Filho de uma grandessíssima tradição
Durante anos Vieux Farka Touré foi o filho de Ali Farka Touré. Agora, é filho da tradição que pariu ambos. Em Lisboa vai ouvir-se Mon Pays, o seu último disco, e uma amostra do álbum que virá a seguir. O Mali é aqui.
Informação pertinente, tendo em conta que o disco servirá de suporte ao concerto que dará, sábado, no Largo do Intendente, em Lisboa, no festival Lisboa Mistura – evento que conta ainda com a participação do grande Hugh Masekela, no domingo.
Talvez nunca tenham ouvido Mon Pays ou qualquer disco de Vieux Farka Touré – uma falha que podem colmatar dando um pulo ao Spotify. Mas o nome Farka Touré não deverá ser-vos estranho. Na década de 1980 um tal de Ali Farka Touré começou a ser ouvido pelos europeus. A música que praticava – e que parecia ser uma sedutora variação do blues – começou devagarinho a criar culto. Ali estava algo de inédito: não era, como Ali se fartou de dizer nos anos seguintes, uma variação do blues – era a raiz do blues.
Uma parte do fascínio que Ali exerceu nos ocidentais partiu daí: era como se através dele tivéssemos acesso à música que estava no cerne daquela com que crescemos (o rock). Era como se, de repente, sem esforço, pudessemos conhecer os nossos trisavós. Ry Cooder juntou-se a Ali para gravar Talking Tumbuktu e de repente o maliano era mais que um caso de culto. Em cada canção, em cada concerto, falava de fome, do seu povo em Bamako. Tornou-se um gigante que carregava uma cultura às costas.
Anos depois da sua morte, o seu filho Vieux ainda sente a sua sombra: “É difícil ser filho de Ali”, diz-nos, ao telefone de Bamako, “porque ele fez muita coisa. Não vou mentir: a maior parte das pessoas compara-me a ele, mas há quem nunca traga o nome dele à baila e, como o tempo passa e as gerações mudam, também há quem conheça a minha música e não conheça a dele”.
Músico de palco
Seja como for, Vieux já se resignou ao peso do nome: “Sei bem que por mais anos que viva haverá sempre alguém a comparar-nos”. Vieux está, portanto, naquele campeonato terrivel que alberga também Sean Lennon, Teddy Thompson: ser o descendente de um monstro, crescer sob a sombra de alguém maior que a vida.
E no entanto, quando se ouve um tema como Sokosondou, que abre The Secret, o disco que Vieux lançou em 2011, não se pode senão pensar que isto é uma injustiça: uma intrincada rede de cordas – guitarras acústicas e eléctricas, ngonis, koras – vai içando até que um motim benigno arriba. Sim, Ali também fazia algo similar, mas o ponto não é esse. O ponto é: só alguém com muito talento chega a isto. O talento de Vieux, a beleza que ele traz ao mundo, devia ser laudada por si mesma e não diminuída à conta do legado do seu pai – porque certamente Vieux não pediu para ser filho de Ali.
“Não posso dizer o que vai acontecer em Lisboa porque nunca sei bem o que acontece nos meus concertos”, explica a dado momento Vieux. “Isto não quer dizer que eu não tenha um alinhamento – tenho. Às vezes altero-o, se não estiver satisfeito com o que estou a fazer – mas nunca o altero por causa do público. Agora, nos meus temas há sempre muito espaço para a improvisação, pelo que o que acontece em cada concerto é único”.
Ao ouvi-lo tivemos de nos refrear de modo a não dizer “Os concertos do seu pai também costumavam ser assim”. O que Vieux promete é uma celebração: “Não vou dizer que não goste de compor, mas acho que sou mais um músico de palco. Fazes um disco e o disco nunca mais muda. Mas começas uma digressão e as canções vão mudando. Às vezes improvisas a meio de uma canção e o que fizeste fica-te na cabeça e nasceu ali uma canção nova. Essa impresibilidade, o não saber como um público vai reagir, tudo isso torna um concerto muito mais apelativo que estar fechado num estúdio a gravar”.
