Madeira
Espírito Santo na Madeira
O vermelho das bandeiras e das opas vestidas pelos homens que transportam as insígnias. As vozes das crianças que cantam ao entrar e ao sair de cada casa e dentro de cada uma delas. O padre que serve uma bebida a quem está. A alegria da partilha sentida por quem abre a porta ao “Espírito Santo”.
Vai o padre de casa em casa e com ele um magote. Primeiro, dois homens com bandeiras vermelhas. Depois, três meninas a atirar pétalas de rosa e a cantar: “Aqui chega uma visita, que já não chegou há tanto, recebei com alegria o divino Espírito Santo.” E quatro músicos a tocar os seus instrumentos, um menino a segurar a água benta. Por fim, o padre e o organizador da festa, o chamado “festeiro”, ou um substituto, a recolher as ofertas.
Em nenhuma outra altura se limpam tanto as casas do vale de São Vicente, no Norte da ilha da Madeira. Há quem passe a semana a aspirar, a espanar, a escovar, a varrer, a lavar, a esfregar. No sábado, ainda fazem o pão com batata-doce, o bolo de família e outras iguarias para pôr na mesa da sala, que ninguém há-de tocar até chegar “a divina visita”.
Um detalhe ajuda a tradição a resistir. “O vale de São Vicente manteve a presença do sacerdote”, diz o padre Hugo Gomes. “Em quase todas as outras paróquias [da ilha], isso desapareceu.” Começa no primeiro domingo a seguir à Páscoa num sítio e prossegue nos outros, domingo a domingo, até percorrer as suas três paróquias. O padre da outra paróquia faz o mesmo. São apenas uns minutos em cada casa. Aproveita-os para saudar, fazer uma oração, dizer uma graçola, servir uma bebida, benzer alguma imagem. “É a grande festa da família”, entende. Guisa-se cabrito ou assa-se vaca e à mesa arrumam-se familiares e amigos de perto e de longe. “Aqui, o Espírito Santo é rico porque estamos todos juntos. Estar sozinho é até uma vergonha.”
Na origem de tudo isto está o pensamento de Joaquim de Fiore (1130-1202), segundo o qual a humanidade já vivera a idade do Pai e a idade do Filho e haveria de viver a idade do Espírito, a da confraternização. Garantem estudiosos como João Luís Rodrigues Gonçalves que a rainha Santa Isabel (1270-1336) é que começou a festa: em Alenquer, fez coroar um pobre e distribuir esmolas. A devoção desembarcou na Madeira com os franciscanos, que acompanharam o povoamento. Subsiste, como nos Açores, embora de modo diferente.
Naquele tempo, na festa do Pentecostes — 50 dias depois do Domingo de Páscoa, dia em que, pelo calendário Católico, o Espírito Santo desceu sobre os apóstolos — coroava-se um “imperador” e distribuía-se o “bodo”, as esmolas, pelos pobres. Agora, cada freguesia tem o seu jeito. Em São Vicente, não há “bodo”, nem “imperador”, nem pobres à espera de ofertas. Há paroquianos que, por promessa ou gosto, se voluntariam para organizar a festa. E paroquianos que oferecem dinheiro “para a salva”. Metem-no na coroa do Espírito Santo, transportada pelo “festeiro”, que, como os outros leigos, usa uma opa vermelha, cor de fogo, símbolo de “amor de Deus”. Ali, vai todo para a manutenção da Igreja de Nossa Senhora da Saúde.
Teresa Pestana, a “festeira” do último domingo, é grande devota. “O Espírito Santo é uma palavra infinita”, diz. “O corpo nada manda na gente. Só manda o espírito. Morreu o espírito, morreu tudo. É verdade ou mentira?” Já foi “festeira” sete vezes. “É a alegria que sinto de ter o divino Espírito Santo na minha casa. Uma pessoa com 81 anos que ainda recria a sua casa, planta a sua fazenda, tem as suas farturas. Tudo faço com as minhas mãos! Então não é o Espírito Santo que eu tenho?”
A primeira vez foi há muito. Só tinha dois filhos. Teve outros nove. Estava o marido no Canadá, prometeu ele: “Um dia que eu tenha onde criar galinhas e porcos, uma fazenda para trabalhar e uma casa melhorzinha, tiro a ‘dominga’ três anos seguidos.” “Tinha esta casa, tinha a fazenda à roda, quis pagar as promessas”, recorda ela. “No primeiro ano, adoeceu, pegou lume na casa, foi para o hospital. Fui vê-lo e perguntei: ‘As nossas promessas?’ Ele disse: ‘Tira-se igual. Vais a uma pensão, pagas o almoço, pagas o jantar, que eu não posso ir.’ O Espírito Santo foi tão bom que ele veio na sexta-feira [anterior] para casa. Ele sentou-se e disse: ‘Meu divino Espírito Santo, ajuda-me a pagar as promessas, nem que eu morra daqui a um ano. Pois ele pagou os três anos seguidos e, oito dias antes de o Espírito Santo voltar, morreu. Ele morreu, eu fiquei. Eu cá estou bem!”
Haveria de “cantar e bailar” até tarde naquele domingo, 24 de Maio. A festa com o jovem pároco tem outra graça. Ele não faz grandes sermões, prefere mensagens curtas, mas incisivas, como esta: “Quando o Espírito Santo desceu sobre os apóstolos, eles começaram a falar diferentes línguas. Só assim conseguiriam comunicar com outros povos. Hoje, que tanto se estuda línguas, o grande desafio é compreender quem vive ao lado.”