Hélia Correia é a vencedora do Prémio Camões
Escritora é o 11.º português a receber aquele que é considerado o mais importante prémio literário destinado a autores de língua portuguesa.
Hélia Correia sucede ao poeta, historiador e memorialista brasileiro Alberto Costa e Silva, que ganhou o prémio em 2014, e a sua escolha volta a deixar Portugal e o Brasil empatados, com 11 escritores de cada um dos países na lista de premiados.
Não foi a primeira vez que o nome de Hélia Correia surgiu candidato ao Prémio Camões, em 2010, ano do brasileiro Ferreira Gullar ela esteve na disputa até ao fim. O júri que escolheu Hélia Correia integrou dois portugueses (o poeta e crítico literário Pedro Mexia e a ensaísta Rita Marnoto, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra), dois brasileiros (o poeta e ensaísta Antonio Carlos Secchin e o escritor Affonso Romano Sant'Anna) e dois representantes dos países africanos de língua portuguesa: a ensaísta santomense Inocência Mata, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, e o escritor moçambicano Mia Couto, vencedor do prémio Camões em 2013.
O poeta e crítico literário Pedro Mexia, que pela primeira vez fez parte do júri, ao telefone do Rio de Janeiro disse ao PÚBLICO que a decisão “foi extremamente fácil”. Embora Hélia Correia “não seja um nome tão óbvio no Brasil como é em Portugal”, depois de ter sido lançado à discussão, “e tendo em conta que para os jurados brasileiros o nome já estava em cima da mesa de uma votação anterior, foi relativamente pacífico”. Mesmo quem não a tinha na sua lista, “não pôs nenhuma objecção”. A decisão só não foi mais rápida porque houve alguns problemas logísticos – o escritor Mia Couto participou na reunião via Skype e aconteceram alguns problemas de ligação.
Uma das razões que pesou na escolha do júri foi a sua polivalência em termos de géneros e de estilos. Hélia Correia escreve romance, novela, conto, teatro e poesia e os seus livros são muito diferentes uns dos outros. “Há escritores que escrevem sempre o mesmo livro. Hélia Correia, tendo o seu imaginário, tem livros bastante diferentes entre si”, explica Pedro Mexia. Importante foi também “o diálogo que a autora estabelece com as tradições: com a Antiguidade Clássica, sobretudo grega” e com “um imaginário que não é bem mágico, é telúrico, também de fadas e assombrações”, explica o crítico. “Há um lado também gótico na literatura dela e referências à literatura contemporânea, que vão desde uma personagem de José Saramago até aos livros da literatura inglesa, os vitorianos, as irmãs Brontë e aos pré-rafaelitas.”
Da Grécia antiga às Brontë
Para Francisco Vale, que vem editando a obra da escritora na Relógio d'Água desde 1983 – "praticamente desde que existe a editora" – é um prémio inesperado mas merecido. "A Hélia é um dos escritores que melhor trata a língua portuguesa, com uma obra muito diversificada – romance, poesia, obras dramáticas, contos, literatura infanto-juvenil", diz. "O português dela é muito fecundo. Tem um estilo próprio, com uma grande precisão de linguagem. Cada frase tem o número exacto de sílabas. Ela leva o rigor da escrita a esse ponto". Além de que "consegue criar personagens muito originais que vão ficar na literatura portuguesa", nota o editor.
A autora estreou-se com O Separar das Águas, em 1981, e O Número dos Vivos, em 1982. A Casa Eterna (Prémio Máxima de Literatura, 2000), Lillias Fraser (Prémio de Ficção do Pen Club, 2001, e Prémio D. Dinis, 2002), Bastardia (Prémio Máxima de Literatura, 2006) e Adoecer (Prémio da Fundação Inês de Castro, 2010) são alguns títulos da sua bibliografia. Vinte degraus e outros contos foi publicado no ano passado (Grande Prémio do Conto Camilo Castelo Branco 2014).
