“Os paparazzi do século XXI são os paparazzi de dados pessoais”
Ana Maria Evans, investigadora do Instituto de Ciências Sociais, estudou o funcionamento da máquina fiscal. Falta transparência, mas esse é um problema de toda a administração pública. O novo plano da AT é um bom ponto de partida, diz
Para o estudo "Valores, qualidade institucional e desenvolvimento em Portugal", publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, Ana Maria Evans falou com ex-dirigentes da AT, ex-secretários de Estado, técnicos oficiais de contas, fiscalistas e funcionários da Inspecção-Geral de Finanças. Para a investigadora, depois da informatização da máquina, é preciso encontrar um equilíbrio entre a digitalização e a humanização. A resposta, diz, tem de vir do poder político, porque se há assimetria no tratamento dos contribuintes, isso deve-se às regras definidas pelo legislador, não por culpa do próprio fisco.
PÚBLICO: Quem olha de fora e quem está por dentro da administração fiscal tem perspectivas diferentes sobre o funcionamento da AT?
Ana Maria Evans: Ainda temos um longo caminho a percorrer para fomentar uma atitude cívica em relação à autoridade tributária, que é a pérola incontornável do sustento do Estado. A visão do cidadão, em geral, é a de que estamos perante uma instituição muito fechada, muito distante e que tenta controlar. Ainda não foi feito o trabalho que deveria ser feito, exceptuando os Audis [do sorteio de facturas com NIF], que são um incentivo muito forte ao registo das aquisições de bens e serviços à AT. Mas há muito mais trabalho a fazer para além de uma mera lotaria.
Nos últimos anos houve um conjunto de medidas para colocar o contribuinte “dentro” do sistema. Há quem veja um lado positivo, por incentivar o pedido de facturas, e quem alerte para o aumento dos custos de contexto para os contribuintes. Como olha para esta questão?
Estas medidas permitem uma espécie de círculo, em que cada contribuinte proporciona informação que pode ser cruzada, o que aumenta a eficácia da máquina. Mas isto não é suficiente, porque falta essa dimensão da nossa responsabilização individual perante o Estado, de passarmos a considerar que a evasão fiscal é detractora de serviços que o Estado presta. E é preciso pensar que a administração fiscal implementa algo que é decidido politicamente. Se há alguma assimetria na capacidade da máquina fiscal, o poder político tem muita responsabilidade nisto, porque aquela máquina está a implementar regras pré-determinadas. Existe uma grande instabilidade nas políticas públicas – muitas reformas, contra-reformas, novas reformas. E a nível fiscal há muito a tendência para se introduzirem novas cláusulas, novas medidas. A informatização é muito benéfica para o contribuinte e facilita muito a vida do lado da administração. Mas levanta outras questões. À partida, o grande contribuinte, neste ou noutro país, tem muito maior capacidade de defesa, porque pode contratar empresas que fazem planeamento fiscal. Mas há sempre um trabalho que pode ser feito pela administração, proporcionando meios não informáticos àqueles [contribuintes] que estão sub defendidos, mas que em termos numéricos são muito mais significativos com o envelhecimento da população. Aí, sim, a administração pública tem de encontrar um equilíbrio entre a humanização e a digitalização.
Assistimos a uma maior agressividade da máquina fiscal, na cobrança coerciva das portagens e em algumas situações de penhoras inusitadas. Isso contribui para uma maior desconfiança perante as instituições?
É preciso entender onde está a fonte do problema. Alguém a montante da própria administração tem de pensar como humanizar este tratamento. Estávamos com uma grande urgência em tornar as instituições modernas, eficientes e eficazes e de diminuir os custos para o cidadão. E agora chegámos ao momento em que precisamos de entender como regular esta mecanização de dados: definir o que é a transparência das instituições, o que é a capacidade que o funcionário tem para exercer a sua missão dignamente, com os recursos de que precisa e sem medo; e, por outro lado, garantir que o cidadão tem a certeza de que os seus dados estão a ser protegidos, que sente que as instituições tratam todos por igual, com simetria.
Foi a questão que se discutiu com o caso da lista VIP. Há agora um novo plano de acção na AT para responder a este conflito. O que é que pode ser feito para dar segurança ao cidadão e permitir que a máquina fiscal funciona com essa liberdade?
Este dilema coloca-se quer a nível público quer a nível privado: nos bancos, nas seguradoras, nas instituições de saúde. A protecção dos dados tem de ser regulada de forma muito clara. Este plano é um primeiro grande passo. E a administração fiscal pode ter até um papel como modelo para outros sectores da administração pública. Quem tem soberania sobre os dados? Quem determina esse acesso, como é regulado, para que fins é utilizado? Lembra-se daquela época em que se falava muito dos paparazzi quando a Lady Di morreu? Enquanto naquela época os paparazzi eram alguém que perseguia estrelas e tentava descobrir costumes, os paparazzi do século XXI são os paparazzi de dados pessoais. Esta é a grande oportunidade. Infelizmente surgiu com uma crise [o caso da lista VIP], que foi catalisadora. Temos uma oportunidade de estabelecer um modelo que é aplicável à administração pública em geral.