Nós vamos servir de cobaias a Vieux, fiquem desde já a saber. “Ando a acabar de compor o próximo disco e algumas faixas vão ser tocadas no concerto”. Que vai ser baseado em The Secret e em Mon Pays, opção que tem uma explicação simples: “São os meus dois últimos discos e aqueles de que me sinto mais próximo. Aqueles em que acho que encontrei uma voz só minha”, diz Vieux. Isto não é uma coisa que lhe dê prazer, note-se: “É estranho, porque toda e qualquer canção é importante para mim – são filhos. Com umas perdi imenso tempo, semanas, meses, anos, com a melodia, com o ritmo, depois ainda há as palavras; com outras foi tudo mais fácil. E tenho amor por todas. Mas prefiro estes dois discos”.
Vieux vive num paradoxo: por um lado sente a necessidade de “manter sempre uma ligação com a raiz musical e cultural” de onde vem; por outro sente a obrigação e o ímpeto de “não repetir apenas o passado, de levar esta música para outros caminhos”. Notava-se isso em The Secret, em que um lado deliberadamente funky assomava por vezes. Nesse sentido, já agora, ele é um músico mais completo que o pai, com uma maior variedade de géneros. (O pai, diga-se, não queria que ele fosse músico.)
Mas por mais que Vieux diga que ama todas as suas canções por igual, Mon Pays é a menina dos seus olhos. “Foi a primeira vez que consegui ter um olhar completo sobre o Mali e transformá-lo em disco”, diz. De certa forma – e isto é uma coisa terrível de se dizer – foi a primeira vez que conseguiu ombrear com o pai, na forma como este pegava na desgraça que o rodeava e fazia disso uma celebração da sua cultura.
“Eu queria um disco que resumisse o Mali e os problemas do Mali”, explica Vieux, antes de, com um suspiro, deixar uma frase danada: “O Mali é sempre um problema. Desde os anos 1960 que é um problema. Não é possível ser-se músico aqui e não ter isso em conta. Aqui a fome não é uma coisa que acontece aos outros. Aqui ninguém é os outros”. Vieux assegura que “não quis ter uma visão política”. “Não estou interessado em política nem em ideologias. Estou preocupado com o meu povo”.
Ele tem uma visão curiosa sobre o Mali: “O Mali é a música, sem a música fica apenas a fome”. Vieux chega ao cúmulo de dizer que “o Mali tem a melhor música do mundo”, uma posição que já defendeu em outras entrevistas. Quando lhe perguntamos o que anda a ouvir agora, ele não tem nomes ocidentais na ponta da língua – retorque com “música tradicional, da minha aldeia, o que sempre” ouviu. E antes que o telefone se desligue e a conversa acabe não deixa de dizer que “em termos musicais o Mali é tão grande que já não é o caso de os europeus não terem ideia do que nós aqui fazemos – eu, que vivo aqui, não consigo conhecer tudo o que se faz cá. A música no Mali é infinita”.
Infinita, mas não incompreensível. Um dia ouvimos Ali Farka Touré dizer a uma jornalista que ela não poderia compreender a música que ele fazia porque era europeia e branca. Vieux acha que “as coisas mudaram”. “Até certo ponto o meu pai tinha razão – ou numa certa altura. Mas hoje as pessoas já conhecem a nossa música. Eu diria que há gente que não consegue compreender esta música nem que tivessem as letras traduzidas à frente. Porque não têm interesse em compreender. E há outras que simplesmente por terem sensibilidade captam qualquer coisa. E isso, captar qualquer coisa, já é mais que suficiente”.
As coisas mudaram de facto: hoje o Mali já não é “exótico”. É apenas belo. Pelo menos na voz de Vieux.