Infâncias pobres e pobreza em Portugal como escolha política
Nunca houve tantos recursos no mundo. Como permitimos que tantas crianças continuem a crescer na pobreza?
Se a miséria dos pobres não é causada pela natureza mas pelas instituições grande é o nosso pecado. (Charles Darwin in A viagem do Beagle, 1839)
O aumento da pobreza e das desigualdades em Portugal, documentado em relatórios recentes, deve fazer-nos estremecer. As assimetrias profundas em que crescem as crianças e jovens, uma parte significativa delas sem acesso a condições consideradas básicas, colocam em causa os direitos humanos e o desenvolvimento, tanto pessoal como social.
Não nos podemos conformar com o argumento repetido diariamente nos noticiários da inexistência de recursos, quando, nos mesmos noticiários, poucos segundos volvidos, se documenta a circulação de enormes volumes de capital entre instituições europeias, administrações nacionais, grandes empresas, off-shores. Nunca houve tantos recursos no mundo. Como permitimos que tantas crianças continuem a crescer na pobreza?
Estas desigualdades de distribuição de rendimento, em Portugal como em outros países desenvolvidos, constituem um dos problemas centrais no mundo atual e o pano de fundo onde a pobreza e a pobreza infantil prosperam. Mais, elas estão a aumentar desde os anos 70, sendo um problema com evidentes impactos sociais e políticos. Existem estudos (como os de Richard Wilkinson, Univ. de Nottingham) que mostram que quanto maior o fosso entre os ricos e os outros, num dado país, maiores são os problemas sociais enfrentados.
As grandes desigualdades na distribuição de rendimento constituem ameaças à democracia, dado que tornam os mais pobres vulneráveis à influência dos mais ricos e os mais ricos capazes de influenciar as decisões políticas em seu favor por via da sua riqueza. Não se trata apenas de uma questão de cidadania; existe um crescente número de estudos e autores (cf. Krugman e Stiglitz ou ainda Piketty) que argumentam que sociedades mais igualitárias são mais capazes de criar riqueza. Acrescente-se que outros estudos (cf. James Gailbraith, Univ. do Texas) mostram como o aumento das desigualdades nos anos 20 e nos anos 90 preparou o caminho para as crises económicas de 1928 e de 2008. Neste sentido, a afirmação de que as grandes e crescentes desigualdades de distribuição de rendimento são um problema político e não meramente económico, exigindo de nós soluções políticas, tem vindo a reunir um crescente consenso entre os críticos da ideologia neoliberal do mercado-rei mesmo no seio de organizações a ela ligadas como o Banco Mundial, o FMI ou a OCDE.
Em Portugal, as desigualdades de distribuição de rendimento são das maiores da OCDE e da União Europeia e os últimos dados disponíveis (2013) apontam para o seu crescimento. Em 2013, uma pessoa pertencendo aos 10% mais ricos dos portugueses tinha em média um rendimento 11,1 vezes maior que uma pessoa pertencendo aos 10% mais pobres. Associada a esta elevada (e crescente) desigualdade de distribuição de rendimento, existe em Portugal um grande número de pessoas em situação de pobreza. O seu valor caiu nos primeiros anos deste século mas, segundo o INE, o número de 2013 (19,5%) é quase idêntico ao de 2003 (20,4%). Boa parte destes pobres são crianças e jovens com menos de 18 anos, a sua taxa de pobreza é maior que a média nacional (25,6% versus 19,5%) e é entre as crianças e jovens que esta taxa mais tem aumentado.
Um número crescente de estudos (cf. Noble et al, Nature Neuroscience, Março 2015) vem mostrando que uma infância e juventude na pobreza têm, com frequência, consequências ao nível da saúde dos indivíduos de forma duradoura, dado que pode expô-los a níveis tóxicos e prolongados no tempo de stress e, por via disso, reduzir a habilidade de se movimentarem na sociedade e de adquirirem competências sociais e escolares. Por outro lado, a forma como as políticas educativas têm sido desenhadas envolve, em boa parte, a exclusão dos mais pobres do sistema de ensino e, em sequência, a sua relegação para as posições menos desejáveis do mercado de trabalho, reproduzindo-se assim a pobreza ao longo da vida e entre gerações.
A este propósito, será importante lembrar como as políticas educativas recentes, alicerçadas numa retórica da “livre escolha”, do “rigor” e da “competição”, incluindo cortes substanciais em áreas fundamentais para a inclusão e a redução das desigualdades, têm conduzido a um aumento das reprovações e da segregação escolar, afetando, sobretudo, as crianças e jovens dos meios mais desfavorecidos.
Ensaiou-se uma política de financiamento público do ensino privado que se pretende aprofundar, se as condições económicas melhorarem, num momento em que já existem evidências dos resultados negativos, em termos de reforço das desigualdades, nos poucos países que lançaram políticas semelhantes, a nível mundial, como o Chile ou a Suécia.
Se na Constituição e na Lei de Bases do Sistema Educativo portuguesas é reconhecido o acesso universal à educação e oportunidades iguais para todos, a pobreza infantil vem impedir que se concretizem os valores subjacentes àqueles normativos levando a que, em boa parte, não passem de retórica vazia. Não é por acaso que os indicadores de escolaridade e de escolarização da população portuguesa (crianças e adultos) são dos piores da União Europeia e da OCDE.
Neste contexto, qual tem sido o contributo do governo para contrariar este estado de coisas? As medidas de combate à crise que temos vivido mais não fazem do que ampliar os seus efeitos. O agravamento dos impostos indiretos e o corte nas prestações sociais são exemplos significativos de opções políticas que impactam negativamente nestas crianças e jovens.
Fortes desigualdades de distribuição de rendimento estão associadas a problemas sociais variados, de entre os quais destacamos o problema da pobreza infantil por esta representar um dano sério na capacidade de os indivíduos agirem como cidadãs e cidadãos ativos e críticos e, por consequência, no desenvolvimento do país. Sendo as fortes desigualdades de distribuição de rendimento que se verificam em Portugal o resultado de opções políticas, a pobreza infantil e o seu aumento são consequências de políticas centradas na extração do rendimento dos indivíduos por via do estado em benefício de determinadas elites nacionais e seus aliados. Nos últimos anos, o pretexto do combate à crise mais não tem servido do que para ampliar o processo extrativo que se verifica na sociedade portuguesa, por muito que isso signifique, literalmente, hipotecar o futuro negligenciando as crianças. Neste jogo há vencedores e vencidos e as crianças em situação de pobreza são vencidos ainda antes de entrarem verdadeiramente no jogo social.
Membros do Núcleo do Manifesto para um Mundo Melhor (Manifesto Internacional de Cientistas Sociais)