Christopher Marinello quer resolver o caso Crivelli
É tido como o Sherlock Holmes do mundo das artes. E sabe onde está o Crivelli português, mas não conta. Christopher Marinello tem uma vida cheia de casos que davam filmes e convida-nos a conhecê-los por dentro. Há um Gauguin abandonado num comboio, dois Matisse espoliados pelo III Reich, esculturas desaparecidas durante o Blitz, frescos roubados de Pompeia. A lista não acaba. Uma montanha-russa de sucessos a rodar na palma da mão do homem com quem o Governo português se recusa a negociar
São 8h25 da última quinta-feira de Maio e o sol brilha em Londres. Estamos entre Notting Hill e High Street Kensington — quer dizer que o palácio que desde o século XVII serve de residência oficial à família real britânica fica aqui ao lado. Nesta zona, a compra de um pequeno apartamento com dois quartos e uma sala representa um investimento bem acima do milhão de libras. E é aqui, numa calma rua de casas vitorianas, que Christopher Marinello vive com a família.
Aos 53 anos, Marinello é tido como um Sherlock Holmes do mundo das artes. Nascido em Brooklyn, Nova Iorque, começou por ser um “mau artista”. Acabou por estudar Direito e por se tornar um dos maiores especialistas mundiais na localização, recuperação e restituição de obras de arte desaparecidas.
Entre roubos contemporâneos e espoliações da II Guerra Mundial, nas últimas duas décadas terá recuperado para os seus clientes peças no valor de 350 milhões de dólares (305 milhões de euros). Cada caso, uma aventura. Quase todos dignos de um livro. Ou de um filme. Mesmo assim, acabará por dizer-nos que o polémico caso do Crivelli português é “provavelmente o mais estranho” que já teve em mãos.
Será mais tarde, ao longo do dia. Agora são 8h25 e, apesar de ainda faltarem cinco minutos para as 8h30 combinadas, Jerome Hasler já está à porta, impecável no seu fato cinzento a acenar-nos ao longe.
Jerome é o director de comunicação da Art Recovery International. Tem só 24 anos. Mas ninguém na empresa de Marinello parece passar dos 30. Mesmo Alice Farren-Bradley, a braço-direito que trabalhou também na Art Loss Register, a empresa nova-iorquina onde, por sete anos, Marinello foi conselheiro geral. Todos muito jovens. Mas “todos extremamente inteligentes e honestos”, dir-nos-á o advogado.
Para ele, a questão ética é fundamental. Foi o ponto de cisão com a Art Loss, que deixou no final de 2013 fazendo de imediato saber que criaria uma concorrente. “Eu e a Alice eramos extremamente bem-sucedidos a recuperar obras simplesmente usando a cabeça, o director não tanto, começou a pagar a criminosos na Sérvia e outros países. Eu não pago a criminosos.”
Marinello sorri muito e ri com frequência e vontade. Mas não no momento em que diz estas palavras. Por segundos, o azul dos seus olhos torna-se ainda mais gelado e inescrutável do que é hábito. E por norma já são dois icebergues, apesar dos gestos descontraídos e bem-dispostos do resto do corpo. Por exemplo, como quando se recosta provocadoramente numa das poltronas da sua sala de estar para dizer: “Já sabe que não vou revelar nomes, mas se quiser imaginar o tipo de pessoas que hoje têm o Crivelli tem de pensar em gente tão conhecida como Michael Jackson ou Justin Bieber.”
Começou assim também a primeira conversa que tivemos com este advogado. Corriam os primeiros dias de Maio, foi por telefone e o tom foi de aviso à navegação: “Um bom jornalista perguntará 14 vezes onde está a pintura. Não vou responder.”
Onde está e com quem — sem essa informação, o Governo português diz que não negociará com Marinello. Já o advogado ri e sublinha: por muito que toda a gente esperneie, manterá a sua palavra sobre esse aspecto da vida da importante tábua renascentista intitulada Virgem com o Menino e Santos que o mestre italiano Carlo Crivelli assinou e datou em 1487 e que o conhecido empresário Miguel Pais do Amaral comprou em 2007.
Até esse ano não se sabia exactamente como nem quando a pintura chegara a Portugal. Mas estava cá há décadas. E protegida por lei, impedida de deixar o país desde 1970. Agora não se sabe exactamente como nem quando acabou por sair, supostamente de forma legal.
Terá sido em 2012. No ano seguinte foi vista em Paris na montra do antiquário Jean-François Heim. Daí terá seguido para Londres, onde obteve uma licença de exportação para os Estados Unidos. Todo um percurso apurado pelo PÚBLICO que Marinello não comenta e ao qual não acrescenta muito de novo. Apenas isto: “A pintura está com uma família que a tem na parede e está a ser apreciada. Essas pessoas não estão interessadas em vender. Mas também não querem problemas. Querem-na apenas na sua colecção, que talvez um dia, quem sabe, venha a ser pública. Não queremos esta nuvem nem este limbo lançado pelas autoridades portuguesas sobre a titularidade da peça.”
