Pela primeira vez, DGArtes atribui apoios anuais e bienais sem ouvir candidatos excluídos
DGArtes dispensou a fase de audiência dos interessados, prevista por lei, no último concurso de apoios anuais e bienais, cujos resultados foram agora anunciados. Candidatos excluídos contestam.
Ao contrário de anos anteriores, a DGArtes dispensou a fase de audiência dos interessados, prevista na lei, que permite às entidades excluídas pedirem uma revisão da sua candidatura por erros ou irregularidades processuais. Em concursos anteriores, estruturas que inicialmente não tinham sido contempladas acabaram por sê-lo depois da audiência – como aconteceu com o Teatro Cão Solteiro no programa bienal 2014-15.
A decisão de anular a audiência de interessados não é totalmente inédita: a DGArtes fê-lo três vezes – no programa de apoio directo quadrienal 2013-16 e em dois concursos de apoio pontual –, mas é a primeira vez que o faz num concurso de apoios anuais e bienais, que agora deverá dividir 3,9 milhões de euros pelas estruturas apoiadas.
Num despacho assinado a 27 de Maio, a directora-geral das artes Margarida Veiga invoca o “interesse público” para justificar a “inexistência de audiência de interessados”: a observância dessa fase iria manter os resultados suspensos, o que significaria que as estruturas apoiadas deixariam de receber verbas necessárias à execução das suas actividades para este ano. “Estamos perante uma situação em que o factor tempo é determinante”, observa Margarida Veiga no dito despacho.
“Lançámos os resultados no dia 29 de Maio. Se fizéssemos a audiência, ainda não teríamos resultados. Seriam mais cinco semanas de suspensão porque nada pode avançar. Tendo ficado de fora 92 candidaturas, é natural que muitas se quisessem pronunciar”, disse ao PÚBLICO a subdirectora-geral das artes, Mónica Guerreiro.
A audiência dos interessados é “uma obrigatoriedade legal que achamos muito importante”, por “permitir que a administração pública corrija erros”, afirma Mónica Guerreiro. Mas ela “não serve para reclamar”, defende. “Serve para alertar para a ocorrência de erros, para uma desconformidade. Um documento que não foi visto, uma digitalização mal feita… Mas muitas vezes os interessados não as usam com esse intuito.”
Esta responsável diz ainda que a DGArtes considerou que a não realização de audiência “não prejudicaria os direitos dos que se quisessem manifestar”. De acordo com o Código do Procedimento Administrativo, neste tipo de situações os interessados que queiram contestar os resultados poderão fazê-lo apresentando uma reclamação junto da DGArtes no prazo de 15 dias, ou através de recurso hierárquico junto da Secretaria de Estado da Cultura, ou por via judicial. “Como em qualquer processo de contestação da administração pública, o que acontece quando se conclui que o Estado cometeu um erro ou injustiça é que o lesado recebe uma indemnização. É assim em qualquer sector público, as artes não são diferentes”, diz Mónica Guerreiro.
Mas o que os candidatos excluídos notam é que a razão invocada para suspender a audiência – não adiar ainda mais a entrega dos financiamentos às estruturas – é um problema criado pela própria DGArtes. “O arrastamento do processo é da responsabilidade exclusiva da DGArtes”, diz Armando Valente, director do Citemor – Festival de Montemor-O-Velho, que também ficou sem apoio.
“Esse argumento seria justificável se as causas tivessem sido externas (um incêndio, um vírus informático, uma dúvida de Cavaco Silva), mas como é que alguém que promove um concurso para 2015 (que só abre em Dezembro de 2014 e fecha no final de Janeiro de 2015) e só divulga os resultados no fim de Maio (após uma média de 2,5 encontros por mês por parte do júri), vem dizer que, por questões de tempo, não haverá audiência de interessados? Shame on you!”, escreveu João Fiadeiro na sua página de Facebook.
“Este concurso abriu já no final de Dezembro, o que é uma coisa anómala”, reconhece a subdirectora-geral das artes. “Deveríamos abrir os concursos em Agosto, seria o prazo adequado. Infelizmente, têm aberto cada vez mais tarde.” Situação que se deve ao facto de os apoios às artes dependerem da aprovação do Orçamento de Estado na Assembleia da República e de isso acontecer “cada vez mais tarde” nos últimos anos, nota Mónica Guerreiro.
