O meu marido é ciclista

Para o meu marido a vida resume-se num quadro e num selim e eu, parva, porque gosto dele mesmo assim, mesmo assim bruto, estou lá sempre para o apoiar quando vai para a estrada ou para a montanha

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Russell Boyce/Reuters

Uma gravata, por favor, pelo menos uma vez por semana, que é quando cai a sexta-feira para me fazer sentir, finalmente, a mulher de alguém enquanto saímos de casa, de mão dada a caminho do trabalho. Não custa muito, pois não? E assim, pelo menos uma vez por semana, deixas a bicicleta em casa mais o cheiro da bicicleta em casa, o capacete e o colete reflector, as luvas, o óleo, as mãos sujas e os olhos sujos, a cara mascarrada e esse sorriso parvo de quem não pode viver sem as duas rodas debaixo dos pés mais o tralho semanal e as nódoas negras de quem parece andar à porrada pelo simples prazer de levar porrada.

O meu marido é ciclista, e já dizia o anúncio, o que custa não é fazer oitenta quilómetros de bicicleta e acordar às cinco da manhã. Não. O que custa é não andar de bicicleta. De modos que é isto a minha vida, viver com um marido suado de manhã, suado à tarde e suado à noite, que em vez de olhar por mim e para mim quer antes saber quantas bicicletas já tem na garagem e quantas bicicletas ainda cabem lá, mais preocupado em estoirar o ordenado em bicicletas desdobráveis ou de corrida ao invés de jantares com o amor da sua vida (sei lá porquê, começo a duvidar desta parte), incapaz de olhar para os quadris de uma rapariga jeitosa (eu) mas prontamente babando-se ao primeiro vislumbre de uma cremalheira de cinquenta e três polegadas e não menos de dez mudanças, pronto para galgar o mundo num par de pedais mas incapaz de fazer uma cama, varrer o chão ou trazer as compras para casa.

Para o meu marido a vida resume-se num quadro e num selim e eu, parva, porque gosto dele mesmo assim, mesmo assim bruto, estou lá sempre para o apoiar quando vai para a estrada ou para a montanha, em "bêtêtê" ou "bê-ême-xis", em monociclo ou triciclo, a caminho do trabalho ou a caminho de casa, e talvez seja isto o amor, duas pessoas que partilham uma paixão em comum: normalmente é um filho, a mim saiu-me uma bicicleta. E eu já nem peço tanto, porque filhos não temos e eu já me contentava só com ele, mas não, porque a minha vida é mesmo isto, bombas e câmaras-de-ar, travões no lugar dos corações e pneus onde antes só havia eu.

Mas eu não me importo, porque o meu amor é mesmo assim, um ciclista, e enquanto uma corrida vai e uma corrida vem tenho-o todo e como deve ser só para mim (depois de tomar um banho, entenda-se), tal como era, tal como sempre foi, quando um dia nos conhecemos e não havia nem sinais de borracha nem toques de campainhas, mas apenas os sinos da igreja e a promessa de quem não se esqueceu. Portanto, uma gravata, pelo menos uma vez por semana, faz-me lá esse favor e eu sei que és capaz. Um homenzinho, é quem tu és, e não vais ganhar mais barriga por causa disso, até porque essa já veio, e veio para ficar.

Faz-me um nó e veste uma camisa a condizer, põe-me umas calças e já está: são sete da manhã de sexta-feira e estamos a caminho do emprego. A bicicleta ainda te faz alguma coisa, porque as outras mulheres, invejosas, mordem-se na rua, e eu, orgulhosa, caminho contigo a meu lado.

No domingo está descansado, hás-de ir dar a tua volta, mas até lá, meu amor, até lá é fim-de-semana, com ou sem hífen pouco me interessa, porque até lá garanto como nem sequer vais querer saber, ou perceber, a bicicleta nova que te pus à porta. Palavra de mulher.

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