As palavras de Marinello não são especialmente misteriosas. Basta saber um pouco sobre o polémico caso que acabaria por se tornar uma espécie de “Crivelligate” para o ex-secretário de Estado da Cultura, Francisco José Viegas, e que é hoje uma bomba-relógio nas mãos do seu sucessor, Jorge Barreto Xavier, em funções no executivo de Pedro Passos Coelho. Mas vale a pena retroceder por instantes. Por exemplo, a 2 de Junho de 1968. Terá sido por volta dessa data que a “Virgem portuguesa” deu entrada para restauro no Instituto José de Figueiredo vinda de São Miguel, onde estivera por largas décadas na posse do político e escritor Caetano Andrade de Albuquerque Bettencourt.
Filho de um fidalgo açoriano exilado em Itália, Caetano Andrade de Albuquerque Bettencourt nasceu em Roma em 1845 e morreria em Ponta Delgada em 1900. Há registo da pintura num antiquário da capital italiana em 1830. Assim, é muito provável que tenha sido ele a trazê-la para Portugal, possivelmente como legado do pai. Em 1968 foram já os seus herdeiros a contactar o instituto. Onde a peça se tornou caso de estudo devido à complexidade do processo necessário para reverter anos de más condições de conservação, alguns passados num sótão com infiltrações e humidade.
O volumoso “dossier” com a informação técnica então recolhida foi guardado até hoje. Explica detalhadamente como a fina película de tinta que compõe a pintura foi levantada da madeira original, sendo depois aplicada sobre uma nova base. O processo — moroso, arriscado e extremamente experimental — foi até tema de uma conferência na prestigiada Universidade de Oxford. E custou a então elevada quantia de 45 mil escudos.
A 20 de Janeiro de 1969, os proprietários pagaram 22.500 escudos. Esse comprovativo existe. E nenhum outro. Em 2013, várias fontes disseram ao PÚBLICO que o remanescente foi coberto pelo Estado num acordo que previa já a futura inventariação da obra. O que aconteceu a 29 de Julho de 1970, dia em que foi publicado o despacho do subsecretário de Estado da Administração Escolar que diz que o Crivelli “não pode ser alienado ou enviado para fora do país”.
Segundo a lei portuguesa, esse despacho seria ainda hoje válido. Ou seja, Pais do Amaral estaria até hoje impedido de vender a sua pintura fora do país. Estaria até interdito de a transportar para o estrangeiro ainda que temporariamente. Eram as condições em que usufruíam da obra os herdeiros de Albuquerque Bettencourt, que durante anos tentaram vê-la desclassificada sem sucesso. E o preço a que a venderam a Pais do Amaral teve isso em conta. Já o empresário conseguiu o problema resolvido em quatro meses. Por decisão superior de Viegas.
É raro uma peça ser desclassificada. Ainda mais quando é vista como um tesouro nacional. E na sua tomada de decisão Viegas ignorou vários pareceres especializados que diziam isso mesmo. Um processo de contornos pouco claros e mantido em segredo até o PÚBLICO o revelar em Junho de 2013. Mas nessa altura Pais do Amaral tinha já vendido a peça para Paris, de onde lhe chegara uma oferta de cinco milhões.
Sobre todos estes passos Marinello nada diz. Mas Alice, a sua directora de reivindicações e recuperações, é directa: “Nós não sabemos o que aconteceu, se aconteceu correctamente, se se saltaram ou não passos. Claramente, o Governo [português] tem qualquer coisa para resolver em relação à sua decisão. É uma questão do próprio Governo ou do país. Para nós, o que interessa é que essa decisão foi tomada.”
Alice fez um percurso semelhante ao de Marinello: formou-se em História e Arqueologia, depois estudou Direito; é especialista em questões legais e éticas do mercado da arte, nomeadamente crimes patrimoniais. E vê com perplexidade as movimentações e faltas de resposta do Governo português desde que Barreto Xavier anunciou na Assembleia da República que decidira revogar a autorização de venda concedida pelo seu antecessor.
Foi a 2 de Julho de 2013. A 6 de Dezembro desse ano a então directora-geral do Património Cultural, Isabel Cordeiro, fez chegar a uma transportadora inglesa uma carta em que anunciava que a obra estava ainda protegida por lei. Foi essa carta que fez Marinello entrar em cena. E são os seus conteúdos que o advogado quer ver anulados pelas autoridades nacionais. Porque apesar de não lhes reconhecer validade legal entende constituírem “uma nuvem prejudicial”, que “mancha a reputação da peça”.
