Curdos ganharam uma voz no palco da política

Os curdos já tinham um farol no Curdistão iraquiano e lideram a luta contra o Estado Islâmico na Síria e no Iraque. Agora, têm um partido com uma grande representação na política turca.

Foto
Apoiante do HDP festeja em Istambul com uma bandeira onde se vê o rosto de Öcalan Ozan Kose/AFP

O resultado do Partido Democrático do Povo (HDP), que entrou no Parlamento turco com 80 deputados, foi festejado com fogo-de-artifício, buzinadelas e disparos para o ar no Curdistão turco, mas também deixou em ambiente de festa muitos curdos iraquianos e, principalmente, sírios.

O HDP conseguiu esta proeza mais por ser um partido que ultrapassa a questão identitária da etnia e conquista apoios entre turcos que não se revêem nos restantes partidos da Turquia, onde os curdos são 20% da população, mas a voz que ganhou na política turca é uma tremenda vitória para os curdos.

Isto é ainda mais relevante por acontecer num momento em que muitos se interrogam se não terá chegado a altura para os curdos que querem um país apostarem nisso como nunca. Até há poucos anos, o único farol de que os curdos dispunham chamava-se Curdistão iraquiano. É a região semiautónoma que se governa como um Estado de facto no Norte do Iraque desde 1991 e que prosperou enquanto o Iraque definhou desde o derrube de Saddam Hussein, em 2003.

Com a revolução síria, os curdos do país de Bashar al-Assad aproveitaram a guerra e o vazio de poder para se organizarem e hoje administram três regiões que chegam à fronteira turca, a Norte, e se estendem até ao Curdistão iraquiano, a Leste. Instalaram governos provisórios e aprovaram uma nova Constituição, tudo isso enquanto defendem os habitantes dos jihadistas do autodesignado Estado Islâmico.

O crescimento do grupo de jihadistas, que há um ano tomava Mossul, a segunda maior cidade do Iraque, e há três semanas conquistou a histórica cidade de Palmira, na estrada que liga o deserto sírio a Damasco, deu mais armas aos curdos. Armas, literalmente, e apoio internacional, muito.

Vistas num e noutro país como as únicas capazes de combater os jihadistas internacionais, as milícias curdas têm recebido treino e financiamento dos Estados Unidos e de países europeus. Mesmo quando ao lado dos curdos da Síria se sabe que combatem membros do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão), que travou uma guerra civil com Ancara responsável por 40 mil mortos e que Washington mantém na sua lista de organizações terroristas.

Kobane e Erdogan
Kobane, a cidade curda síria junto à fronteira com a Turquia que os radicais chegaram a dar como conquistada mas que os curdos defenderam e recuperaram, tornou-se num dos símbolos de uma luta que desafia antigas alianças e velhas convenções. Ancara começou por recusar deixar passar os combatentes curdos do seu país para irem em auxílio dos sírios. Recep Tayyip Erdogan, então primeiro-ministro, disse mesmo que Kobane ia cair para as mãos dos terroristas “mas que a culpa não é da Turquia”.

Muitos curdos, que continuam a enfrentar o Estado Islâmico (pelo menos mil combatentes curdos iraquianos, peshmergas, já morreram a fazê-lo) nunca lhe perdoaram.

Entretanto, o Governo do AKP já tinha iniciado negociações com o chefe do PKK, Abdullah Öcalan, dentro da sua agenda de “democratização”. Houve melhorias, o curdo deixou de ser proibido nas escolas ou nas televisões e bastou que as duas partes se sentassem à mesa para se notar um impacto económico e social, tanto nas vidas dos curdos turcos como no resto do país. Mas as tensões persistem e a aproximação às legislativas de domingo exacerbou-as.

Na sexta-feira, num comício do HDP em Dyarbarkir, capital da região curda da Turquia, um atentado bombista fez três mortos e mais de uma centena de feridos. A terceira vítima, um adolescente de 17 anos, não sobreviveu aos ferimentos e morreu já esta segunda-feira. Os curdos culparam o AKP e Erdogan. O primeiro-ministro, Ahmed Davutoglu, que sucedeu a Erdogan quando este foi eleito Presidente, em Agosto do ano passado, anunciou que a polícia deteve um suspeito enquanto os turcos votavam.

