Os actores principais da crise europeia
São os actores principais de um dos momentos mais dramáticos da vida da União Europeia. Também lhes cabe, por isso, a maior responsabilidade.
Angela Merkel
Ao fim de dez anos de mandato e cinco de crise europeia, Angela Merkel é um nome familiar para a maioria dos europeus. Pelas boas e pelas más razões. É única entre os homens de fatos escuros que governam o mundo. Não é só a Europa que depende da sua vontade. As decisões que toma têm, muitas vezes, repercussões mundiais. A Grécia é o último exemplo. Chegou ao poder em 2005, destronando o SPD de Gerhard Schroeder, que teve a gentileza de deixar-lhe em herança as reformas necessárias para tornar a economia alemã, de “doente da Europa” (por causa do custo da unificação), numa economia altamente competitiva. O SPD ainda paga a factura. A sua ascensão ao poder é, em si própria, extraordinária: veio do Leste, sem um pingo de carisma ou de currículo, para integrar o primeiro governo da Alemanha unificada, liderado pelo chanceler Helmut Kohl. Em 1999, a forma implacável como ocupou o seu lugar mostra até que ponto esta mulher tranquila e sorridente em que os alemães confiam tem uma vontade de ferro. Coube-lhe a tarefa que pareceria a menos adequada: liderar a transição da Alemanha de “país normal”, como a declarou Schroeder, para a potência hegemónica no centro do velho continente, graças ao peso enorme da sua economia. “Foi a crise que a fez”, pensam os alemães. A razão pela qual gostam dela e a elegerem por três vezes consecutivas está na forma como liderou a crise europeia. A mesma razão por que muitos outros europeus a detestam. Acusam-na de falta de visão e há motivos para isso. Também aprendeu muito. A crise do euro e a desordem internacional ensinaram-lhe que liderar tem custos. Está hoje perante a decisão porventura mais difícil da sua vida política, que ditará o seu papel na História. Não quer o papel de coveira da Europa. Ainda pode ser a chanceler que salvou o erro.
Alexis Tsipras
A sua ascensão meteórica resulta da imprevisibilidade que as grandes crises produzem. Tem 40 anos e um passado comunista. Participou nos movimentos antiglobalização que tornaram, nos anos 90, cada reunião do G8, da NATO ou da União Europeia num festival de confrontos com a polícia e vidros partidos. Nada faria prever que chegaria a primeiro-ministro da Grécia e se sentaria à mesa do Conselho Europeu. O seu carisma e a sua juventude projectaram-no para a ribalta. Ganhou as eleições, menos por mérito próprio do que por demérito alheio. Com quatro anos de austeridade sem fim à vista, a classe média grega, farta do clientelismo e da corrupção dos dois partidos do sistema (Nova Democracia e PASOK), fez o que em tempos normais nunca faria: votou no Syriza. Começa aqui uma contradição aparentemente insanável, que pode estar prestes a ser resolvida: entre a pequena base eleitoral de um partido de protesto anti-sistema e os eleitores que lhe deram o poder. Tsipras prometeu-lhes o fim da austeridade. Esqueceu-se de que a Grécia ainda precisava dos credores. Acreditou que o fantasma do Grexit obrigasse a Europa a vergar no último momento. Corre o risco de atirar os gregos para uma situação infernal. Vai utilizar a tecla do patriotismo heróico para ganhar o referendo. É difícil de acreditar que tenha deixado para trás as suas posições políticas de sempre. Há uma versão soft e uma versão hard do líder grego. Um “bom rapaz” que subestimou os seus parceiros europeus ou “um Che Guevara que não se arrependeu”. A interrogação é do Le Monde.
François Hollande
Ganhou as eleições em 2012 porque conseguiu encarnar o papel de “anti-Sarkozy” e os franceses estavam cansados dos excessos do antigo Presidente. Apresentou-se como um “Presidente normal”, num país onde o Eliseu ainda representa o Rei Sol ou, então, o general De Gaulle. Sem um pingo de carisma, venceu também porque apresentou aos franceses um programa muito pouco austero para recuperar a economia. Três anos depois, não fugiu do itinerário político dos seus antecessores desde a unificação alemã. Entrou em choque com a chanceler, recebendo em troca um tratamento distante. Percebeu a necessidade de reformar a França, depois de 10 anos de perda constante de competitividade da sua economia (em finais dos anos 90, era mais competitiva que a alemã). Percebeu (como os seus antecessores) que a França só podia manter o seu estatuto de liderança europeia se abraçasse a Alemanha. Merkozy e Merkollande não são assim tão diferentes. Tem hoje uma boa relação com a chanceler. O novo eixo Berlim-Paris já não é o mesmo que moldou a construção europeia desde o seu início. É desequilibrado e as suas motivações estão longe de reflectir os interesses dos outros países europeus. Deixou Merkel liderar a crise grega. O seu desfecho precipitado obrigou-o a tentar retomar o papel de mediador. Não irá abandonar a sua relação com Merkel, mas terá de manter um olho em 2017.
