"Se o segredo de justiça é para violar diariamente, acabe-se com ele"
Indignada com "relatos mais ou menos degradantes" como transcrições de interrogatórios nos órgãos de comunicação social, a bastonária da Ordem dos Advogados pede julgamentos e condenações pelo crime de violação do segredo de justiça e insiste que é o Ministério Público que muitas vezes o viola.
"Se o Estado não tem capacidade para proteger o segredo de justiça então acabe-se com ele", desafia Elina Fraga. A propósito de José Sócrates, também fala dos requisitos para aplicação da prisão preventiva e constata que este processo expôs "as fragilidades do sistema judicial". Mas há mais fragilidades. "Há promiscuidade e tráfico de influências" na Assembleia da República, diz a bastonária que vê "sempre as mesmas sociedades de advogados a aceder aos corredores de poder". E, sobre o aumento de poderes que o Governo aprovou para os espiões, avisa que "é natural que em tempos como este, a pretexto do combate ao terrorismo, surjam normas em nome da defesa da segurança que atentem gravemente contra direitos, liberdades e garantias" dos cidadãos.
PÚBLICO: Como tem acompanhado a situação na Grécia?
Elina Fraga: Com a mesma preocupação que todos os cidadãos europeus e portugueses. Vejo também com muita indignação aquilo que tem sido a postura de alguns portugueses, que parecem regozijar-se de alguma forma com o mal que está a acontecer à Grécia.
Inclui aí o primeiro-ministro?
Incluo todos aqueles que, em vez de procurarem uma solução moderada que permita ao povo grego sair da grave crise económica, pretendem impor-lhe uma austeridade absolutamente insuportável, tal como a que foi imposta aos portugueses.
Os advogados de José Sócrates têm-se queixado de abuso de poder e de desonestidade por parte dos procuradores e juízes na Operação Marquês. Mas os tribunais superiores têm confirmado as suas decisões. Quem tem razão?
Da última vez que disse que a investigação criminal viola o segredo de justiça foi-me aberto um processo-crime, que felizmente já foi arquivado. O que me preocupa é sobretudo que não sejam violadas as garantias de defesa do arguido, seja José Sócrates ou um anónimo. Depois, que não haja um abuso da prisão preventiva, que seja aplicada apenas nas situações em que tem cabimento na lei – e sempre em última ratio, porque é a privação da liberdade.
A violação do segredo de justiça é um flagelo e evidenciou-se neste como noutros casos mediáticos. Há um apelo muito grande da comunicação social para falar de alguém que foi primeiro-ministro. Em todo o caso censuro mais – mesmo com a probabilidade de me ser aberto novo processo-crime – a investigação criminal, à qual cabe proteger o segredo de justiça. Todos os dias continuamos a ler relatos mais ou menos degradantes, como aconteceu muito recentemente com a transcrição integral do interrogatório deste arguido
Como vê isso?
Com profunda indignação. A Procuradoria-Geral da República deu nota de que tinha aberto mais um inquérito. É preciso dar um sinal claro à sociedade de que este é um crime punível por lei. Não só com a abertura de inquéritos mas também com a aceleração das diligências investigatórias nesses processos, para se começar a apresentar resultados. De que adianta dizer que há 20 ou 30 processos-crime contra determinado órgão de comunicação se eles não passam do inquérito? Se é que são abertos inquéritos, não sei se são. Tem de haver julgamentos e condenações. O mais gravoso é o Ministério Público invocar o segredo de justiça e depois ser ele próprio muitas vezes a violá-lo.
É uma dedução sua...
Na fase do processo em que ainda não foram constituídos advogados e apenas têm contacto com ele o Ministério Público e os órgãos de polícia criminal há-de ser desse lado, da acusação, que se viola o segredo de justiça. Isto é uma verdade insofismável e sucedeu no caso de José Sócrates. O que é censurável é que se ficcione a existência de um segredo de justiça e que essa ficção ainda por cima coarcte os direitos de defesa, obrigada ao silêncio imposto por lei. Compreendo o desespero que sentem muitas vezes os advogados quando, de forma sistemática, ao invés de serem notificados dos despachos judiciais ou das sentenças nos seus escritórios abrem uma página de jornal e vêem lá plasmado o conteúdo desses despachos. Vêem os processos esmiuçados nos jornais sem que seja assacada responsabilidade a quem quer que seja. Parece que o segredo de justiça se viola sozinho, o que é uma coisa fantástica! Por obra e graça do espírito santo aparecem transcritos nas páginas dos jornais os interrogatórios... E isto faz-se com comunicados sistemáticos e absolutamente inócuos da Procuradoria-Geral da República a dizer que vai abrir inquéritos. Se o Estado não tem capacidade para proteger o segredo de justiça então acabe-se com ele. Não podemos é ter a comunicação social a branquear investigações criminais.
O advogado do ex-primeiro-ministro, João Araújo, foi alvo de processos disciplinares na Ordem dos Advogados por ter falado do processo em causa, por um lado, e por ter insultado uma jornalista, por outro.