No comício alvo do ataque estava Selahattin Demirtas, co-presidente do HDP e o seu rosto mais conhecido. Demirtas, um advogado de 42 anos, ousou candidatar-se contra Erdogan nas presidenciais e conseguiu quase 10% dos votos. Foi esse resultado que o encorajou a levar o HDP a concorrer às legislativas como partido – só entram no Parlamento as formações que ultrapassem a fasquia dos 10%.

Assim, em vez dos 30 deputados que os curdos conseguiram eleger como independentes em 2011, o partido alcançou uma bancada parlamentar de 80 lugares na Grande Assembleia Nacional.

O fim do medo
É pouco provável que os resultados destas eleições permitam a algum partido formar Governo, mas os curdos perderam o medo de se apresentar a votos e mostraram que há muitos turcos que também não os temem. Ganham peso, uma voz e um rosto.

Alguns analistas, como Cengiz Candar, especialista no conflito curdo, antecipava que se o HDP ficasse fora da Assembleia Nacional os curdos iam pelo menos mostrar o seu descontentamento em protestos. “Não acredito que a guerra recomece. Mas se os curdos se convencerem que não podem ser integrados na política turca, então podem começar a fazer planos diferentes para o seu futuro”, afirmava Candar antes das eleições.

A possibilidade, entretanto confirmada, de os 10% do HDP significarem a perda de maioria absoluta por parte do AKP também alimentaram receios de fraude eleitoral. O movimento Oy ve Ötesi (Voto e mais além), que reuniu e formou 70 mil voluntários para observarem as eleições, enviou muitos monitores para as zonas de maior população curda para evitar tentativas de roubo de voto por parte de membros do AKP.

Demirtas, que tentou juntar-se ao PKK (mas foi recusado, ao contrário de um dos seis irmãos, que ainda é combatente) antes de decidir estudar Direito e trabalhar em direitos humanos em Dyarbarkir, sabe que tem uma grande e dupla responsabilidade. “É importante que um político curdo tenha chegado a um ponto em que fala para uma sociedade mais abrangente. Conseguimos tornar-nos num partido que ultrapassa a identidade étnica”, disse, durante a campanha.

A vitória da esquerda
“Nós, o partido dos oprimidos da Turquia que querem justiça, paz e liberdade, alcançámos uma grande vitória”, festejou, ao conhecer os resultados. “É a vitória dos trabalhadores, dos desempregos, dos aldeões, dos agricultores. É a vitória da esquerda”, insistiu.

É a vitória das minorias culturais, dos homossexuais aos quais Demirtas abriu a porta que todos os partidos fecham, das mulheres, no único partido com 50% de candidatas – por causa dos resultados do HDP, o número de deputadas na Assembleia Nacional é o maior de sempre, 96. Uma delas chama-se Dilek Öcalan e é sobrinha do líder histórico dos curdos, condenado a prisão perpétua.

Em campanha, Demirtas também lembrou que foi na adolescência que tomou consciência do que era ser curdo, quando, aos 15 anos, foi ao funeral de um político curdo morto pelo Exército. O funeral foi atacado por homens armados e oito pessoas morreram. 

“Muitos dos meus amigos foram mortos em confrontos e na prisão”, disse. “O que empurrava a juventude para a militância armada eram as condições de vida e essas condições ainda não mudaram assim tanto. Agora, queremos trazer a juventude para a política”, afirma Demirtas, garantindo que o faz em nome da paz com Ancara. “Estamos prontos para cumprir as nossas responsabilidades e reiniciar as conversações de paz no ponto em elas foram abandonadas, em ruínas.”

Estes são os planos dos políticos curdos da Turquia. Os dos outros curdos, em países em guerra, estão por determinar. Domingo à noite, todos festejaram.

Sugerir correcção
Comentar