Mulher diz que prendeu filho na cave para o proteger
A família era conhecida pela GNR e pela Segurança Social. Mas nesta terça-feira, quando os guardas voltaram a ser chamados pelos vizinhos, descobriram o inesperado: um dos filhos preso numa cave nauseabunda. Suspeita-se que o homem, que sofrerá de “distúrbio psíquico”, vivia nesse espaço mínimo havia anos.
O homem que estava preso é filho da mulher com cerca de 60 anos de quem os vizinhos se queixam — “um demónio, essa mulher”, diz Cidália — e sofrerá de “algum distúrbio psíquico”, segundo as autoridades. Um dos moradores da Rua Nova da Ribeira interrogados pelos militares disse que não o via havia pelo menos oito anos — tantos quantos terá estado fechado. Esta informação ainda está, contudo, a ser confirmada pela GNR.
À polícia a mulher disse ter prendido o filho apenas para o proteger, já que este seria muito agressivo.
Ana Coelho, 64 anos, que mora a poucos metros, esteve algum tempo fora, regressou há quatro anos e diz que nunca viu o filho dos vizinhos. Mas lembra-se dele em jovem. “Ia à escola e brincava com os outros na rua.” Não se lembra de ter problemas. Cidália Carmo diz que há mais tempo que o perdeu de vista: “Cinco, seis anos, se calhar mais, o tempo passa tão depressa. Aqui na rua achávamos que ele tinha ido para uma instituição.”
Outra vizinha conta que a certa altura o rapaz começou de facto “a dar problemas” e que a mãe começou a fechá-lo em casa. “Às vezes via-o na varanda, a tentar sair.” Já Cidália Carmo garante que a família chegou a ser visitada por assistentes sociais, que nunca eram bem recebidas. Até que o rapaz deixou de ser visto. Os anos passaram. Nunca ninguém ouviu qualquer som suspeito. Nada. Tão pouco a guarda quando era chamada.
Mãe e filho serão cabo-verdianos e estarão em Portugal há cerca de 20 anos. Juntamente com eles vivia o companheiro da sexagenária e pai dos seus filhos, também com cerca de 60 anos, e uma jovem de 26 anos, irmã do homem encontrado preso na cave — a polícia suspeita que, por vezes, também fosse mantida à força em casa. Serão todos desempregados e sobrevivem com as verbas que lhes são pagas a título de Rendimento Social de Inserção.
Alertados por gemidos
Nesta terça-feira, a GNR de Alcabideche foi chamada ao local pelas 11h45, depois de ter recebido quatro telefonemas de vizinhos “reportando uma situação de ameaças, injúrias e agressões”, disse ao PÚBLICO o tenente Filipe Costa, comandante do subdestacamento da GNR de Alcabideche. Quando os militares chegaram, verificaram que a mulher do lote 24 tinha agredido um vizinho. Este ficou ferido num joelho e teve de ser transportado para o hospital.
A mulher já era conhecida das autoridades, tendo a GNR confirmado que recebeu várias queixas relativas a ameaças e agressões. O tenente Filipe Costa afirma, contudo, que não existe qualquer informação relativa a maus-tratos ao filho. “Já lá fomos várias vezes em anos anteriores, neste ano nem por isso”, refere o responsável da GNR, que insiste que este tipo de ocorrências são comuns naquela área.
Dentro da casa as autoridades encontraram facas e catanas, que segundo relatos dos vizinhos eram frequentemente usados para os ameaçar.
“O contacto com a senhora não foi fácil. Tinha um discurso sem qualquer coerência e suspeitamos, por isso, que possa ter uma anomalia psíquica, mas isso só poderá ser confirmado mais tarde por especialistas”, acrescentou o tenente Costa.
Poucos minutos após terem chegado ao local, os guardas ouviram gemidos vindos do interior da casa. Decidiram então entrar na habitação e foram guiados pelo ruído incessante até à cave, onde acabaram por encontrar um homem fechado.
“Encontrámos um portão de ferro fechado com correntes e um cadeado. Dentro da cave só encontrámos o homem e baldes. Não tinha nada que servisse para dormir e suspeitamos que fizesse as suas necessidades fisiológicas ali mesmo. A divisão não tem janelas. O homem não estava ferido nem com magreza característica de estar desnutrido, mas foi levado para o hospital”, acrescentou o tenente. Cidália foi uma das vizinhas que o viu sair, de maca. “Tinha umas barbas até ao peito.”
Avaliação psiquiátrica
Os vizinhos estranham que ele estivesse preso na cave — o acesso faz-se pelas traseiras, por um quintal apinhado de objectos (cadeiras, roupas, pedaços de madeira e de plástico, sacos de plástico...) virado para um terreno vazio. “A família fazia muita vida ali no quintal”, conta uma das moradoras. Dentro do quintal, avista-se uma porta de metal, com um cadeado a servir de fechadura, e uma janela minúscula, tapada. Seria esse o acesso ao local onde o homem estava preso. Os bombeiros de Alcabideche dizem que estava fechado numa divisão com cerca de uma dúzia de metros quadrados. O comandante da corporação, José Palha, descreve ainda: “A divisão tinha três paredes e era fechada com barras em ferro. Nessas grades havia uma porta que estava fechada com várias correntes que nós cortámos.”
Os bombeiros que entraram na cave destacaram o “cheiro nauseabundo e as condições sanitárias deploráveis”, que se resumiam a um balde para fazer as necessidades. “O homem, que tinha barba e cabelo comprido, aparentava estar bem nutrido”, descreve ainda José Palha, que refere que a vítima se ria sem razão aparente.
Os militares da GNR tentaram falar com ele para tentar perceber o que se teria passado, mas sem sucesso. A vítima respondeu com mais gemidos e com poucas palavras fora do contexto. Foi levado para o Hospital de Cascais. “Suspeitamos que possa ter também algum distúrbio psíquico”, referiu o tenente Costa.
O Hospital de Cascais confirma que o homem ficou internado na unidade, mas recusa-se, para já, a adiantar pormenores sobre o seu estado clínico. A irmã mais nova também está internada na instituição, tendo a mãe sido encaminhada para o Hospital Francisco Xavier, em Lisboa, onde deverá ser sujeita a uma avaliação psiquiátrica.
“O meu menino”
A Unidade Nacional de Contra Terrorismo da Polícia Judiciária, que tem a ser cargo os inquéritos por sequestro, está a investigar o caso. Não foi, contudo, aberto um processo-crime uma vez que os indícios apontam mais para um caso de natureza social. Não há, por isso, para já detenções nem arguidos.
O homem que estaria preso há vários anos na cave da habitação estaria referenciado pela Segurança Social como deficiente profundo, apesar de não estar a ser medicado. Aliás, segundo a PJ, toda a família estaria sinalizada pela Segurança Social, que conhecia os problemas mentais e a situação de pobreza em que viviam. Contactada pelo PÚBLICO, a instituição não respondeu, em tempo útil, sobre o tipo de acompanhamento e apoio que dava ao agregado.
A mãe foi inquirida esta terça-feira. “Estamos a tentar perceber o que se passou e o que levou a mãe a fechar o filho na cave, mas o discurso da mãe é desconexo. Até agora não conseguimos perceber o que sucedeu”, acrescentou o responsável da GNR. As autoridades sublinham a forma carinhosa como a mãe sempre se referiu ao filho, que tratou várias vezes como “o meu menino”.
No local estiveram ainda os Bombeiros de Alcabideche, a Protecção Civil e a Delegação de Saúde.