Em Lisboa há barcos inclusivos e um quiosque que simplifica a saúde

Além de estar pintada num barco construído por adultos com deficiência e incapacidade mental, a marca BIP-ZIP está já espalhada um pouco por toda a cidade. Em obras físicas e em projectos imateriais, no centro e na periferia, o programa camarário lançado em 2011 soma conquistas.

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Daniel Rocha

No armazém do clube náutico, junto à Estação Fluvial do Cais do Sodré, a última quinta-feira foi um dia especial. À volta da embarcação juntaram-se Álvaro, Jorge, Paulo, Castro, (o outro) Paulo, Gonçalo, Marco e Vítor, os seus formadores, o responsável pelo clube náutico e vários elementos da Câmara de Lisboa envolvidos no Programa BIP/ZIP (Bairros e Zonas de Intervenção Prioritária), incluindo a vereadora da Habitação e do Desenvolvimento Local. Juntos assinalaram a conclusão de uma obra por trás da qual há uma grande ambição.

“Não podemos perder ninguém porque todos temos talentos”, resume Carlos Caetano, do Náutico Clube Boa Esperança, que nos últimos anos se tem dedicado a promover a construção naval como instrumento de “inclusão”. No armazém de cor amarela reúnem-se adultos apoiados pelo Grupo de Intervenção e Reabilitação Activa e pelo Centro de Reabilitação de Paralisia Cerebral Calouste Gulbenkian, que ali adquirem um conjunto de conhecimentos que se espera que possam depois transportar para a sua vida.  

Este projecto, ao qual foi dado o nome Alfama Mar e que contou com um apoio camarário de 44 mil euros, tem outra vertente além desta “oficina de inclusão”: a alunos do Agrupamento de Escolas Gil Vicente e jovens de várias nacionalidades residentes naquele bairro típico de Lisboa é dada a oportunidade de participarem em baptismos de vela e em oficinas de ciências náuticas. Nelas podem por exemplo aprender o que é um astrolábio, ou adquirir noções de trigonometria sem que essa palavra seja sequer pronunciada.

Do Cais do Sodré, a visita a alguns dos projectos que a edição de 2014 do Programa BIP/ZIP permitiu que ganhassem forma segue para o PROCAC Sul, na freguesia de Marvila, um bairro de auto-construção de antes do 25 de Abril que está em processo de legalização. Aí está em curso um trabalho de requalificação do espaço público, que tem algumas particularidades: as obras a desenvolver foram escolhidas em assembleias de residentes e vão ser feitas também por residentes.

Por enquanto pouco se vê no local onde vai ser feita essa intervenção, além de um monte de terra revolvida. Mas as imagens que José Augusto, o rosto da Associação de Moradores do Bairro do Vale Fundão, traz consigo deixam perceber que junto àquele que é hoje o principal local de encontro no bairro vão nascer um pequeno anfiteatro ao ar livre e umas escadas que vão unir duas áreas separadas por um espaço verde. Além disso vai também ser feita a marcação de lugares de estacionamento no espaço público.

Essas três obras, explica José Augusto, foram as escolhidas por quem ali vive, de entre um conjunto de oito possíveis. “Correu muito bem. Votaram 178 moradores”, conta, explicando que neste bairro “construído há 42 anos” há “estruturas que fazem falta”, como aquelas que vão agora nascer e que se espera que contribuam para estimular “a proximidade e o contacto” entre as suas gentes.

Parceiro deste projecto é o Ateliermob, uma “plataforma multidisciplinar de desenvolvimento de ideias, investigação e projectos nas áreas da arquitectura, design e urbanismo”. Tiago Mota Saraiva, sócio dessa plataforma (que já tinha participado numa iniciativa semelhante no bairro PRODAC Norte), considera que este projecto constitui um contributo importante para que as pessoas se “reconheçam” no espaço em que moram e também para que sintam que essa “lógica identitária” é “reconhecida lá fora”.