Jean-Claude Juncker
É o último dos românticos. Ainda acredita na Europa e nos seus valores matriciais. É de longe a figura que esteve mais anos (quase 30) no centro de decisão europeu, como líder luxemburguês. Uma qualidade que pode ser também um defeito. Prometeu revigorar o papel da Comissão, a grande perdedora na nova repartição de poderes que emergiu com o Tratado de Lisboa, entalada entre o aumento dos poderes do Conselho Europeu e do Parlamento Europeu. Reconheceu que os programas de ajustamento foram uma “humilhação”. Quer ajudar a vencer a batalha do crescimento. Revolta-se contra a forma como os governos europeus são indiferentes aos valores que a Europa representa: na Grécia como com a vaga de refugiados. Já deixou de ter paciência para a chanceler. É o último herói da velha Comunidade que já foi um modelo para o mundo. Quer, sinceramente, salvar a Grécia. Enfrenta uma nova realidade europeia em que tudo se decide na melhor das hipóteses à mesa do Conselho Europeu e, na pior, na chancelaria de Berlim.
Mario Draghi
Foi uma escolha inesperada e um daqueles momentos raros em que a Europa toma a decisão certa por caminhos errados. Substituiu Jean-Claude Trichet à frente do BCE em Novembro de 2011, um francês que foi um verdadeiro “alemão ortodoxo”. A Alemanha viu a sua aspiração ao lugar vencida pela própria desistência do seu candidato. Tinha um vasto currículo de banqueiro central e de académico. Dirige a única instituição federal da União. Com a Europa dividida, sem estratégia e sem liderança, coube-lhe a missão de salvar o euro, a qual levou a bom porto. Adoptou medidas ditas não convencionais para utilizar até ao limite os estatutos do BCE. Teve uma agradável surpresa, quando, em plena crise grega, viu o Tribunal do Luxemburgo dar-lhe razão contra a queixa do Tribunal de Karlsrhue sobre as OMT, que serviriam para comprar dívida soberana dos países que os mercados resolvessem atacar. Nem sequer precisou de as utilizar. Ao contrário da Reserva Federal, que se rege pelo crescimento e o emprego, o Banco europeu foi decalcado do Bundesbank e carrega consigo o terror dos alemães pela hiperinflação. No ano passado, recorreu ao “Quantitative Easing” injectando liquidez na economia, para travar o risco de deflação. Hoje, ninguém põe em causa o seu papel crucial na salvação do euro.
Democracia
A integração europeia arrasta consigo desde a sua fundação um problema de legitimidade democrática que foi sendo mais ou menos resolvido nas sucessivas revisões dos tratados. A crise voltou a colocá-la em cima da mesa, por boas e por más razões. Enquanto a Europa foi uma construção das elites e a prosperidade crescente legitimava as suas decisões, o chamado défice democrático não era uma preocupação. Tornou-se muito mais evidente depois de Maastricht e com tentativa falhada de dotá-la de uma Constituição. A crise do euro colocou o problema noutro patamar, porque o vasto consenso europeu assente nas duas famílias políticas de centro-esquerda e de centro-direita que fundaram as Comunidades não resistiu aos efeitos devastadores da crise na vida das pessoas. O problema existe, não vale a pena negá-lo. Mas a crise grega está a ser utilizada para alimentar um antagonismo entre Europa e democracia que não existe. Quando aderiram à Comunidade, as democracias abdicaram voluntariamente de parte dos seus poderes soberanos. Desde a sua fundação que a lei europeia se sobrepõe à lei nacional. As Constituições nacionais vão sendo revistas para compatibilizar os dois níveis de legitimidade. O euro levou esta partilha de soberania a um nível federal pela simples razão de que uma união monetária tem uma única moeda e um único banco central. Para os soberanistas, que rejeitam a própria integração europeia, o argumento democrático faz sentido. Para aqueles que querem manter-se no euro mas nas suas próprias condições, o argumento democrático é pura demagogia. O problema não é só grego. A crise alterou a paisagem política europeia, fazendo emergir partidos nacionalistas ou radicais que condicionam cada vez mais as decisões dos governos. Por alguma razão, a vitória do Syriza foi saudada por Marine Le Pen.
Europa
Foi um belíssimo sonho que garantiu a paz na Europa, depois de duas guerras civis devastadoras. Permitiu aos países europeus construir sociedades mais prósperas, mais livres e mais seguras. Enfrentou uma “súbita aceleração da História”, com a queda do Muro de Berlim e a unificação da Alemanha. O euro, que hoje está no centro da sua crise existencial, não foi uma escolha económica mas uma decisão política: o marco em trova da unificação da Alemanha. Até à crise global, a “obra-prima inacabada” de Monnet foi invejada no mundo inteiro como o verdadeiro “fim da História” anunciado por Fukuyama. Era um ideal mobilizador. Os cinco anos que leva de crise foram, porventura, os mais dramáticos da sua vida. A globalização colocou novos desafios às suas economias. O seu modelo social foi posto à prova. A forma como atravessou os anos de crise criou divisões profundas. Perdeu-se a dimensão de ideal. “ A actual crise não é apenas o reflexo do falhanço do Estados grego moderno”, escreve o colunista do Financial Times, Gideon Rachman. “É o fracasso do sonho europeu de unidade, paz e prosperidade”. A Europa que conhecemos acabou. Os sinais de desagregação multiplicam-se. A ideia de comunidade entre povos morreu. Ou quase. A Grécia é apenas mais um sinal. A ironia é que a Europa continua a ser necessária.