"Ela é muito inovadora na escrita, mas ligada à melhor tradição literária. Tem influências do Camilo Castelo Branco, da Emily Brontë de O Monte dos Vendavais, e dos clássicos gregos em relação aos textos dramáticos. Aliás, a Hélia, quando a vemos, parece muitas vezes acabada de chegar da Grécia Antiga", continua o editor.
A Relógio d'Água planeia reeditar este ano algumas obras escolhidas de Hélia Correia em capa dura – uma colecção que inclui Virginia Woolf, Oscar Wilde e Kafka – e as novelas O Separar das Águas, Soma e Villa Celeste. A autora trabalha actualmente num novo romance.
"Não é por causa dos prémios que edito a Hélia. Mas sempre editei incondicionalmente. Só fiz isso com outro autor, o Rui Nunes. Disse-lhes que publicaria tudo o que escrevessem. Publicaria mesmo sem ler. São casos perfeitamente excepcionais", diz Francisco Vale.
“Que fixe!”. Talvez não fosse para escrever, mas foi assim que a ensaísta Rosa Maria Martelo reagiu à notícia de Hélia Correia ganhara o Prémio Camões. Júri do prémio em 2011, quando este foi atribuído a Manuel António Pina, a professora da Faculdade de Letras da Universidade do Porto diz que este “é um prémio muito merecido” e que a deixa “muito feliz”.
Na obra de Hélia Correia, o que mais seduz Rosa Maria Martelo é o modo como a autora “articula um registo narrativo com tonalidades poéticas”. Uma escrita “híbrida”, através da qual “consegue uma fuga ao realismo, mas sem nunca deixar de manter uma atenção muito directa ao mundo em que vivemos”, precisa a ensaísta, que acha “muito bonito” o modo como Hélia Correia “articula o fantástico com as circunstâncias da nossa vida”.
Exemplo particularmente feliz desta “ligação muito eficaz entre o inactual e o actual, entre o local e o universal” é, defende Rosa Martelo, o livro de poesia Terceira Miséria, que Hélia Correia publicou em 2012 e que recebeu o prémio literário Correntes d'Escritas. “Num dia como o de hoje, em que esperamos que a Europa resolva o problema da Grécia, o texto de Hélia Correia antecipa o que está a acontecer e chama a atenção para a necessidade de o resolvermos como um problema de todos nós, do nosso projecto de mundo enquanto humanos”.
Em Terceira Miséria, a autora “consegue mostrar como aquilo que é a nossa tradição e a nossa cultura nos permite perceber a complexidade do mundo contemporâneo, ao mesmo tempo que nos dá instrumentos de salvaguarda do humano”, conclui a ensaísta.
Hélia Correia veio da poesia, deixou-a, mas transporta-a em tudo o que escreve. Nos contos — o mais recente volume Vinte Degraus e Outros Contos (Relógio d’Água 2014) e nos romances — o último foi Adoecer — serão contaminados por essa experiência e a tal fé na literatura. No conto A Dama Singular, a protagonista acredita nisso como quem acredita que depois de ensinar uma menina a ler e a escrever ela pode finalmente ficar “encerrada na beleza”. Vale todo o esforço. A escrita de Hélia Correia é capaz desse efeito, apesar da inquietação que transmite: o de uma clausura quase reconfortante.
É um efeito ainda mais eficaz pela clareza das frases e de um enorme poder de criação de imagens. “Lizzie passou para detrás da porta abandonada que servia de biombo e regressou vestida de rapaz. Apanhara o cabelo sobre a nuca. Mostrava as pernas e isso produzia um curioso efeito assexuado. Gabriel adiantou-se e começou a ocupar-se da figura que falava, não nos papéis de esboço, mas na tela. As personagens masculinas já se achavam muito avançadas. Ele posara para o bobo. Os pré-rafaelitas provocavam situações de entreajuda em que existia, a par de exibição, sinceridade.”