Sem vitimização
“Vamos fazer 19 anos. Somos apoiados [pelo Estado] há 18”, diz Paula Sá Nogueira, co-fundadora do Teatro Cão Solteiro, de Lisboa. Nas actas do concurso anual e bienal para as áreas de teatro, dança e cruzamentos disciplinares, a DGArtes assinala que a candidatura da Associação Cão Solteiro “tem uma pontuação positiva e é elegível, pelo que só não é proposta para apoio financeiro por força das limitações orçamentais deste programa de apoio”.
A Cão Solteiro vai contestar os resultados, diz Paula Sá Nogueira, mas ainda não sabe em que moldes. “A companhia não vai fechar. Não podemos inviabilizar um trabalho que vai a caminho dos 20 anos, e que é altamente reconhecido pelas instituições, por causa de más decisões políticas. Temos que afastar deste problema a questão da vitimização. Não tem interesse nenhum. Todos os portugueses estão a ser vitimizados, seja qual for a sua área de trabalho. A questão é a maneira como estes concursos estão organizados e como são avaliados”, diz.
A sua companhia de teatro está a preparar um espectáculo para Novembro com a Companhia Nacional de Bailado (CNB), “uma companhia estatal”, sublinha Paula Sá Nogueira. “Os espectáculos da CNB têm aprovação prévia do Secretário de Estado da Cultura. O Estado primeiro aprova o espectáculo e depois desaprova. É um desacordo.”
Armando Valente diz que o Citemor é financiado pelo menos desde que assumiu a direcção deste festival, em 1992, e que os “problemas surgem no início deste Governo”. Em 2013, a candidatura do CITEC, a associação que produz o festival, não foi contemplada pelos apoios tripartidos quadrienais. “Foi a primeira vez que não obtivemos apoio. No ano passado, fizemos todo o festival apenas com financiamento de um apoio pontual, 25 mil euros, coisa que seria impensável há anos atrás”, diz o director do Citemor.
O futuro do festival é uma incógnita. A direcção do CITEC irá reunir durante o fim-de-semana para decidir o que vai fazer – “se fazemos festival, ou que festival é que é possível fazer”, adianta Armando Valente. “Mesmo contando com o apoio dos criadores e das estruturas, temos estado a cumprir edições com défice durante estes três anos. Não sabemos como continuar.”
No sector da música foram apoiadas doze candidaturas, tendo sido excluídas 23, entre as quais se contam, por exemplo, o Hot Clube de Portugal, a Associação Porta-Jazz, do Porto, ou o Orfeão de Leiria, responsável pelo Festival de Música de Leiria, um dos mais antigos festivais de música clássica do país, cuja 33.ª edição está a decorrer, encerrando no próximo dia 18 com um concerto de Pedro Burmester.
O Orfeão de Leiria tinha sido contemplado nos apoios bienais relativos a 2013 e 2014, e o seu presidente, Acácio Sousa, diz ter ficado “surpreendido” com esta decisão. “Quem fica de fora sente-se sempre lesado”, reconhece, mas defende que o Orfeão não foi valorado em critérios que teria cumprido, como o da circulação das iniciativas culturais. E lamenta que a maioria das estruturas apoiadas se situe na região de Lisboa e Vale do Tejo, penalizando a “desconcentração cultural”.
Também Acácio de Sousa contesta que a DGArtes tenha dispensado as audiências de interessados, defendendo que os candidatos “não podem ser lesados por atrasos que são da responsabilidade da adminsitração pública”.
Uma objecção partilhada por André Tavares, da Domingos Tavares, Arquitectos, responsável pela editora Daphne, uma das estrututras que fora apoiada em 2013-14 e que agora se viu excluída da restrita lista das oito estruturas que a DGArtes financiará em 2015-16 no sector de arquitectura, artes digitais, artes plásticas, design e fotografia.
Tavares admite que “é normal que o dinheiro não chegue para todos”, e embora não concorde com o “critério burocrático” que levou a DGArtes a não atribuir à Domingos Tavares a majoração prevista para a circulação internacional, o que mais o “impressiona” é “não haver, na região do Porto, apoios no sector da arquitectura”, já que também acabaram por ficar de fora, observa, as candidaturas da Casa da Arquitectura, de Matosinhos, e da associação Circo de Ideias. Com Luís Miguel Queirós
Notícia actualizada com reacções do sector da música e da arquitectura