Na carta, Isabel Cordeiro fazia saber da intenção nacional de reaver a peça e explicava que o Governo português recorreria, se necessário, a mecanismos legais para garantir a protecção da pintura. Até hoje isso não aconteceu. Mas a empresa que recebeu o documento transportara e armazenara de facto a “Virgem portuguesa” para os actuais proprietários. Ao saberem da carta, estes contactaram os antiquários a quem tinham comprado a obra, deixando-lhes o problema em mãos. E foram os antiquários que contactaram Marinello.
É quase sempre assim que Marinello entra em cena: alguém dá por si com um problema e pede-lhe ajuda. O que vai variando é quem pede ajuda e porquê. Pode ser um antiquário, uma leiloeira, um coleccionador, um museu ou uma galeria. Também pode ser um alegado esloveno com nome de personagem de BD a aparecer via Whatsapp. Foi assim na semana do último Natal.
Marinello passa-nos o seu telemóvel e abre um perfil de Whatsapp. Ficamos face à fotografia de um homem de pele morena e cabelo escuro. “Chama-se Darko”, diz Marinello. Depois dá uma gargalhada. “Darko… Não parece mesmo inventado?”
Darko dizia conhecer o paradeiro de uma pintura roubada. Queria a recompensa de 700 mil dólares (622 mil euros) anunciada pela seguradora. Marinello prontificou-se a mediar o caso. “Ajudei a montar a operação em que ele falou com a seguradora. Ou quem ele achava ser um agente da seguradora mas era o polícia que ajudou a prender toda a gente no caso”, conta Marinello.
O roubo deu-se em 2008 na casa de um casal de octogenários de Encino, Califórnia, e foi um dos maiores no género na área metropolitana de Los Angeles. Com toda a casa fechada, numa manhã de Agosto, enquanto o caseiro foi às compras, 12 pinturas de nomes como Chagall, Rivera, Nolde e Soutine desapareceram do hall de entrada e salas adjacentes.
Foram com molduras e tudo, num roubo de valor estimado em 10 milhões de dólares (8,7 milhões de euros). Os donos, um casal de investidores em imobiliário, estavam no quarto e não deram por nada. Seis anos volvidos, a prisão de Darko foi, na verdade, a prisão de um homem de 45 anos de origem hispânica chamado Raul Espinoza e também conhecido como Jorge Lara. Através dele a polícia recuperou nove das 12 obras.
“Não é claro o que levou os investigadores a Darko”, lê Marinello em voz alta numa notícia do Los Angeles Times. Segue-se um breve silêncio. Após o qual o advogado sobe dramaticamente o tom para uns segundos de tragicomédia: “Não é claro?! Fui eu! Eu conduzi a polícia a Darko!”
Acontece com regularidade a Art Recovery não ser nomeada. No seu escritório de paredes de vidro, Marinello mostra-nos alguns dos presentes que lhe são enviados pelas forças policiais com as quais vai colaborando. Dependurado num armário tem um galhardete dos Carabinieri italianos. Chegou a Londres na sequência da recuperação de uma série de frescos roubados em Pompeia em 1957 e que até ao princípio deste ano faziam parte do espólio de um coleccionador norte-americano.
Com a morte do coleccionador, um dos frescos ia a leilão pela Christie’s. Mas deu alerta na base de dados de Marinello, a ArtClaim Database, um dos trunfos maiores da Art Recovery.
Foi via ArtClaim que se revelou e resolveu, por exemplo, o caso de uma tábua que poderá vir a ser atribuída a Duccio, um dos mais importantes pintores italianos dos séculos XIII e XIV, rival de Giotto. A peça ia a leilão pela Sotheby’s em Janeiro do ano passado, e deu sinal: estava desaparecida desde 1986.
Comprada por 20 investidores na Londres de 1977, estivera sempre fechada no cofre de um banco suíço. Até um dos donos a roubar. Era a viúva deste quem a levava à praça. E o acordo entre partes mediado por Marinello pôs fim a décadas de litigação entre titulares radicados em cinco países: Reino Unido, Mónaco, Suíça, França e Estados Unidos. Agora, a peça vai ser legitimamente vendida. E se em 2014 a sua base de licitação era de 600 mil dólares (503 mil euros), agora há especialistas a defender a autoria como sendo, de facto, de Duccio. A confirmar-se, o valor explodirá: há dez anos o Museu Metropolitano de Nova Iorque comprou aquele que se acreditava então ser o último Duccio na posse de privados. Pagou 45 milhões.
“Às vezes acho que criámos um monstro”, diz-nos Ariane Moser a rir enquanto abre a base de dados no seu computador. Tal como Alice, Ariane também trabalhou na Art Loss com Marinello. Estudou História da Arte, Sinologia e Mercado da Arte. É especialista em pesquisa de proveniências. E esteve na linha da frente da criação da ArtClaim, que começou há pouco mais de um ano numa folha Excel e agora reúne informação sobre 60 mil obras de arte.