É uma passagem simbólica de Adoecer que transporta muitas das marcas de Hélia Correia, uma autora que próxima, pelo ambiente e pela linguagem, de escritores ingleses, como Iris Murdoch, mas também da pintura de Rossetti, John Everett ou Elizabeth Siddal que a inspirou precisamente na escrita de Adoecer ao criar a personagem Lizzie, alguém entre o amor e a doença, a salvação ou a condenação.
Lizzie como Lillias são personagens exemplares. Duas mulheres entre a força e o pathos, condições que caracterizam muitas das mulheres que Hélia criou na sua ficção. “Eu vejo a morte — disse Lillias.” Era um poder que ninguém queria, o de antecipar o fim. Uma frase simples que carrega toda a tragédia humana, que coloca a questão sobre a condição do homens na terra. Delicadamente, é para aí que a escrita de Hélia Correia quase sempre leva: para a essência.
Uma infância livre
Hélia Correia nasceu em Lisboa, em 1949, mas cresceu em Mafra, terra da família materna. “A minha infância e a de todo o meu grupo de amigos foi de algum modo especial”, conta ao PÚBLICO, explicando que o pai era um anti-fascista que tinha estado preso ainda antes de ela nascer e que viveu sempre entre pessoas da oposição ao regime salazarista. “Tivemos uma educação extremamente progressista, muito igualitária, e nada sexista, completamente desfasada da educação normal da época”, diz.
Mas essa infância “muito feliz, muito livre e criativa” coexistia com o “terror absoluto” que era “a ameaça da PIDE, de os pais serem presos, de não se poder falar, de ser preciso esconder coisas”.
Além de serem tolerantes, os pais de Hélia Correia eram leitores. “Havia uma forte presença literária em minha casa: lembro-me de os meus pais discutirem porque a minha mãe era camiliana e o meu pai queirosiano”.
Mas foi uma das suas amigas, desse grupo de filhos de mafrenses da oposição, que a tornou uma leitora precoce. “Era um ser fascinante lindíssimo”, diz. Mais velha quatro anos do que a futura escritora , era ela que fazia de professora quando o grupo, em dias mais chuvosos e frios, se reunia no sótão de um deles para brincar às escolas. E era uma professora tão competente, mesmo a fazer de conta, que aos quatro anos Hélia aprendeu a ler.
A partir daí começou a “deitar a mão a tudo o que era livro” e leu coisas que não eram particularmente indicadas para a sua idade. “Ainda hoje tenho horror ao Victor Hugo, porque li O Homem que Ri e aquilo dava-me medo, faz parte dos meus pavores”.
Não ficou nada satisfeita quando, aos seis anos, o médico da família lhe diagnosticou um esgotamento, mandou que lhe retirassem todos os livros do alcance da mão, e convenceu o pai de que a pequena Hélia não poderia ir para a escola nesse ano. “Para me compensar do aborrecimento, trepava a uma varanda da escola e assistia às aulas de uma professora que tinha sempre a janela da sala aberta”.
Terminado em Mafra o que hoje seria o 9.º ano, acabou os estudos liceais em Lisboa e licenciou-se em Filologia Românica. É logo no início da sua frequência universitária, comuns 18 anos, que começa a publicar poemas nos suplementos literários do tempo, como o Juvenil do Diário de Lisboa, coordenado por Mário Castrim.
Embora tenha começado pela poesia, e seja possível argumentar que, enquanto ficcionista, nunca deixou de ser poeta, foi como prosadora que ganhou notoriedade e reconhecimento crítico. Estreou-se em 1981 com O Separar das Águas e, ao longo da década de oitenta publicou, além de A Pequena Morte / Esse Eterno Canto, um livro de poemas a meias com o seu companheiro Jaime Rocha – nome literário do jornalista Rui Ferreira e Sousa –, mais cinco volumes de ficção, incluindo O Número dos Vivos (1982) e a novela Montedemo (1983), obras geralmente aproximadas do realismo mágico.
