“A UE tem a política climática mais avançada do mundo”
Entrevista a Humberto Rosa, ex-secretário de Estado do Ambiente e director de adaptação e tecnologias de baixo carbono na Comissão Europeia.
É possível viver sem combustíveis fósseis em 2100?
Não só é possível, como é indispensável a longo prazo. Não podemos assentar o nosso desenvolvimento e bem-estar numa fonte esgotável de energia. Estamos a trilhar um caminho na Europa, desde logo com metas de redução de emissões até 2030 e outras pré-estabelecidas até 2050. Provavelmente não é possível com a tecnologia actual passar a zero. Mas já existe muita tecnologia disponivel para atingirmos pelo menos as nossas metas presentes. E com a inovação tecnológica que está fertilmente a aparecer em toda a parte, não me parece que seja um cenário muito fantasista.
Descarbonizar os processos industriais parece ser o mais difícil. Como vamos conseguir isso?
Muito do que é necessário para o sector industrial depende de inovação. E na revisão do sistema europeu de licenças de emissão está previsto um fundo, que é continuação do programa actual NER 300, com a receita de mais de 400 milhões de licenças, para financiar projectos inovadores. Já há no pipeline muita informação fervilhante a aparecer em muitas frentes. Para algumas indústrias mais intensisvas em carbono – por exemplo, refinarias, aço, cimento – a captura e armazenamento de carbono industrial pode ser uma das formas.
Capturar e armazenar o CO2 é uma solução cara…
Quando olhamos para as análises do IPCC ou da Agência Internacional de Energia, vemos que é muito mais caro não fazê-lo. O caminho custo-eficiente é com captura e armazenamento de carbono.
Mesmo sem um mercado internacional de carbono e com o CO2 a preços baixos no mercado europeu?
O NER 300 tinha a perspectiva de apoiar vários projectos de captura e armazenamento de carbono e só um é que veio a ser confirmado. Isto tem muito a ver com preço do carbono. Mas é por isso é que está em curso uma revisão do comércio europeu de licenças de emissões, para dar condições a que o preço do carbono venha a subir.
Quem é que vai pagar a tecnologia de baixo carbono nos países em desenvolvimento?
Resisto a ver o mundo como uma parte que sabe inovar e tem tecnologia e a outra que apenas está à espera que ela lhe seja dada. Há também muita inovação que vem dos países em desenvolvimento, em particular das economias emergentes. E a China vem logo à cabeça: está num dinamismo de despoluição por interesse próprio, pelas próprias condições ambientais negativas que tem enfentrado. E vejo isso como muito promissor. Existem também mecanimos nas negociações climáticas, desde logo um pacote financeiro de apoio aos países em desenvolvimento e de transferência de tecnologia
Como vê o problema das emissões de CO2 da aviação, com a perpectiva de duplicar o movimento de aviões e passageiros vai duplicar até 2030?
A aviação é realmente o sector dos transportes mais complexo, do ponto de vista tecnológico. Não é fácil imaginar uma alternativa viável ao combustível fóssil. E não me parece provável que tenhamos no futuro aviões a baterias eléctricas ou a energia nuclear. E mesmo as tentativas, que são muito interessantes, de aviões solares, é difícil imaginá-las com 180 passageiros e carga a bordo. Tecnologicamente, os biocombustíveis oferecem mais oportunidades. É um desenvolvimento que tem de ser muito bem feito, com biocombustíveis em quantidade e sustentáveis, que não causem eles mesmo problemas ambientais singificativos.
Isto não é uma espécie de quimera que estamos a alimentar, sabendo que é impossível ter quantidades suficientes de biocombustíveis, sem competir com a alimentação ou as florestas?
Quanto a produzir combustíveis avançados e sustentáveis, já hoje alguns se perfiguram nesse sentido. Por exemplo, biocombustíveis feitos a partir de resíduos domésticos. Ou então, sistemas de produção de biocombustíveis através de microalgas, em sistemas fechados, em grandes torres de água alimentadas com energia solar. Quanto às quantidades necessárias, isto é uma análise própria, de quanta biomassa sustentável há, quanta é que pode ir para os transportes, e quanta dessa em particular para a aviação.
A adaptação às alterações climáticas são algo de longo prazo, que parece não estar na agenda dos cidadãos. O que a Europa precisa fazer?
Não concordo que seja de longo prazo. Os efeitos das alterações climáticas, já os sentimos agora. E quanto ao cidadão poder ter ideia do que pode ou não fazer, é muito simples quando lhe bate uma cheia à porta ou quando vê um fogo florestal ao lado. É até mais fácil comunicar com os cidadãos sobre adaptação do que sobre redução de emissões. Agora, a adaptação é muito local, na cidade, na região, na localidade. Há muitíssimas cidades com acções concretas no terreno. O mais evidente nas cidades europeias é a preparação para as cheias.
Qual é o papel da Comissão Europeia nisso?
