Cristãos desde sempre no Iraque agora em fuga ao “Estado Islâmico”
Entre os cristãos que fugiram de Mossul, há quem não pense voltar mesmo que o “Estado Islâmico” saia. Porque os vizinhos, árabes sunitas, ajudaram a expansão jihadista. Segundo retrato de uma região desfeita por todos os erros.
No pátio desta igreja, em Erbil, capital do Curdistão Iraquiano, contentores funcionam até como sala de música, de computadores, de brincar, o que alegra o tempo mas não reverte a história. Vizinhas por baixo de um calendário com a Virgem, adolescentes numa mesa de pinguepongue ou meninos com Legos: refugiados como milhões de iraquianos no seu próprio país, a maior parte dos quais em acampamentos onde a chuva entra, o sol queima.
É assim desde o Verão de 2014, quando o “Estado Islâmico” mudou o mapa oriental ao desfazer a fronteira entre a Síria e o Iraque. Os domínios do auto-proclamado Califado são hoje maiores do que, por exemplo, a Grã-Bretanha, e Erbil já esteve cercada, vai-não-vai para cair. Ainda há um mês a cidade tremeu quando um carro-bomba explodiu a algumas ruas daqui, junto ao Consulado Americano. Militantes do “Estado Islâmico” conseguiram atravessar o Curdistão, território que lhes é hostil, estacionar o carro em Ankawa, o bairro mais cosmopolita de Erbil, e fazê-lo explodir, matando três pessoas e ferindo 14. Atingiram assim, em simultâneo, um alvo americano e o bairro cristão, cheio de refugiados.
“As pessoas foram chegando desde 7 de Agosto de 2014, quando o ‘Estado Islâmico’ começou a atacar os cristãos em Qaraqosh”, conta Daniel Al Khoury, o jovem padre de 25 anos que recebe o PÚBLICO. Estamos apenas a 80 quilómetros de Mossul, a maior cidade do Iraque controlada pelo “Estado Islâmico”, e Qaraqosh fica a meio caminho. Os jihadistas dominaram Mossul a 10 de Junho, foram avançando na direcção de Erbil, até que a 7 de Agosto se deu a debandada de Qaraqosh, 60 mil cristãos, segundo o padre Daniel, mais outros 60 mil em diferentes regiões. “Os peshmerga [combatentes curdos] tinham prometido proteger aquelas povoações mas no último momento avisaram que já não seria possível. Então as igrejas começaram a tocar os sinos.” Era de noite, os cristãos juntaram-se para fugir em carros, autocarros, umas poucas dezenas ficaram para trás, por não terem acordado ou sido localizadas. “Ainda falámos com eles durante dois meses mas agora não sabemos o que lhes aconteceu, se estão vivos ou mortos.” O fluxo de refugiados dividiu-se pelas cidades do Curdistão, Duhok, a norte, Suleymaniah, a sul, Erbil a leste.
Só nesta igreja, Mar Elia, são 118 famílias, ao todo 546 pessoas. “No começo eram 1600. Chegaram sem nada, dormiram no jardim, a igreja começou a distribuí-los por outros espaços.” Ficou cerca de um terço. “A ONU trouxe tendas, mas era demasiado quente, e havia recém-nascidos.” Há fotografias desses dias, aulas a serem dadas dentro de tendas. “Depois outras organizações trouxeram tendas à prova de água, e há dois meses chegaram os contentores.”
Este padre jovial não tem um passado muito diferente. “O meu pai era padre em Bagdad. Vivíamos numa parte da cidade que se tornou um bastião da Al-Qaeda, todos os cristãos tiveram de sair, o meu pai foi ameaçado de morte. Um dia, às quatro da manhã, arrumámos tudo e partimos.” Ele tinha 15 anos, ou seja, isto aconteceu em 2005. “Chorei. Não queria ir embora.” Veio directamente para o bairro cristão de Erbil. “Por isso sei o que é perder a casa, as memórias.”
No começo de Agosto de 2014, quando o “Estado Islâmico” avançou de Mossul em direcção a Erbil, o padre Daniel tinha levado estudantes a uma feira. “Comecei a ver toda a gente a falar ao telefone, a chorar, as crianças diziam, “o ‘Estado Islâmico’ vem aí!”. Porque é uma guerra psicológica, toda a gente tinha visto aquelas imagens dos decapitados, sabiam que as mulheres seriam levadas como escravas, que haveria amputações. Eles conseguiram aterrrorizar as pessoas, implantando medo nas nossas cabeças.” Esse é o grande combate, segundo o padre Daniel. “Tentar que esta geração de refugiados não seja violenta. A nossa mensagem para o ‘Estado Islâmico’ é não usarmos violência, responder tomando conta do nosso país, tirando boas notas na escola, construindo um futuro. Porque a nossa identidade de cristãos está aqui há milénios, e o que eles querem é que a gente vá embora, tirar-nos a identidade. Éramos um milhão e meio de cristãos no tempo de Saddam, hoje somos talvez 300 mil os que não emigrámos.”