A própria autora não rejeita essa filiação – “Não vou ignorar a importância que teve o realismo mágico sul-americano –, mas sublinha que nunca teve “um projecto de escrita”. E a sua escrita testemunha outras óbvias paixões, das irmãs Brontë – “A Emily Brontë é uma pessoa de minha casa, vive comigo – aos pré-rafaelitas ingleses. “É gente com quem sinto muita intimidade, mais do que com muitos vivos do meu quotidiano”.
A partir dos anos 90, vieram juntar-se à sua criação ficcional várias obras teatrais, é já no século XXI, em 2001, que publica aquele que é talvez o seu livro mais apreciado, Lillias Fraser, cuja história decorre entre 1746 e 1762 entre a Escócia e Portugal, abarcando o terramoto de Lisboa, que leva a protagonista a fugir para Mafra. O livro ganhou o prémio de Ficção do Pen Club.
O regresso à poesia
E já em 2012, Hélia Correia protagonizou um regresso bastante extraordinário à poesia com A Terceira Miséria, um livro que é um único longo poema em várias partes, e que lê o presente à luz da lição da Grécia clássica, sugerindo que “A terceira miséria é esta, a de hoje. / A de quem já não ouve nem pergunta. / A de quem não recorda”.
A autora conta que, curiosamente, o PÚBLICO contribuiu involuntariamente para que tivesse escrito este livro. “Convidaram-me para escrever um poema para uma página de poesia que o jornal tinha e eu concordei desde que o poema saísse [como veio a acontecer] no dia em que ia haver uma grande manifestação dos indignados”. Acontece que “saiu um poema enorme, que não cabia numa página”, e teve de escrever outro. E ficou nas mãos com A Terceira Miséria, “sem saber o que lhe fazer”.
Um poema de evidente actualidade, tendo em conta o modo como está a evoluir a situação grega, mas disso a escritora não consegue agora falar. “A raiva tira-me as palavras todas”.
Quanto ao prémio Camões, diz que foi “uma prenda muito bonita” e “uma grande surpresa”, e que a apreciou ainda mais por vir de um júri “onde há pessoas que admiro muito”, mas também vai dizendo que fez pouco “pelo prestígio da língua portuguesa” e que “haveria nomes muito mais indicados, pessoas que têm aquilo a que se pode chamar uma carreira literária”. Não está a ser irónica, acha apenas que a sua relação com a escrita é tão natural que o que ela possa valer não é mérito seu. “É como se me premiassem por ter olhos castanhos”.
Desde que o Prémio Camões foi inaugurado em 1989 – ano em que venceu o poeta português Miguel Torga –, foram escolhidos quatro autores dos países africanos de expressão portuguesa (sem contar com o angolano Luandino Vieira que recusou): os moçambicanos José Craveirinha, em 1991, e o já referido Mia Couto, o angolano Pepetela, em 1997, e o cabo-verdiano Arménio Vieira, em 2009.
Entre Torga e a autora de Montedemo (1983) ou Lilias Fraser (2001), receberam ainda o Prémio Camões os autores portugueses Vergílio Ferreira (1992), José Saramago (1995), Eduardo Lourenço (1996), Sophia de Mello Breyner Andresen (1999), Eugénio de Andrade (2001), Maria Velho da Costa (2002), Agustina Bessa-Luís (2004), António Lobo Antunes (2007) e Manuel António Pina (2011).
A lista de premiados brasileiros inclui João Cabral de Melo Neto (1990), Rachel de Queiroz (1993), Jorge Amado (1994), António Cândido (1998), Autran Dourado (2000), Rubem Fonseca (2003), Lygia Fagundes Telles (2005), João Ubaldo Ribeiro (2008), Ferreira Gullar (2010), Dalton Trevisan (2012) e Alberto da Costa e Silva (2014).