do uso de violência física e psicológica”. E diz que com a sua experiência, não podia ignorar “as proibições legais expressas de aplicação de castigos corporais vigentes desde, pelo menos, 2002” — sendo que, durante o julgamento, ela própria não deixou de censurar implicitamente esse tipo de comportamento “não obstante declinar a respectiva prática”.
Casada, com um filho, a professora separou-se há cerca de dois anos, mais ou menos pela altura em que perdeu o pai. Estes factos são lembrados no acórdão como os únicos que mitigam “ligeiramente” a “culpa da arguida”. Mas acrescentam os juízes: “Tais circunstâncias de vida de qualquer pessoa adulta — ou menos adulta — nunca podem desculpar a descarga das emoções e frustrações sobre as crianças que estão especificamente ao seu cuidado.”
Segundo um comunicado de terça-feira da Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa, a professora aguarda em liberdade pelo fim do prazo para recorrer da sentença.