Amália não era capaz de menos

Continuando o trabalho fundamental de reeditar Amália acompanhada das preciosidades guardadas no arquivo da Valentim de Carvalho, é altura de voltarmos a Fado Português. A Amália que primeiro se aventura nos versos de Camões, agora com um vislumbre do seu lado oficinal

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Não há exagero possível nas palavras do actual responsável pelas reedições aumentadas da discografia de Amália Rodrigues (em curso até 2020, peneirando o arquivo riquíssimo da Valentim de Carvalho). Dificilmente haverá exagero quando se fala de uma mulher que inventou uma forma de cantar fado e virou os cânones do avesso, expandindo-os para lá de todas as fronteiras conhecidas, transformando-se ela própria no cânone vivo.

Um dos traços fundamentais é a capacidade invulgar de a fadista fazer conviver o erudito e o popular numa só expressão, permitindo assim ao investigador e membro do Coro do Teatro Nacional de São Carlos traçar esta comparação com o paradigma da “canção alemã que era cantada também em bares e cafés do século XIX”, modo em que Franz Schubert se destacou ao musicar poemas de Goethe, Schiller ou clássicos gregos. Esse inspirado encontro entre poesia e música, Frederico Santiago diz só o encontrar nas composições em que Alain “começa a musicar Camões e poetas contemporâneos, o David Mourão-Ferreira ou o Pedro Homem de Mello, em que há um cuidado musical naquela escrita, como acontece em Lianor, em que aquilo é música erudita mesmo”. “Não conheço outra poesia musicada dessa qualidade em Portugal. Acho que é o supra-sumo e é tão bom que se popularizou.”

Após uma primeira colaboração com Alain Oulman em Busto (1962), sublime ousadia em que o fado aparecia trespassado por um piano e por poemas de natureza literária, Fado Português (1965) documenta essa heresia maior e magnífica que constituiu cantar Camões, para escândalo absoluto de intelectuais como José Cardoso Pires, recuperando do EP Amália Canta Luís de Camões a sua interpretação arrepiante de Erros Meus. Agora, nesta reedição que celebra o 50º aniversário do álbum (referindo-se à edição internacional e não ao LP português chegado apenas em 1970, espalhado que estava por vários EP), ouve-se ainda “Lianor” desse mesmo disco dedicado a Camões, na companhia de outras gravações da época que não chegaram originalmente ao alinhamento do álbum, como Espelho Quebrado, Cansaço ou Fandangueiro.

Se as interpretações de Amália neste período são sempre prodigiosas e disso nos dá conta Fado Português na perfeição, aqui na sua versão mono original – segundo Santiago, a "estereofonização" do LP em 1970 havia de esconder a voz –, a guitarra portuguesa de Domingos Camarinha, um acompanhador mais tradicional, não descola para os voos fantasistas com que Fontes Rocha pontuaria Com que Voz (1970). Mas para Frederico Santiago terá sido este o “período máximo da criação” de Alain Oulman para a voz de Amália. Parte da obra-prima Com que Voz é inclusivamente composta nesta altura, antes de o luso-francês ser preso e torturado pela PIDE, devido à sua colaboração com a Frente de Acção Popular, sendo depois deportado para França, onde progressivamente se dedicaria à edição livreira na Calmann-Lévy.

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Alain Oulman com Amália
Fado Português Amália Rodrigues
Gaivota Amália Rodrigues

“O Busto não foi propriamente um álbum muito popular”, refere Frederico Santiago, explicando que é com Gaivota, de Fado Português, que se dá o aval das composições mais complexas de Oulman por parte do grande julgamento popular, sobretudo por obra de Gaivota. Santiago chama-lhe “talvez um tempo de habituação do público” às exigências musicais que Alain imprimia aos fados e que implicava também um trabalho suplementar da parte dos guitarristas. Daí que, desconfia, possam ter sido preservados num estado perfeito estes ensaios que ouvimos agora no CD de extras da reedição de Fado Português, para que os músicos pudessem levar provavelmente gravações para casa a fim de aprenderem os temas de ouvido – uma vez que não liam pautas. Até porque, como facilmente se percebe, Amália tem os poemas já dentro de si, soam-lhe já na voz com um fulgor e uma certeza inabaláveis, não há uma sombra mínima de incerteza no seu canto. “Mais tarde”, compara Frederico, “o que existe são sessões de gravação com o Conjunto de Guitarras de Raul Nery e com o Fontes Rocha e eles já sabem aquilo logo ao primeiro take, é só uma questão de experimentar versões, não são ensaios.”

Além do material recuperado dos EP que deram origem a Fado Português, a reedição oferece-nos um impagável vislumbre de uma Amália oficinal, acrescentando pequenas nuances na construção das suas interpretações, sempre num nível estarrecedor mesmo tratando-se apenas de ensaios. Com os temas de Alain, nota Frederico, “ela não tomava as liberdades que tomava com as outras coisas”. Mais cuidadosa que possa avançar, nunca tal significa que o resultado seja menos impressionante. É já espantosa, de facto, a sua capacidade de comover com passagens pelos temas que sabe não serem definitivas. Para Frederico Santiago, a explicação é simples: “Ela nunca começa abaixo da Amália, porque não era capaz de menos”.

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