A Comissão fornece o enquadramento para a troca de experiências e para as cidades estarem em rede, e também facilita o acesso aos apoios comunitários, que existem abundantemente, quer para a mitigação, quer para a adaptação. Todos os fundos estruturais têm uma meta, que é inovadora a nível mundial, de 20% que têm de ser usados para as alterações climáticas. E há também soluções custo-eficientes de adaptação baseadas em serviços dos ecossistemas e da natureza, que às vezes são menos tidas em conta.
Por exemplo?
Um dos problemas que as cidades têm é o do aumento da temperatura devido ao “efeito ilha”. Ter infraestruturas verdes, como telhados com vegetação, é uma forma mais barata do que ares condicionados. Para as cheias, há muito a tentação de tentar conter o rio. E o que algumas cidades têm feito é, pelo contrário, dar espaço à volta do rio, que possa aguentar a cheia quando ela vem e ao mesmo tempo, em normalidade, dar ao cidadão uma área verde. O progama Life [de financiamento a projectos ambientais] tem uma parte de clima e, dentro dessa, uma parte de adaptação e aí favorecemos as abordagens naturais.
O que espera da conferência climática da ONU em Paris, no final do ano, no que toca à adaptação?
Há uns anos, quando estive eu mesmo envolvido em algumas cimeiras do clima, a adaptação era um tema trazido pelos países em desenvolvimento. Os desenvolvidos estavam centrados na redução de emissões. Isso mudou completamente. Hoje, quer a redução de emissões, quer a adaptação está no vocabulário de todos, desenvolvidos e em desenvolvimento. Em Paris, a adaptação terá muito mais expressão e importância. Cada vez mais o pacote clima tem as duas pernas, adaptação e mitigação.
Mas o que é que pode resultar de Paris? Muitos países reivindicam mais ajuda financeira, além dos 100 mil milhões de dólares previstos até 2020.
Parece-me que Paris nao é o momento para definir o pacote fincaneiro do futuro. É o momento para definir o nível de ambição.
Para si, que participou de várias cimeiras climáticas, não é frustrante ver que, depois de tantos anos, ainda estamos a discutir o nível de ambição?
A parte frustrante, quando olho para trás, é sobretudo o ritmo. É realmente lento, mais lento do que aquilo que a evolução climática sugere como necessário. Mas temos de compreender que não temos um governo mundial. Temos um processo negocial a 190 e tal países. É inerentemente lento, com interesses muito contraditórios e difíceis de conciliar. O lado positivo da questão é que de cimeira em cimeira há progressos. Quando se diz que a cimeira de Copenhaga foi um grande fracasso, não concordo. Ela foi um fracasso de gestão de expectavivas. Com certeza que poderia ir mais além. Mas deu um grande passo em frente., quando reconheceu a meta dos dois graus [de aumento máximo da temperatura global até 2100] e que todos os países deviam contribuir. Não se pode esperar em Paris uma varinha mágica para resolver tudo. Mas Paris tem de incorporar um processo de revisão para aumentar a ambição, se ela não for suficiente.
A União Europeia tem condições de liderar as negociações?
Do meu ponto de vista, sim. A liderança da UE não é com certeza chegar às negociações e impor a sua vontade. Mas a UE sempre conseguiu gerar as alianças ou o ponto de equilíbrio de entendimento entre os países desenvolvidos e os países em desenvolvimento. Veja-se por exemplo, a aliança com os pequenos Estados-ilha e os países menos desenvolvidos. Considero que o verdadeiro efeito de liderança da UE é um efeito soft, pelo exemplo. Porque a UE tem objectivamente a política climática mais avançada do mundo. Conseguiu, no meio de uma crise económica brutal, definir metas ambiciosas até 2030, de 40% de redução de emissões. E continua a crescer. Ou seja, reduz as suas emissões, mantendo o seu crescimento e desenvolvimento. Isto tem um efeito de demonstração brutal.
Estando a Europa a fazê-lo há a tanto tempo, não deveria já ter convencido outos países a seguirem o mesmo caminho?
Volto ao meu ponto: o ritmo é lento. Mas o mundo está a mexer no sentido da descarbonização um pouco em toda a parte, é real. Não estou a dizer que é só por causa da Europa. Mas há um efeito europeu. E há ainda outro. Somos considerados bons reguladores. E muitas vezes acabamos difusamente por ter uma influência, com outros a adoptarem os mesmos tipos de standards ou de ritmo de descarbonização. Estou a pensar em veículos novos ou tecnologia em geral. Neste sentido, realmente não detecto, quando olho à minha volta, quem é que esteja a liderar em alterações climáticas. É de facto a UE, sem prejuízo do peso próprio de uma China, de um EUA.
A China pode vir a superar a Europa, como exemplo?
A China pode tornar-se num gigante verde. Parece claro que é do seu auto-interesse descabronizar-se e reduzir a poluição. Não é que a Europa fique para trás. Mas não me admiraria que a China acabasse por se tornar também um exemplo e isso só seria desejável para todos.