Sobre o PRODAC Sul, onde moram cerca de duas mil pessoas, o arquitecto destaca que se conseguiu “um processo participativo impressionante”. “Não há assembleias com menos de 200 pessoas”, diz com satisfação. Outro ponto que Tiago Mota Saraiva sublinha é o facto de metade dos 50 mil euros que foram atribuídos pela câmara a este projecto se destinarem a assegurar o pagamento de uma bolsa de trabalhadores do bairro, que vão desenvolver as obras.

Com tudo isto, o arquitecto acredita que as pessoas para as quais esta intervenção vai ser feita irão “zelar muito mais” por ela do que aconteceria noutras circunstâncias. “Cria-se uma espécie de auto-estima. É uma lógica que tem muito sentido”, corrobora José Augusto, que ali mora desde que saiu da guerra colonial.

A terceira paragem desta visita é o Quiosque da Saúde, que está instalado desde Novembro passado junto às Olaias, numa área em que se encontram bairros municipais, prédios de cooperativas e de venda livre. Aqui prestam-se cuidados de medicina e de enfermagem, numa resposta que se pretende “complementar e muito localizada”. A ideia, explica Duarte Paiva, coordenador geral da Associação Conversa Amiga (ACA), não é competir com o serviço nacional de saúde, mas sim mostrar que “a saúde pode ser simples, fácil, acessível” como é “ir a um quiosque”.  

O projecto Saúde à Porta, que conquistou do Programa Bip-Zip um apoio de 23.653 euros, tem uma outra vertente, de visitas ao domicílio. Mas o quiosque, que já prestou cerca de 470 atendimentos, tem, como nota Duarte Paiva, uma grande mais-valia para uma população que é em grande parte idosa: “é importante porque assim as pessoas saem de casa”. Numa altura em que já se ultrapassou a procura que estava inicialmente prevista, a ambição da ACA é espalhar por Lisboa outros equipamentos como este.   

O último ponto da visita a alguns dos 39 projectos que o Programa BIP-ZIP apoiou na sua última edição termina numa loja camarária na Rua Varela Silva, que é a casa da Ameixoeira Criativa. O grande objectivo desta iniciativa, promovida pela Associação Lusofonia, Cultura e Cidadania, é qualificar na área da costura residentes em situação de vulnerabilidade, dando-lhes assim ferramentas para criarem um negócio ou entrarem no mercado de trabalho.

Aquilo que começou em 2009 com uma máquina de costura levada de sua casa por Nilzete Pacheco, da associação, foi ganhando corpo. Depois de duas candidaturas vencedoras ao programa do pelouro da Habitação (a última no valor de 24.995 euros), de dezenas de candidatas às vagas abertas para formação e de muitas horas de trabalho no atelier, o Ameixoeira Criativa vai viver um grande momento na próxima sexta-feira: vai ser lançada a sua marca, a ComPonto.

Segundo Nilzete Pacheco, o que diferencia esta nova marca de acessórios são a sua “história” e o facto de ela procurar “abraçar as culturas” existentes na Ameixoeira, uma zona no limite da cidade que tem “uma diversidade muito grande”. Nas malas e bolsas que estarão à venda a partir de próxima semana, mas também nos laços, lenços e postais, destacam-se as estampagens, feitas no local com laranjas e alhos franceses, entre outras coisas. Além disso, todos os produtos resultam do reaproveitamento de tecidos usados.     

Neste espaço, no qual por estes dias as máquinas de costura funcionam sem descanso para garantir que tudo estará pronto no dia do lançamento da marca, trabalham mulheres com idades entre os 24 e os 70 anos. Uma delas é Isabel Timóteo, que se reformou depois de 43 anos de trabalho e não se via “a ficar em casa”.

Quanto chegou ao Ameixoeira Criativa, em 2013, tinha em casa uma máquina de costura, comprada para a filha, mas não sabia como utilizá-la. Agora é ela que faz as bainhas das calças do filho e os vestidos das bonecas da neta. “Venho sempre que posso”, diz Isabel Timóteo, que já não se imagina sem este local de aprendizagem e de convívio.  

