Quatro anos no banco, entre a burocracia e uma guerra

Vlady Grikh é hoje um cidadão português, mas o processo que precedeu essa condição foi complexo e envolveu uma guerra armada – no sentido literal da expressão

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Nuno Ferreira Santos

A determinação que ressai do discurso de Vlady surge-lhe naturalmente: é a sua genética de Leste a transparecer. Pelo lado da família materna, o seu trisavô combateu pela Rússia contra a Alemanha na I Guerra Mundial e o bisavô foi distinguido pelo Kremlim por serviços prestados à nação. Vlady chegou a brincar com essas medalhas em criança, "sem ter ideia do que elas significavam". Já pelo lado do pai, o seu bisavô foi sniper na II Guerra, um tio serviu no Afeganistão e outro fez três anos de serviço militar na Rússia. "Ao meu pai só não aconteceu o mesmo porque ficou parcialmente cego quando tinha nove anos", observa. Desde os tempos em que a Ucrânia integrava território da União Soviética, esse passado deixou-lhe assim uma herança que é simultaneamente de autodomínio e conformismo, o que explicará a forma como superou as duas grandes contrariedades que se lhe depararam no seu percurso recente de atleta.  

 

A primeira dessas agruras foi treinar quatro anos com a selecção nacional – desde a de sub-16 até à de sub-20 – sem poder ser convocado para os respectivos jogos por não estar ainda naturalizado como português. "O meu maior desafio a nível psicológico foi esse", assume. "Nunca faltei a um treino mesmo sabendo que não podia jogar e foi nessa fase que cresci mais como jogador, mas a certa altura era muito frustrante. Tive algumas quebras de ânimo e a pior foi quando falhei o Campeonato Europeu de Sub-19 por causa de uma lesão na cápsula [articular] do pé".

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Sensivelmente pela mesma altura, Vlady enfrentou depois o segundo grande obstáculo aos seus planos: em Maio de 2013 atinge os 18 anos de idade e, como ainda não dispõe da cidadania portuguesa, é chamado a regressar à Ucrânia para cumprir o serviço militar obrigatório, o que conduziria inevitavelmente à sua ingressão nas tropas de resistência à Rússia. (Ironia do destino: um ano antes a selecção russa tinha-o sondado para que ingressasse na sua equipa. De atleta desejado, o jovem via-se assim na iminência de passar a soldado adversário).

 

O que se seguiu foi o que Rafael Lucas Pereira descreve como "um difícil processo burocrático" para garantir a permanência de Vlady em Portugal. O jogador do CDUL reunia todas as condições para aceder à cidadania, mas divergências entre diferentes entidades da tutela vinham atrasando os procedimentos e, com o apoio da Federação Portuguesa de Râguebi, Rafael assumiu a liderança das operações: desdobrou-se em contactos com o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), colaborou com o Alto Comissariado para as Migrações, apelou aos partidos do Governo, apelou a figuras de diferentes sensibilidades políticas. "O que nos assustou mesmo foi a questão do conflito russo-ucraniano", refere o tutor desportivo do atleta. 

 

"Pelas entidades competentes o processo estava ok, mas faltava o registo criminal emitido na Ucrânia e toda a gente sabia que, caso o Vlady tivesse que entrar no país [para obter o documento], nunca mais de lá saía. Era literalmente uma questão de vida ou morte". Entretanto, se o jovem já se mostrava conformado com a ideia de ser soldado, Rafael não. Marcou reuniões para insistir no tema; repetiu diariamente os mesmos telefonemas, para as mesmas entidades. E quando todos chegaram a acordo e lhe comunicaram que o atleta preenchia finalmente todos os requisitos para ser reconhecido como português, "foi uma emoção enorme, um peso que saiu de cima de toda a gente". Rafael pôde relaxar; o novo cidadão português sentiu-se por fim liberto para comentar: "Este conflito na Ucrânia só se deve aos interesses dos magnatas e não à vontade de resolver os problemas do povo. Sempre foi assim e sempre será".

 

Mesmo antes de se colocarem essas questões políticas, o convite da selecção russa não dera a Vlady Grikh muito que pensar. "A Rússia tem mais hipóteses de jogar um Campeonato do Mundo, mas o meu coração sempre esteve ligado a Portugal", analisa. "É um país que me fez crescer como pessoa e como jogador; digamos que fui adoptado por esta nação como nunca seria pelo meu próprio país. Daí querer ser português e a vontade que tenho de um dia jogar um Mundial pelo Lobos. Até é um sonho que está bem perto, porque estas últimas gerações de râguebi estão a mostrar muita qualidade".

 

Vlady já teve, aliás, o prenúncio do que isso poderá significar na sua tão aguardada estreia com o equipamento das Quinas: em Maio jogou pela selecção no Mundial de Sub-20 disputado em Lisboa e, frente à reputada equipa das Fiji, não deixou espaço à ansiedade. "Eu esperei tanto tempo por isso que não senti nervos. E como me divirto a jogar, acho que vivi cada segundo como se fosse o último. Quando vestimos a pele do lobo, ganhamos super-poderes, vidas extra, e, mesmo sem ganhar, sei que fiz o que podia e o que não podia".

 

Dentes partidos, joelhadas na cabeça, desmaios que apagam a memória dos códigos a usar nos alinhamentos. Pormenores evitáveis para quem não estiver distraído. "Seja râguebi ou outra modalidade, o que interessa é que qualquer pessoa deve praticar um desporto, porque assim ganha valores que nem a escola nem a rua nos transmitem", diz o atleta.

 

Após quase 10 anos de vida na Ucrânia e outros tantos em Portugal, Vlady terá agora que aplicar essa filosofia para ultrapassar uma nova encruzilhada. Até 23 de Julho, o seu quotidiano reparte-se pelo curso de Design Gráfico na Escola Profissional Bento Jesus Caraça, pela prestação na equipa sénior do CDUL e pelos treinos como elemento efectivo da selecção nacional; no dia 24, tudo muda. O atleta volta a deixar o seu país, a separar-se de família e amigos. Parte para os Pirinéus Orientais, instala-se na cidade francesa de Perpignan, recomeça a aprendizagem de uma nova língua e passa a vestir a camisola do USAP.

 

"O meu único problema é gostar mesmo muito de Portugal", desabafa. "Mas, se conseguir não pensar nisso, a realidade é que vou fazer uma coisa de que gosto, tenho contrato de um ano com hipótese de renovação e fico a jogar num campeonato muito mais competitivo. Vai custar estar lá sozinho, claro. Mas é a tal coisa: a vontade de jogar e fazer a diferença tem que ser maior do que tudo o resto".

 

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