O controlo a posteriori (investigar e sancionar quando se descobre que houve violação do sigilo) revelou-se ineficaz?
Não conheço o mecanismo operativo. Este não é um problema técnico, é de organização, regularização e monitorização. Mas também é preciso assegurar a transparência que defende os próprios funcionários. Quanto mais transparente for uma administração, maior é a segurança dos seus funcionários. Quanto mais claras são as regras, mais seguras e protegidas se sentem as pessoas.
Com o seu estudo sobre a AT, o que lhe ficou da organização da máquina fiscal?
A informatização permitiu grandes transformações nos fluxos de informação. Antigamente, havia ilhas de poder a nível local, porque as repartições de finanças conseguiam controlar a passagem de informação. Quando algo é informatizado em rede, os fluxos de informação começam a ser diferentes, quer verticalmente, dentro da organização, quer transversalmente. E isto é crítico para o trabalho de uma organização, porque permite uma dinâmica muito diferente entre os funcionários e a nível hierárquico, quer porque suaviza muito a existência de ilhas de poder dentro da instituição, que podem levar a transacções não muito desejáveis…
O que é que encontrou?
No presente não tenho nenhum caso, mas invariavelmente os entrevistados contavam histórias do passado pré-informatização em que havia a capacidade a nível local de se controlar a informação relativamente a determinados contribuintes e de se fazer determinado tipo de tráfico de influências e de transacção que beneficiava o contribuinte e o agente. Quando há a informatização, esse género de monopólio da informação torna-se muito mais difícil, porque há a capacidade de monitorizar o que se faz na máquina. E até os mecanismos de tráfico de influências são deslocalizados por causa da informatização.
Dentro e fora da organização?
Na sua relação com o cliente e dentro das instituições. Isto não é um monopólio da autoridade tributária; acontece com qualquer interacção feita entre qualquer instituição e o seu cliente.
A investigação tributária tem um papel central nas investigações judiciais de grande complexidade. Na AT, os representantes dos funcionários dizem que há poucos recursos para a inspecção. Foi essa a percepção com que ficou?
Há falta de recursos em geral. Entrevistei antigos directores-gerais que diziam: “Com os recursos que tinha, como é que poderia estar à espera que eu fosse fazer campanhas de responsabilização cívica?”. Eu estava à espera que na AT não houvesse tanto o problema da falta dos recursos, porque o poder político sabe que esta é uma peça fundamental do Estado. Repare na Grécia. O Washington Post publicou uns gráficos em que compara a capacidade de tributação real na Grécia com a alemã. É dantesco. A capacidade que o Estado grego tem de recolher aquilo que lhe é devido por lei é muitíssimo reduzida e isso enfraquece o Estado.
Nos períodos de crise, há uma forte pressão para obter receita fiscal. No caso português, a receita tem aumentado, não apenas por causa do aumento dos impostos. A eficácia da máquina já vinha de trás?
O caso da Grécia mostra-nos, apesar de tudo, como as nossas instituições conseguiram estar ao leme de um barco que estava a ser assolado por tempestades, chuvas e ventos. A autoridade tributária teve um papel crítico em todo este percurso. E os recursos são essenciais. Parece-me que o novo plano de gestão de segurança dos dados e a questão da transparência, da relação com os contribuintes poderiam ser muito mais trabalhados, mas isso requer recursos. Este plano de acção ainda não explica exactamente como é que se vai implementar no campo cada uma das revisões de que se fala. Voltamos à forma como os grandes interesses económicos se relacionam com grandes interesses políticos, que é um problema transversal a nível internacional, mas que não podemos deixar de referir.
O que pôde concluir em relação à autoridade tributária?
[Silêncio].
É uma questão sensível.
Se lhe disser aquilo que eu detectei, o risco que corro em termos de consequências a nível individual não me permite estar a veicular informação sobre a qual eu não tenho provas. Precisamos que existam instituições como a Transparência e Integridade, com credibilidade e com protecção para que este trabalho de detecção de problemas não seja penalizado a nível individual.
Quando fez este estudo apercebeu-se de situações para as quais queria chamar a atenção e não se sentiu segura para as denunciar?
Na autoridade tributária não encontrei indícios. Em qualquer organização há sempre tentativas de ganho – isso é universal [não apenas em Portugal]. Certamente deparei-me com conivências, interesses… mecanismos através dos quais os grandes interesses económicos podem conseguir um determinado conjunto de mecanismos de elisão fiscal que não estão devidamente observados.