Há de tudo: perdas, roubos, saques, exportações ilegais, alertas para falsificações... “Por exemplo, se te casares e comprares uma pintura a meias com o teu cônjuge, podes registá-la aqui. Se fores arqueólogo e souberes de escavações ilegais, também.”
A quantidade de entradas é uma mais-valia. A quantidade de campos pesquisáveis é outra. Pode-se pesquisar por título e autor, claro. Mas esses dois dados podem ser facilmente alterados ao longo da vida de uma obra de arte. Por isso, a base de dados da Art Recovery tem mais de 500 campos pesquisáveis. Nomeadamente apoiando-se em detalhadas descrições de cada peça.
Por exemplo, pesquisar “glicínia” levará a qualquer obra registada que mostre ou esteja de alguma forma ligada a uma glicínia. Levará também a qualquer pessoa registada que viva numa Alameda das Glicínias e a qualquer mulher que se chame Glicínia. “É um depósito de informação. Tudo entra. Registo de compra, notícias, relatórios técnicos… A ideia é abrir cada vez mais possibilidades para encontrar tudo”, explica Ariane. Que neste ponto sorri e diz: “Mas há melhor.”
É que uma descrição é limitada e está sujeita à subjectividade tanto de quem regista como de quem pesquisa. “Uma pessoa pode achar que uma pintura retrata uma mulher quando, na verdade, pode ser um homem com roupa de época. Onde uma pessoa vê um ‘rio’, outra vê um ‘fluxo de água’ e outra apenas ‘água’.” Para evitar qualquer hipótese de mal-entendido ou perda de informação, todos os sinónimos possíveis são incluídos. Mas a base de dados inclui também um sofisticado sistema de identificação de imagens.
Ariane mostra-nos uma folha com um borrão de luz e sombras a preto e branco. A imagem é tão má que podia ser uma cópia de uma cópia enviada por fax. Infelizmente, o tipo de imagem que às vezes os investigadores têm como pista. “Consegue identificar?”, pergunta Ariane. A resposta é negativa. Já o sistema informático da Art Recovery encontra correspondência em segundos: no computador aparece o conhecido Cristo na Tempestade no Mar da Galileia, a única paisagem marítima assinada por Rembrandt, datada de 1633 e que em 1990 foi roubada do Museu Isabella Stewart Gardner, em Boston.
Esse Rembrandt, um de dois num caso de 300 milhões de dólares (264 milhões de euros), foi cortado da moldura por ladrões disfarçados de polícias. Entraram no museu, algemaram e amordaçaram os seguranças e levaram 13 obras assinadas por Vermeer, Manet, Degas. Até hoje, nenhuma das peças voltou a aparecer. Ao contrário dos frescos de Pompeia.
No caso dos frescos, a Christie’s recorreu à base de dados da Art Recovery para verificar se algum dos objectos que ia levar à praça tinha problemas. É um dos serviços oferecidos pela empresa de Marinello. E é pago. Já o envolvimento posterior do advogado, que montou todo um esquema para a peça voltar a Itália, foi pro bono.
Para a Art Recovery, houve também reconhecimento público zero — a polícia italiana recebeu os louros sem mencionar a empresa. “Recebi um calendário e uma nota de agradecimento de um carabinieri. E a polícia romena mandou-me um boné. Uso-o sempre que preciso”, diz o advogado antes de voltar a lançar uma gargalhada.
Não parece tema de comédia para quem faz vida no sector. Mas Marinello desvaloriza. “Tudo bem. É suposto os advogados fazerem trabalho pro bono todos os anos. E nós percebemos que muitos polícias se querem tornar investigadores — deixamo-los ficar com os créditos.”
Mas claro que nem sempre é assim. Parte significativa dos casos da Art Recovery assegura a Marinello um nível de visibilidade e reconhecimento internacional que a generalidade dos profissionais do sector não chega a ter uma única vez ao longo da vida. Basta pensar no épico histórico por detrás do “caso Gurlitt” — o caso das 1400 obras de arte encontradas em 2012 no hoje famoso apartamento de Munique de Cornelius Gurlitt.
Cornelius, que morreu no ano passado aos 81 anos, era filho e herdeiro do historiador e marchand Hildebrandt Gurlitt, um dos quatro membros da Comissão para a Exploração de Arte Degenerada do III Reich. No período nazi, negociou e guardou para si milhões em obras apreendidas. Por entre o espólio que deixou ao filho, havia telas de Picasso, Renoir, Monet, Delacroix, Courbet, Dürer, Canaletto, Klee, Chagall, Dix, Nolde...