Os órgãos de jurisdição disciplinar são independentes da bastonária. Impende sobre todos os advogados o dever de urbanidade, independentemente de quem seja o seu interlocutor. Os órgãos disciplinares irão apurar as circunstâncias concretas em que foram proferidas essas afirmações e avaliarão se houve algum excesso de linguagem, ou mesmo a prática de uma infracção disciplinar. Hoje é preciso enquadrar a conduta de todos os operadores judiciários à luz de uma justiça acompanhada ao minuto pela comunicação social, onde os excessos muitas vezes são cometidos por todos. O insulto nunca deve ter outro insulto como resposta.
Indigna-a também que alguém possa ficar detido preventivamente um ano, como poderá suceder com José Sócrates?
A prisão preventiva deve ser aplicada aos arguidos em situações extremas. O que por vezes acontece é que se prende para investigar.
Mas a lei não o prevê?
Não. A lei permite que se investigue. Agora para haver prisão, para além de todos os outros requisitos, como o perigo de fuga, a destruição de prova ou a perturbação do inquérito têm de haver também fortes indícios da prática de crime. A percepção que o cidadão tem é que se anda à procura, de forma quase esquizofrénica, da prática de um ou vários crimes – e não de que há uma linha condutora da investigação criminal. O que é importante retirar do caso do engenheiro Sócrates, são as fragilidades do sistema judicial: este processo pode servir para fazer um balanço sereno sobre aquilo que queremos para a justiça e para a investigação criminal. E quais são os erros que não gostaríamos de ver cometidos.
Acha que depois da prisão do ex-primeiro-ministro a justiça portuguesa ficará igual?
Aquilo que ficou exposto como gravemente lesivo não só da investigação criminal como da honra e do bom nome de alguém privado de liberdade deve incutir alguma reflexão. É necessário revisitar o Código de Processo Penal, porque as formulações que existem não protegem suficientemente os arguidos, e assumir se queremos ou não segredo de justiça em Portugal. Se é para ser violado diariamente acabe-se com ele, de modo a haver uma verdadeira igualdade de armas entre defesa e acusação.
A ministra da Justiça anunciou o combate à corrupção como prioritário, mas os investigadores continuam a queixar-se da falta de meios. Será deliberada?
Quando tomou posse ministra disse “Comigo, a impunidade acabou”. Mas decorrida quase uma legislatura, em que exerceu funções com a falta de cultura democrática que todos lhe reconhecem, a impunidade continua a ser a que existia antes. Até porque essa tarefa cabe aos tribunais – e logo aí houve, da parte dela, uma invasão do poder judicial.
Quis a ministra dizer que ia mudar as regras do jogo, neste caso a lei...
Regras essas que foram declaradas inconstitucionais pelo Tribunal Constitucional, como no caso das grandes bandeiras que ela ergueu sobre a reforma do Código de Processo Penal.
Pode dar exemplos?
A questão do julgamento sumário: a ministra pretendia que arguidos indiciados de crimes cuja pena fosse superior a cinco anos fossem julgados em processo sumário por apenas um juiz.
O aumento dos prazos de prescrição foi não foi declarado inconstitucional…
Aumentar esses prazos é estar a dizer-se que não se tem vontade de investir no combate à corrupção, porque esta medida não resolve nem é uma medida de política criminal digna. Então também se poderia aumentar o prazo de prisão preventiva para cinco anos, para se recolher indícios dos crimes durante mais tempo. Era interessante todos os cidadãos serem obrigados a ter a qualidade de arguidos, eles ou os seus familiares – porque isso altera a visão que se tem das coisas. Se queria acabar com a impunidade, a ministra podia ter, no estatuto da Ordem dos Advogados, estabelecido incompatibilidade entre esta profissão e o exercício da actividade de deputado. Porque há promiscuidade e tráfico de influências, por exemplo na própria Assembleia da República.
Isso foi uma batalha que perdeu?
Não ganho nem perco batalhas. Não sou guerreira, sou bastonária, o que é algo transitório. Muito brevemente serei outra vez advogada. Mas espanta-me que a ministra tenha criado um regime de excepção para os deputados, quando há deputados que utilizam esse cargo para acederem a determinados contratos. É absolutamente intolerável que um titular de um órgão de soberania poder atender os clientes no escritório de manhã e à tarde fazer uma lei que abstractamente os pode favorecer. Vejam-se as auditorias a contratos públicos que têm sido feitas na Assembleia da República: há sócios das sociedades de advogados que participaram nesses contratos que, na qualidade de deputados, têm fiscalizado esses mesmos negócios. Isso tem de acabar. Sob pena de deixarmos cair de podre a democracia, temos de introduzir mecanismos para que as pessoas voltem a ter confiança nestas instituições democráticas, para as quais as pessoas olham com suspeita. Não sei se há ou não tráfico de influências, mas são sempre as mesmas sociedades de advogados a aceder aos corredores de poder, aos grandes contratos, a fazerem as privatizações. A ministra considera o exercício da advocacia incompatível com a função de juiz, presidente de câmara, vereador. Mas não com ser deputado.
