De como a bactéria da peste se tornou letal e mudou a história do mundo
Cientistas descobriram como, há pelo menos 1500 anos, o microorganismo que provoca a temível peste bubónica deixou de ser uma gastroenterite e tornou-se rapidamente mortífero.
A bactéria da peste é muito semelhante, do ponto de vista genético, a uma outra bactéria, mais antiga, chamada Yersinia pseudotuberculosis, que provoca uma infecção gastrointestinal. E os especialistas pensam que Y. pestis terá de facto evoluído a partir de Y. pseudotuberculosis há entre 20.000 e 1500 anos.
A mais tristemente célebre forma da peste é a peste bubónica, uma infecção generalizada do organismo humano que transforma os gânglios linfáticos nos característicos “bubões” – a marca mais aterradora desta praga que dizimou por várias vezes as populações da Europa durante a era cristã.
Sabe-se hoje, com base no estudo genético de Y. pestis, que a primeira pandemia historicamente documentada de peste bubónica foi a chamada “praga de Justiniano”. Entre os anos de 541 e 750, a doença matou mais de metade da população europeia e contribuiu para a queda do Império Romano do Oriente. Mais tarde, durante a Idade Média, uma outra grande pandemia de peste bubónica, que ficou na História como Peste Negra, mataria, entre 1347 e 1351, mais de 100 milhões de pessoas. A Europa demoraria 150 anos a recuperar da catástrofe.
Até aqui, porém, não se conheciam ao certo os pormenores genéticos desta radical mudança bacteriana que alterou a história mundial. Mas agora, a equipa de Wyndham Lathem, especialista de microbiologia e imunologia da Universidade Northwestern, descobriu que essa evolução se processou em duas etapas.
Numa primeira fase, a bactéria da peste a que Y. pseudotuberculosis dera origem apenas era capaz de infectar os pulmões das suas vítimas, provocando pneumonias fulminantes, altamente contagiosas e letais. Mas foi só numa segunda fase que a bactéria Y. pestis se transformou em peste bubónica. E a sua primeira manifestação "global", como já foi referido, surgiu, ao que tudo indica, no ano 514.
Mais precisamente, o que estes investigadores demonstraram agora foi que bastou que a bactéria ancestral (e relativamente inócua) Y. pseudotuberculosis adquirisse a dada altura um gene (e só um), designado Pla, para a primeira e letal forma de Y. pestis, causadora de pneumonias, emergir. E que a seguir, bastaria uma mutação no gene Pla para transfomar a forma pneumónica na forma bubónica da doença.
“Os nossos resultados mostram que Y. pestis já era capaz, numa fase muito precoce da sua evolução, de causar graves infecções respiratórias”, diz Lathem em comunicado da sua universidade.
Há quanto tempo terá acontecido esta primeira alteração evolutiva? “É uma pergunta de difícil resposta”, respondeu Lathem ao PÚBLICO por email. “Por enquanto, apenas podemos supor que a transição ocorreu há mais de 1500 anos” (isto é, antes do início da praga de Justiniano).
Seja como for, os cientistas quiseram testar a hipótese, proposta por Lathem, segundo a qual o gene Pla, que comanda o fabrico de uma proteína de superfície da bactéria Y. pestis, aumenta fortemente a capacidade de a bactéria infectar os pulmões. Para isso, utilizaram a estirpe mais ancestral, do ponto de vista genético, de todas as estirpes de Y. pestis actuais.
Primeiro, verificaram que, embora esta estirpe ancestral já conseguisse colonizar os pulmões de ratinhos, ainda era incapaz de provocar pneumonias graves. E depois, inseriram o gene Pla no ADN dessa estirpe ancestral – e aí sim, constataram que a bactéria alterada causava nos animais a forma pneumónica da peste. Por último, descobriram que uma única mutação no gene Pla era essencial para a bactéria se conseguir espalhar ao resto do organismo, dando lugar à forma bubónica da peste.
“É provável que as bactérias já fossem capazes de provocar peste bubónica antes da mutação no gene Pla surgir, mas pensamos que terá sido de forma menos eficiente”, diz-nos Lathem. “O que pensamos é que essa mutação foi um dos principais factores que permitiram que Y. pestis, que até lá causava epidemias localizadas, se tornasse pandémica.”
O que é que esta descoberta implica em termos de futuras potenciais pandemias humanas? “Acho que o nosso estudo reforça a ideia de que pequenas alterações genéticas podem ter um imenso impacto na capacidade patogénica de uma bactéria”, responde-nos Lathem. “E sugere que pequenos eventos do mesmo tipo possam ter grande impacto noutras bactérias”.
Questionado pelo PÚBLICO acerca de perigosidade potencial de realizar este tipo de experiências no laboratório, Lathem responde que “é da responsabilidade dos cientistas não inserirem dentro de microrganismos patogénicos capacidades que possam afectar o seu potencial infeccioso ou aumentar o número de possíveis hospedeiros”. Contudo, acrescenta que no estudo, não conferiram a Y. pestis "qualquer capacidade que não tivesse naturalmente, uma vez que todos os casos humanos de peste são causados por estirpes portadoras do gene Pla.” E conclui: “Para além disso, o nosso trabalho é feito em instalações de alta segurança, sob a supervisão de múltiplas agências e grupos – e por pessoas altamente treinadas na manipulação adequada de Y. pestis.”