Ao ser descoberto, Cornelius, que viveu 40 anos sozinho no seu apartamento, disse à imprensa alemã que estas obras eram os seus únicos amigos. Um círculo de afectos parcialmente escondido atrás de uma parede feita de latas de conserva. E do qual fazia parte o Matisse de 1921 que Marinello conseguiu fazer voltar aos herdeiros Rosenberg — a família do galerista e coleccionador parisiense Paul Rosenberg.
Com França ocupada, em 1941, Paul Rosenberg, então um dos mais importantes negociantes de arte moderna do mundo, foi espoliado e viu-se obrigado a fugir para os Estados Unidos. Perdeu tudo, incluindo a sua colecção: 162 obras que os herdeiros estão até hoje a tentar recuperar. Com Marinello, já conseguiram duas telas de volta. Femme assise dans un fauteuil, que o advogado foi pessoalmente buscar à Alemanha há duas semanas, foi a primeiríssima restituição de todo o “caso Gurlitt”. Antes, houve outro Matisse: Profil bleu devant la cheminée, datado de 1937.
Ao contrário de Femme assise…, Profil bleu… mudou várias vezes de mãos e chegou à Noruega em 1961. Entrou então para a colecção do Centro de Artes Henie Onstad, fundado pelo magnata Niels Onstad e a sua mulher Sonja Henie.
Durante anos, a família Rosenberg tinha tentado encontrar esta obra avaliada em 20 milhões de dólares (17,6 milhões de euros). Marinello conseguiu a localização e restituição também no ano passado.
É algures a meio desta história que o advogado nos volta a passar o seu telemóvel. Desta vez para mostrar Paul Rosenberg numa fotografia carimbada por cima com o visto de entrada nos Estados Unidos. Notamos o rosto escavado e o olhar triste e baço do coleccionador. “Pois claro”, exclama Marinello, “tinha acabado de perder tudo!”
Para Marinello, os casos de saques nazis são especialmente emocionais: “Têm uma componente moral e ética muito forte.” Remetem para uma ideia que lhe é especialmente cara e que surgirá por diversas vezes ao longo das suas narrativas: “A coisa certa a fazer.”
Spike Lee tem um filme com esse título e essa é sempre a questão de Marinello: “Qual é a coisa certa a fazer? No caso do Matisse da Noruega, a pergunta é: o museu pesquisou a proveniência daquela pintura? Bom, não fez muito”, diz o advogado.
Para ele, investigar proveniências é uma responsabilidade de toda a gente a operar no mercado da arte. “Quando se compra um carro usado, vai-se a um mecânico, verifica-se o motor, os travões, a suspensão. Quando se compra uma casa, faz-se uma vistoria que custa milhares de euros e ninguém tem problemas com isso. Porque é que se hão-de gastar milhares ou milhões numa obra de arte sem verificar nada?”
Parte da missão pedagógica assumida pela Art Recovery é explicar o que pode correr mal: “Uma casa pode afundar-se no terreno, um carro pode parar para sempre no dia seguinte, uma obra de arte pode ser confiscada, levada a tribunal ou pode fazer com que se cruzem comigo no meu dia mais desagradável. Compensa verificar.”
Em 1961, quando o Matisse dos Rosenberg chegou à Noruega, a II Guerra Mundial tinha acabado há apenas 16 anos. Havia inúmeras recomendações internacionais contra a compra de obras que pudessem ter sido roubadas a famílias judias. “Estava toda a gente em alerta”, diz Marinello. Por outro lado, o próprio Matisse morrera havia apenas sete anos — muita gente poderia ter identificado a pintura e explicado ao museu que fora roubada a um amigo do artista. Mas era preciso tentar. Quando a Art Recovery pegou no caso, “não havia indícios de que o museu tivesse feito fosse o que fosse”. Por isso, foi ao museu que Marinello apontou o dedo.
Marinello aponta o dedo com frequência e não tem pejo em admitir que faz parte da sua estratégia. “Normalmente é o que fazemos: apontar dedos. Tentamos encontrar actos ilegais ou errados e usamos esses actos para dizer: ‘Precisa de fazer a coisa certa e resolver isto’.”
O Centro de Artes Henie Onstad decidiu devolver a obra — apesar de ter a lei norueguesa do seu lado, preferiu não ter o nome arrastado pela lama dos tribunais num caso em que mesmo que mantivesse a obra perderia dignidade e prestígio.
“A maioria de nós sabe o que está certo ou errado”, diz o advogado. Mas se apontar dedos não for suficiente, torcem-se uns quantos braços. E, uma vez mais, Marinello não tem quaisquer problemas em o admitir: “Nunca partimos braços, mas não nos importamos de torcer uns quantos”, diz ele.