António Costa prometeu que, se ganhar as eleições, acaba com os outsourcings de escritórios de advogados a trabalhar para o Estado…
Já estou numa fase da vida em que ligo pouco ao que se diz em pré-campanha eleitoral. O facto de haver outsourcing não me oferece comentário sempre que, pela elevada especificidade dos diplomas, se exijam conhecimentos técnicos que não existam nos ministérios ou na Assembleia da República. O que já não se justifica é no caso de diplomas corriqueiros se paguem fortunas a sociedades de advogados, ainda por cima muito específicas, e sem concurso público.
Que consequências retira do facto de estar prestes a perder a guerra do estatuto da Ordem dos Advogados?
Houve uma grande receptividade por parte dos deputados para introduzirem contributos no estatuto em sede de comissão especializada. Estou confiante nessa melhoria. Insurjo-me contra a tutela do Ministério da Justiça relativamente à Ordem dos Advogados prevista no diploma – que não é de mera legalidade, mas também de mérito. Estamos ao nível da Turquia, que enfrenta um problema semelhante: o Governo turco também quer impor tutela à Ordem dos Advogados, coarctando assim a sua liberdade e independência do poder político. É próprio de espíritos autoritários querem silenciar a Ordem, que sempre foi um baluarte na defesa do Estado de direito.
Quer dar exemplos concretos de como pode a Ordem dos Advogados vir a ser silenciada?
Imagine o que será reter regulamentos imprescindíveis para o funcionamento da Ordem no ministério da Justiça, por falta de aprovação.
Em que ficou a queixa-crime que apresentou contra os membros do Governo que aprovaram o mapa judiciário?
Há-de ser julgado. Fecharam-se tribunais e ofereceu-se uma especialização virtual: criaram-se tribunais especializados com juízes indiferenciados, na medida em que não lhes foi dada formação. É quase como criar um departamento de cardiologia e colocar lá médicos de clínica geral. Criaram-se tribunais de família e menores mas colocaram-se lá muitos juízes que nunca tinham feito esta área. Existe a ficção de que vivemos num Estado democrático, mas depois ninguém pode ter a ousadia de incriminar um político.
Segundo a ministra, até os autarcas que estavam contra a reorganização dos tribunais agora estão a favor…
Não anda pelo país. Neste último ano corri o país e a percepção que tenho é de um grande descontentamento dos autarcas, tanto do PS como do PSD. Não há nenhum juiz, procurador ou advogado que se reveja na totalidade neste mapa judiciário. É insustentável o que se está a passar, a negação do acesso à justiça. Estive recentemente em Baião, cujo tribunal de família e menores foi instalado em Paredes. Há mulheres que não cobram as pensões porque não têm dinheiro para lá se deslocarem. Que são vítimas de violência doméstica que não apresentam queixa quando lhes dizem que têm de ir fazer o exame ao Instituto de Medicina Legal a 50 ou 60 km.
Quais são as suas expectativas para as próximas legislativas?
Na pasta da Justiça é necessário alguém que conheça muito bem a administração da justiça, os operadores judiciários e a geografia e as condições das populações, sobretudo mais afastadas. E que não queira deixar uma marca na história.
Como militante do PSD que é, aceitaria essa pasta se lha propusessem?
A questão não se coloca, sou bastonária dos advogados até Novembro de 2015.
A dívida do Estado aos advogados relativamente às defesas oficiosas já foi paga?
Não totalmente. A ministra considera que só existe dívida a partir do momento em que os honorários dos advogados foram comprovados pelas secretarias judiciais. A Ordem entende que existe quando, no mês subsequente à apresentação da nota de honorários, não chegou essa comprovação. A ministra tem feito um esforço para diminuir a dívida e pagou recentemente seis milhões, considerando que tinha liquidado toda a dívida. Não é verdade. Há mais oito milhões em dívida. O deferimento tácito seria uma boa forma de ultrapassar este constrangimento.
A nível dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, como vê o aumento de poder que o Governo aprovou para os espiões?
Sou muito crítica de qualquer aumento de poderes, a não ser em questões muito particulares, muito fiscalizadas. Repare, estamos num país onde uma ministra da Justiça já afirmou que falava ao telefone como se fosse para um gravador. É preciso ter muita atenção sempre que se permite a invasão da esfera privada das pessoas. E que os órgãos de regulação e fiscalização exerçam efectivamente esse poder – o que não me parece ser o caso em Portugal. É natural que em tempos como este, a pretexto do combate ao terrorismo, surjam normas em nome da defesa da segurança que atentem gravemente contra direitos, liberdades e garantias.
Acha que é o caso?
Acho. É preciso haver moderação.
Enquanto católica, como vê o regresso do tema do aborto ao Parlamento?
Houve um referendo, há que respeitar a vontade manifestada pelo povo português. E há discussões que me parecem prioritárias relativamente a uma discussão que nada acrescenta à nossa civilização. Como católica vejo com muito agrado a evolução que tem havido na própria igreja católica. Congratulo-me com grande parte das mensagens de paz, amor e solidariedade e até censura a um capitalismo selvático que se tem instalado um pouco por todo o lado que este Papa deixa, e que são transversais a católicos e não católicos.