O grande museu
A Trilogia dos Vivos de Roy Andersson é um gosto adquirido que pede tempo para ser apreendido. E uma exposição do que é ser humano
Se isto é verdade de todos os filmes, no caso do cineasta sueco essa reacção é exacerbada ao limite, porque este não é um cinema de efeito instantâneo e recusa a dicotomia “gosto”/”não gosto”. É preciso deixar a precisão maníaca e perfeccionista de Andersson “decantar” com o tempo. Num segundo tempo, independentemente de se gostar ou não, está aqui um autor que força a admiração do espectador, pela absoluta coerência e pela meticulosa atenção ao detalhe de que a sua obra faz prova, pela lógica de tableaux vivants que parecem estar expostos à nossa frente como autênticos quadros numa exposição sobre o tema “o ser humano”.
É precisamente esse o tema genérico desta trilogia de comédias amargas, designada pelo realizador como Trilogia dos Vivos, mas que pode ser vista “fora de sequência”. Trata-se de três variações sobre um mesmo tema, a luta diária da “gente normal” pela sobrevivência no mundo em que vivemos, contada em sequências de quadros ou sketches apenas aparentemente soltos entre o pontilhismo burlesco de Tati (levando o tempo necessário para que cada gague se revele por inteiro) e o formalismo rígido e austero dos grandes “espiritualistas” do cinema (Dreyer, Bresson, Tarr, Bergman). Por trás da secura deste humor escarninho, contudo, existe um humanismo significativo no modo como Andersson trata as suas personagens, a par de uma terrível inexorabilidade no modo como lhes impõe uma demiurgia fatalista, quase sem fuga possível. Estamos a falar de um cineasta abertamente moral, mais do que moralista, no modo como os seus quadros trabalham uma tentativa de lidar com as falhas e o horror do mundo em que vivemos, de perceber o que nos leva a fazer isto ou aquilo e de o tentar corrigir ou compensar.
Andersson é, acima de tudo — e para voltar à questão inicial da reacção — um gosto adquirido que precisa de múltiplas visões para se começar a insinuar verdadeiramente, com o humor afiado dos melhores episódios a ter a mesma lucidez de um bom cartoon político. Dos três filmes, só Tu, que Vives chegara anteriormente às nossas salas — Canções do Segundo Andar, o filme que deu início à trilogia em 2000, teve exibições pontuais em ciclos ou sessões especiais, mas nunca teve estreia oficial. Mas para os que não foram ainda expostos ao peculiar cinema do sueco, o melhor ponto de partida será provavelmente o mais recente dos três, Um Pombo Pousou num Ramo a Reflectir na Existência, vencedor do Leão de Ouro em Veneza faz agora um ano. É o que tem uma narrativa mais convencionalmente linear, acompanhando dois caixeiros-viajantes desastrados, e é também o que melhor articula a dimensão existencial do cinema de Andersson com um maior controlo narrativo e de ritmo. Seja como for, não se fica indiferente a esta obra que exige ser vista no grande ecrã — o trabalho formal de Andersson, que reclama a influência da pintura e que torna os filmes autênticas obras de arte visuais que exigem a mesma atenção de um quadro num museu, é o seu maior trunfo e pede o maior ecrã possível para ser devidamente apreciado.