Foi assim no caso da escultura do século XVII desaparecida da igreja medieval de Saint Olav, que fica junto à Torre de Londres e foi bombardeada durante o Blitz, acabando esventrada por saqueadores. Mais de 70 anos depois, Marinello torceu o braço a um antiquário holandês, outro belga e conseguiu a devolução da peça.
O laxismo repetia-se: ninguém tinha investigado proveniências. E o caso só foi descoberto quando, em 2009, a Saint Olav’s foi informada de que a sua escultura ia a leilão por 70 mil libras (95 mil euros). A leiloeira retirou a peça de catálogo, mas o proprietário recusou-se a entregá-la à igreja. Alegava tê-la comprado de boa-fé a um dos mais importantes negociantes belgas de arte sacra: o antiquário Paul de Grande.
Nessa altura, Marinello ainda estava com a Art Loss. E quando chegou à Bélgica para entrevistar De Grande voltou a ouvir a expressão “de boa-fé”. O antiquário alegava ter sido nesse espírito que adquirira a peça a um outro antiquário, um inglês chamado Gray Dench. Só que Gray Dench era na verdade Gray Elcombe, um dealer de drogas condenado e já a cumprir sentença por usar o oco interior de esculturas e tacos de golfe para traficar cocaína. “O que eu fiz foi ir ter com o advogado do antiquário belga e perguntar: ‘Como pode dizer que comprou de boa-fé?’”, recorda Marinello.
É como em jornalismo: “As pessoas nem sempre dizem a verdade ou omitem detalhes importantes.” É preciso investigar, cruzar informação, insistir. E De Grande acabou por confessar que, na verdade, tinha trocado aquela peça por outras a um intermediário holandês. Então, Marinello foi conhecer esse outro comerciante. “Perguntei: trocou este objecto a Paul de Grande? Ele disse que sim e eu disse-lhe para devolver as peças.”
A ideia era um dominó em queda, mas ao contrário — toda a gente a devolver, todas as peças a voltarem a trocar de mãos até a escultura chegar à Igreja de Saint Olav. Infelizmente, o antiquário holandês não se estava a mostrar especialmente cooperativo. A maneira de lhe torcer o braço foi ameaçar com a imprensa: Marinello sabia que havia um jornalista da BBC atrás da história — explicou que teria todo o prazer em dar-lhe a morada da loja.
Ao aceitar falar com o PÚBLICO, é mais ou menos isso que está a fazer em relação ao Governo português? Sim e não, diz Marinello. Sim porque lhe interessa manter o caso visível. Não porque o “dossier Crivelli” é diferente de todos os casos com que lidou até hoje. “No caso do Crivelli, toda a gente fez o que devia. Os marchands tinham as licenças de exportação com a bênção de Portugal a dizer que a peça podia sair do país. Não consigo encontrar culpas em ninguém deste lado”, diz Marinello.
O lado a que se refere são as sucessivas partes que lidaram com a obra após a sua saída de Portugal. Nessa esfera não há dedos a apontar, diz o advogado. “A peça foi comprada a Pais do Amaral de boa-fé e toda a gente a partir daí agiu de boa-fé. Se pudesse, acredite, estaria a torcer um braço para devolver a peça a Portugal. Mas não encontro culpas.”
Marinello recorda que a sua especialidade é “devolver obras a vítimas”: “Vamos imaginar que Portugal era uma vítima — trazíamos a peça de volta. Mas não tenho malfeitores a quem dizer: ‘Tem de devolver’.”
Ainda assim, o advogado diz que, a dada altura, conseguiu convencer os seus clientes a devolver. Havia várias soluções possíveis e, segundo explica, deixou-as todas na mesa quando em Dezembro de 2013 aterrou em Lisboa para se encontrar com as autoridades portuguesas. Foram dois dias: a visita com a qual esperava resolver um caso que, na altura, não lhe parecia especialmente complexo.
Marinello diz ter feito ao Estado português três propostas e sublinha que nenhuma envolvia investimento de dinheiros públicos. “Em teoria, gastar dinheiro numa pintura extremamente cara quando se fazem cortes em educação e saúde parece frívolo. Mas há pessoas em Portugal com fortunas consideráveis”, explica o advogado. A sua primeira hipótese era pôr o Crivelli “imediatamente” em Lisboa, expô-lo num museu nacional por “três, seis meses”. O tempo de reunir mecenas e acumular fundos para reembolsar os proprietários. “Se esses fundos surgissem”, explica Marinello, “a pintura ficava, se não, voltava aos donos. Mas pelo menos havia seis meses em que toda a gente podia vê-la e despedir-se”.