Muitos dos quais agora em tendas ou contentores, e sem saberem até quando.
Morte, conversão ou taxa
Esta é uma igreja caldeia. Os caldeus são um ramo da Igreja Católica predominante no Iraque, têm um Patriarca que obedece ao Papa. Quando o “Estado Islâmico” conquista um lugar, minorias de outras religiões correm risco de morte. Na melhor das hipóteses, os jihadistas exigem conversão ou o pagamento de uma taxa. Foi o que aconteceu na tomada de Mossul, onde morava Majida, uma mãe de cinco filhas e um filho que agora mora num destes contentores. Refugiada em duas etapas, portanto, primeiro de Mossul para Qaraqosh, depois de Qaraqosh para Erbil.
Até chegar a ela, é preciso entrar pelo labirinto que foi crescendo no pátio da igreja, uma autêntica vila de contentores, cordas de roupa atadas a paus, fogões ao longo dos corredores, caixilhos com os autocolantes de fabrico, plásticos a dizer UNHCR (a agência da ONU para os refugiados). A esta hora, fim da tarde, a sala de música está lotada de alunos com orgãos eléctricos, alaúdes e uma freira ao comando; noutro contentor, uma roda de adolescentes aprende viola; noutro ainda, uns 15 computadores, crianças e adolescentes; e os contentores do infantário divididos em quatro cores, tudo o que é amarelo, azul, vermelho, verde, mais um mapa-mundi ao fundo. Aos oito anos, a filha mais nova de Majida ainda teria idade para lá estar, enquanto a mais velha está nos 24. De resto, qualquer uma delas poderia ser transformada em escrava sexual no sistema imperialista do “Estado Islâmico”.
Majida achava-se sozinha com as filhas, em Mossul quando lhe telefonaram a avisar que fugisse. “Cobri-lhes a cara com lenços e saímos”, conta ela, sentada numa das camas do contentor. Era ao começo da tarde, andaram cinco horas até Qaraqosh. O marido entretanto juntou-se-lhes. Mas como tinham deixado os documentos para trás, ao fim de dois dias marido e mulher voltaram a Mossul, atravessando checkpoints já controlados pelo “Estado Islâmico”. “Alguns [dos jihadistas] falavam uma língua estranha, e alguns tinham a cara tapada”, conta ela.
Em Mossul, junto a sua casa, um homem numa mesquita pedia ao microfone que não tocassem nos cristãos. Contaram-lhe que “alguém roubara um gerador e tivera a mão cortada”. Soube que “os cristãos que não se convertessem tinham de pagar 500 dólares por mês”. Viu “mulheres forçadas a pôr panos pretos na cara”. Passou “carros militares abandonados, e fardas abandonadas”, despojos das tropas iraquianas.
Metrópole de um milhão e meio de pessoas, Mossul caiu assim em quatro dias: de um lado mil e tal jihadistas dispostos a morrer, do outro muitos milhares de soldados iraquianos desmotivados, prontos a desertar ou integrar o inimigo. Além disso, o “Estado Islâmico” contou com cumplicidade de populações árabes sunitas que há anos se sentem maltratadas pelo governo xiita de Bagdad, visto como um resultado da ocupação americana. E, além dessa cumplicidade, conta com armas e munições fornecidas por europeus e americanos a rebeldes sírios que já eram ou se tornaram jihadistas.
Em suma, para onde o testemunho de Majida aponta, cruzado com muitos que o PÚBLICO ouviu ao longo de dez dias, é para uma espécie de concentrado dos erros cometidos pelos governos locais e pelas potências externas, da Arábia Saudita ao Irão, dos Estados Unidos à Russia, da Turquia ao Paquistão. E eis o “Estado Islâmico”.
Mas quando a repórter lhe pergunta de onde acha ela que vem o “Estado Islâmico”, a resposta individual de Majida é menos abrangente, reflectindo só mal-estar em relação aos americanos. Um mal-estar que é muito mais dos refugiados vindos de terras não curdas, como estes, que dos curdos, geralmente simpatizantes da América. “Foi a América que inventou o’Estado Islâmico’, é um jogo político”, diz ela, desafiadora: “Como é que Mossul foi invadido assim?”
A recaptura de Mossul poderá passar por uma improvável coligação que junte no mesmo esforço americanos, europeus, iranianos, curdos, exército iraquiano, ou seja, velhos inimigos. Seja como for, ainda que o “Estado Islâmico” perdesse a cidade, Majida diz que não pensa voltar. “Não tenho confiança nos vizinhos”, explica ela, referindo-se aos árabes sunitas maioritários na cidade. Conhecidos seus que lá ficaram dizem que as casas dos cristãos foram tomadas. Portanto, não há para onde voltar em Mossul. Talvez Qaraqosh, lugar de tradição cristã, se isso voltar a ser possível. “Não temos planos”, atalha Majida. “Vivemos nestes contentores.” Dois, porque são uma família de oito.
Domingo na revista 2: Escavar a História nas barbas do “Estado Islâmico”