Para a presidente da Junta de Freguesia de Santa Clara, que é parceira deste projecto, ele “tem uma importância enorme”. Destacando que esta é uma área cujos moradores têm “baixa escolaridade, uma subsídio-dependência enorme e muitas vezes hábitos de trabalho quase inexistentes”, Maria da Graça Carvalho defende que “tudo o que seja para ocupar as pessoas de uma forma construtiva é muito importante”. Além disso, nota a autarca socialista este é também “um espaço de convívio, de troca de opiniões, de colocar questões pessoais, de ouvir e ser ouvido”.

Quinta edição do Programa BIP-ZIP em marcha

Lançado em 2011, o Programa BIP-ZIP já espalhou a sua “energia” por bairros e zonas de intervenção prioritária um pouco por toda a cidade, com mais de uma centena e meia de projectos apoiados. O lançamento daquela que será a sua quinta edição foi aprovado por unanimidade pela Câmara de Lisboa, decorrendo o período de candidaturas nos meses de Junho e Julho.  

A intenção desta iniciativa do pelouro da Habitação, lançada quando o cargo era ocupado por Helena Roseta (hoje presidente da Assembleia Municipal de Lisboa) é “dinamizar parcerias e pequenas intervenções locais de melhoria dos ‘habitats’ abrangidos, através do apoio a projectos locais que contribuam para o reforço da coesão socio-territorial no município”.   

“É um programa que está consolidado na cidade e que é consensual”, afirmou a actual vereadora da Habitação e do Desenvolvimento Local, Paula Marques, na última reunião camarária. Nela foi aprovada a proposta relativa à edição de 2015, à qual serão afectos 1,633 milhões de euros.

Nas regras define-se que as candidaturas devem ser apresentadas “por uma parceria territorial composta por pelo menos duas entidades” e que as acções elegíveis, a cada uma das quais poderá ser entregue um montante máximo de 50 mil euros, podem ser “intervenções pontuais”, “serviços à comunidade” ou “pequenos investimentos e acções integradas”.

Para fazer a avaliação das candidaturas, que em 2014 alcançaram o valor mais alto de sempre, situando-se nos 146, são usados como critérios a “participação”, a “pertinência e complementaridade”, a “coesão social e territorial”, a “sustentabilidade” e a “inovação”. O prazo de execução dos projectos apoiados é de 12 meses.

Com a escolha dos quatro projectos visitados pelo PÚBLICO na passada quinta-feira (Alfama Mar, PRODAC Sul, Saúde à Porta e Ameixoeira Criativa), Paula Marques procurou demonstrar a “diversidade” que encerra o BIP-ZIP. Nele cabem projectos com “dimensão material”, com “dimensão imaterial” ou com ambas, localizados no centro histórico e na periferia, em bairros municipais e não só.

Uma novidade da edição que agora vai arrancar, e cujos vencedores serão conhecidos em Setembro, é que as juntas de freguesia que se candidatem como promotoras de projectos deverão fazê-lo em co-promoção com pelo menos uma organização de base local. A vereadora diz que este é mais um passo para contribuir para “a emancipação das pessoas e das comunidades”.  

Tanto Paula Marques como o coordenador deste programa camarário, Miguel Brito, sublinham que se tem assistido a algo muito relevante: a um crescimento do número de entidades envolvidas em cada projecto desde o seu lançamento até ao ponto intermédio da sua concretização. “A média é duplicar o número de parceiros”, diz o arquitecto, para quem tal é um indicador de que “o BIP-ZIP dá a primeira ignição a uma rede que depois constrói mais rede à medida que vai andando no tempo”.

“As coisas vão acontecendo no terreno e as pessoas vão-se motivando”, atesta a vereadora dos Cidadãos por Lisboa. Olhando para o que já foi feito em muitos dos 67 bairros e zonas de intervenção prioritária de Lisboa, Paula Marques vê com satisfação as “acções materiais” que “ficam e não são vandalizadas”, as acções de vários tipos que “perduram” e “a rede que fica, a energia que se gera”.

Já Miguel Brito sublinha que estão em causa projectos “muito diferentes”, que mesmo que tenham pontos em comum acabam por ser únicos, por serem “específicos” do sítio em que nasceram, e também porque cada um deles envolve pessoas diferentes. “As pessoas é que fazem os projectos”, conclui.

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