É uma estratégia vulgarmente adoptada no Reino Unido. Portugal tem um historial de a evitar, como aconteceu recentemente no caso da Colecção Miró, que o executivo de Passos Coelho recusou expor antes de vender. Mas Marinello tinha outras duas soluções a propor. Numa os dealers que transaccionaram a obra encontrariam no mercado internacional um trabalho português importante e ofereciam-no a um museu nacional. “Era uma doação”, diz o advogado, “mas ficámos a falar ao vento”. Tal como no caso da última hipótese, que era “uma simples carta do Governo a dizer que retiraria as suas reivindicações” sobre a titularidade da “Virgem portuguesa”. Na opinião de Marinello, “a coisa certa a fazer”.
Numa das discussões sobre a obra na Assembleia da República, um dos deputados da oposição falou numa “birra” do Governo. Marinello diz: “Não é que [as autoridades portuguesas] tenham recusado nada, simplesmente não comentaram. Entraram em silêncio. É como eu dizer: ‘Tenho três soluções para o seu problema, esta, esta e esta.’ E você diz-me: ‘Não quero falar consigo.’ Ou, pior: simplesmente nunca mais diz nada. Esta foi a resposta do Governo português: não quero falar consigo, não quero marcar uma reunião.”
Marinello conta que, em Lisboa, chegou a encontrar-se com Pais do Amaral e o advogado do empresário. “Na verdade, começámos por lhe apontar o dedo a ele. Perguntámos-lhe: ‘Em que é que nos meteu?’ Mas o advogado disse: ‘Nada, vendemos legalmente, fizemos tudo o que tínhamos a fazer, nada errado’.”
A Art Recovery acabou até por pedir ajuda a estes interlocutores. “Tentámos perceber se estávamos a fazer alguma coisa errada [na forma de lidar com Portugal]. O que eles disseram é que não é raro haver ausência de resposta das autoridades.”
Ou seja, de cara contra um muro de silêncio e inacção.
No princípio de Fevereiro do ano passado, Isabel Cordeiro deixou funções sem voltar a prestar declarações sobre o caso e foi substituída por Nuno Vassalo e Silva. E foi então que o contacto com Marinello foi cortado. Segundo o advogado, em 16 meses, as autoridades portuguesas ignoraram pelo menos 18 das suas cartas e emails — uma média de mais de um contacto por mês deixado por responder. Foi nesse ponto, diz Marinello, que o caso se tornou “aborrecido”.
Marinello costuma ser célere e eficaz. Em 2011, quando ainda estava com a Art Loss, bateu todos os recordes ao resolver um caso em 15 dias. Duas semanas entre o momento em que a obra foi roubada até estar de volta à parede do museu.
Foi um caso em Praga. Em pleno dia e em horário de funcionamento do Museu de Artes Decorativas da cidade, alguém cortou da moldura A Onda, uma obra de 1925 do fotógrafo checo Frantisek Drtikol avaliada em meio milhão de euros. No dia a seguir ao roubo, a notícia apareceu nos jornais. E um galerista contactou Marinello de Nova Iorque.
Era um comerciante californiano e estava a negociar a compra da peça a um homem que o tinha contactado um mês antes, muito antes do roubo. “O que é que eu faço?”, perguntava o galerista a Marinello. “Eu disse-lhe que já lhe ligava de volta. Desliguei e telefonei à Interpol, porque era um problema internacional, à Scotland Yard, porque eu estava em Londres, à polícia de Los Angeles, porque é a responsável pela zona da galeria dele, e à polícia de Nova Iorque, porque era lá que ele estava naquele momento.” Só que ninguém conseguia montar uma operação a tempo. Então, Marinello decidiu fazer-se passar por um comprador que exigia primeiro ver a fotografia. E foi assim — com a colaboração do galerista, a peça chegou a Londres. Nesse momento, Marinello ligou à polícia de Praga, que viajou para o Reino Unido com o curador do museu para identificar e confiscar a obra. Sem jurisdição para operar no país, marcaram encontro num pub. Os polícias à paisana, o curador e Marinello, com uma obra de meio milhão debaixo do braço.
Ao 15.º dia, A Onda estava de novo em exposição. E cerca de um ano depois o homem que inicialmente contactara o galerista californiano foi preso. “Foi o mais próximo que alguma vez tivemos de um roubo por encomenda. Eles estavam a tentar vender antes de roubar”, explica Marinello.
Segundo o advogado, os roubos de arte por encomenda são, em geral, matéria de ficção. Há, de facto, obras importantes a circular no mercado negro, onde um Picasso de um milhão pode valer 100 mil euros ou até menos quando trocado por armas ou drogas. Por isso, o que acontece é que certos criminosos acumulam peças sabendo que, um dia, se tiverem problemas, podem usá-las.
Marinello chama-lhes “passe livre para saída da prisão”. Funciona, afirma o advogado. Um tipo é preso e diz: esperem aí, não me acusem ainda, posso ajudar a resolver o caso do Picasso. Com um acordo, ficam dois casos fechados em vez de um. Um criminoso fica com pena mais leve ou sem pena, mas deu algo em troca. É um jogo de equilíbrios, às vezes perverso.
Mas, voltando ao Crivelli… “Ninguém quer gastar mais recursos nesse tema”, diz o advogado. Isso significa o quê? Que se deixa morrer o dossier? Não, diz Marinello. “Nós não trabalhamos à hora, trabalhamos por caso resolvido. É como uma montanha-russa: nunca fechamos um caso. Às vezes ele pode parecer morto, mas temos de estar preparados para o deixar esfriar até ele voltar a aquecer. Não desistimos. Não me importo de esperar.”
Há o exemplo do Gauguin de 1889, a natureza-morta Fruits sur une table que em 1960 foi roubado em Londres da casa de Mathilda Marks, filha do fundador do império Marks & Spencer.
O roubo foi executado por três homens fazendo-se passar por um polícia e dois funcionários da empresa de alarmes. Conseguiram chegar com a tela a França. Depois, por motivos desconhecidos, abandonaram-na num comboio rumo a Turim, em Itália. Avaliada em cerca de 30 milhões de euros, foi recolhida por funcionários dos caminhos-de-ferro e passou anos num armazém de perdidos e achados. Até chegar a hasta pública. E ser comprada por um trabalhador fabril que pagou pouco mais de 20 euros. Esse homem siciliano teve o Gauguin por décadas na parede da sua sala de jantar. Até o filho olhar para um livro de arte, decidir consultar especialistas e ficar toda a gente face a um complexo puzzle de titularidade que Marinello está ainda a mediar.
O advogado foi inicialmente contactado por um coleccionador que queria comprar a pintura ao proprietário italiano mas temia problemas. Depois, um dos herdeiros de Mathilda Marks foi também bater à porta da Art Recovery.
Segundo a lei italiana, o quadro pertence ao homem que o adquiriu em hasta pública. Por outro lado, inicialmente, os herdeiros Mar-ks não aceitaram ser compensados com um terço do valor da peça a pagar pelo coleccionador interessado na obra. “Deixei cair”, diz Marinello. “Passados meses, os herdeiros não desistiam [de reclamar a pintura], [por isso] ninguém conseguia vender nem comprar. E, pronto, vieram todos ter outra vez comigo. Se tiver de fazer o mesmo com o Crivelli, está na minha prateleira.”
É literal: no escritório de Marinello, cada caso é um dossier de capas pretas numa prateleira branca. E um dos dossiers tem escrito “Crivelli”. Há algum tempo que não é aberto, diz o advogado.
No seu gabinete, Alice acabará por suspirar: “O Chris acha este caso frustrante. Quando foi a Portugal, era o momento de resolver a questão, mas houve apenas silêncio. Ficou tudo num limbo. Por isso os proprietários agora não percebem o caso. Nem eles nem nós.”
Para esta especialista, Portugal não tem muitas saídas. “O Governo ou mudou de ideias ou qualquer coisa mais estranha aconteceu. Mas é como um contrato. Um director de serviços assina um contrato e isso vincula a empresa. A administração pode ir ter com ele e dizer que nunca o autorizou a fazer aquilo. Mas ele fez. E o contrato é válido. Nós não podemos fazer nada.”
Até hoje, o Governo português nunca se pronunciou sobre responsabilidades últimas no caso. Há dois anos que recusa ao PÚBLICO acesso à documentação administrativa que as deverá esclarecer, num caso agora nas mãos do Supremo Tribunal. E tanto a Direcção-Geral do Património Cultural como a Secretaria de Estado da Cultura voltaram, para este trabalho, a recusar comentar o caso. Como vem sendo norma.
Marinello, de novo: se os seus clientes são assim tão conhecidos, ricos e bem-intencionados, não estão interessados num gesto público de patronato, devolvendo simplesmente a peça ao país? O advogado olha-nos por um segundo e questiona calmamente os fundamentos da pergunta: “Eles não são portugueses e não se trata de um objecto que tenha pertencido a Vasco da Gama. Alguém conseguiu uma licença de exportação. É-me muito difícil dizer às pessoas envolvidas que têm de devolver. Não vejo porquê.”
Com os saques nazis é diferente. É fácil, diz o advogado. “Houve famílias a sofrer enormemente e há museus a precisarem de compensar essas pessoas.”
Dos casos com que lidou até hoje, um dos favoritos de Marinello tem que ver com esse universo de reparação histórica. O caso de uma família judia que lhe pediu ajuda para localizar uma pintura de autor desconhecido. Sem grande valor de mercado, a peça tinha enorme valor sentimental: retratava a fábrica expropriada à família pelo regime nazi.
“Esta família perdeu tudo, queria a pintura de volta. Era simbólico. E achámos que era a coisa certa. Ter um pedacinho de volta.”
Foi o que aconteceu.