Coches, corporações e má política
O novo Museu dos Coches aí está, celebrado por cortesãos, um pouco à laia de órfão enjeitado.
Consummatum est. O novo Museu dos Coches aí está, celebrado por cortesãos, um pouco à laia de órfão enjeitado, num ambiente de lenda ou fábula que faria as delícias de um qualquer corvo taberneiro, segundo a narrativa em que José Cardoso Pires dá conta de alguma da mais castiça atmosfera lisboeta. Raquel Henriques da Silva (R.H.S.), em oportuno texto de opinião neste jornal no dia mesmo da inauguração (22.5.2015), disse praticamente tudo o que importava assinalar naquela data. Observou nomeadamente como nesta ocorrência se junta o pior da política com o pior das corporações, sobrelevando aqui a dos arquitectos, sempre dispostos a usar metáforas eloquentes, a falar em construção de cidade e cidadania, mas afinal sobretudo precisados de clientes e por isso solícitos de todos os poderes. Nem todos os arquitectos, é certo, mas neste caso alguns dos mais celebrados pelo centrão dos interesses, incluindo responsáveis da respectiva Ordem profissional, pelo menos na fase inicial do processo.
A publicação de um livro um tanto emproado, juntando arquitectos e políticos de turno, sem esquecer o empreiteiro da obra, confirma o universo ficcional em que tudo se move neste processo (cf. Museu Nacional dos Coches. Lugar, projeto e obra, ed. Uzina Books). Não se comete aqui o erro de encher quase uma centena e meia de páginas com fotografias mais ou menos impactantes, belas por vezes, mas dedicadas apenas a formas exteriores e espaços interiores vazios — como acontece regularmente em revistas prestigiadas (cf. Arquitectura Ibérica, n.º 31, que consagra um extenso dossiê temático aos museus… sem incluir uma única imagem de espaços preenchidos por colecções). Não, aqui faz-se algum uso de coches e até de quem lhes confere cuidados de última hora — cosméticos apenas, claro, porque o estado de conservação deplorável de parte importante da colecção, esse bem pode ficar à espera… Mas, percorridos textos e imagens, o que mais ressalta é essa sensação profunda de que o conteúdo possui dimensão meramente decorativa e, no fundo, se mantém a estranha esquizofrenia de uma arquitectura que se compraz em evidenciar volumes, procurando depois justificações funcionais pseudo-elegantes… Na ocorrência, a ideia genial de que a frieza da garagem dialoga com as colecções… pela ausência de diálogo, ou seja, pela invocação do contraste — o que é particularmente sublinhado pela falta de projecto de comunicação, senão de projecto de museografia (de facto, a directora esteve quase que ausente de todo este enredo e quando surgiu foi para assinalar que também tinha sido mobilizada para ajudar a cobrar bilhetes… cf. Diário de Notícias de 24.5.2015, sob o título Lindíssimo mamarracho. O Museu dos Coches já abriu).
O foco posto anteriormente na corporação dos arquitectos não deve confundir-se nem com o apreço pelo ofício, nem muito menos com a admiração por muitos dos seus oficiais. Como em todas as profissões, existem pessoas que não apenas falam muito de, como efectivamente praticam a cidadania. Foi o caso de Nuno Teotónio Pereira, que desde a primeira hora se juntou aos opositores da opção política da construção de um novo Museu dos Coches e, até, aos que denunciaram o processo de convite sem concurso publico e criticaram o projecto adoptado. Não nos deixemos, pois, submergir em guerras corporativas intestinas, perpetuando relações de amor-ódio que, todavia, sempre existiram e existirão, podendo ser saudáveis, se assumidas às claras.
Não, o cerne da questão não está no projecto de arquitectura. Está em tudo o que o precedeu, acompanhou e continuará depois da sua consumação. R.H.S. contribuiu no seu texto com mais alguns dados sobre esta autêntica saga, esclarecendo como se passou da ideia da ocupação do espaço pela Escola da Arte Equestre, com pequena extensão do Museu dos Coches, para a avassalante situação actual. Depois foi uma sucessão de autismos, e mesmo autoritarismos, por parte de políticos seduzidos pelos fumos dos capitais europeus e sedentos de grandes obras públicas — daquelas de que ninguém sentia a falta, a começar, no caso vertente, pelo presidente da Câmara Municipal de Lisboa e actual líder do Partido Socialista. Começou por dar-se de barato a inevitabilidade da destruição das preexistências do local, onde, em respeito da história, chegou a ser proposta a instalação de uma secção de viaturas mecanizadas da antiga Casa Real, gerida pelo Museu dos Coches, ocupando o restante espaço com uma nova centralidade de movida da arte urbana lisboeta. Ao longo de anos, não se atendeu ao grito unânime e imenso de associações e especialistas que disseram e dizem existirem outras prioridades na política museológica nacional. E haver, mesmo em Belém, outras necessidades, como as da gestão integrada e proactiva do riquíssimo parque patrimonial da zona ou, querendo fazer-se obra nova, a criação do Museu da Viagem (bem diferente de Museu dos Descobrimentos, sublinhe-se), que faz realmente falta. A tudo os políticos de turno fizeram orelhas moucas e agora têm, e temos todos, um verdadeiro elefante branco entre os braços. Mais de 3 milhões de euros anuais para manter portas abertas (ou 2,7 milhões como com curioso alívio pretende o actual secretário de Estado da Cultura), numa situação em que não surpreenderia continuar a haver mais visitantes às velhas instalações, porque em mais de 4/5 são turistas, orientados pelo critério da visita rápida em espaços encantatórios.
Poder-se-ia dizer, como com sentido de humor observou Marcelo Rebelo de Sousa num dos seus habituais comentários semanais, que tudo neste processo é exemplar de como em Portugal se geram projectos que reúnem o centrão político (desde Cavaco Silva primeiro-ministro até Cavaco Silva Presidente da República, com intenso contributo de José Sócrates pelo meio), sem que verdadeiramente ninguém lhes sinta a falta. Ninguém, não. Prova disso foi o interessante texto de opinião de Luís Patrão, secretário nacional do PS e companheiro de estrada de José Sócrates desde a juventude na Covilhã, que no rescaldo da inauguração saudava efusivamente este novo museu (PÚBLICO, 24.5.2015) e afirmava ser a oposição ao mesmo fruto de uma “ideologia da modéstia”. Ora, como foi observado em redes sociais dos museus, qualquer procura em dicionário revelará qual o contrário de modéstia: pretensão, pavonada, opulência, impostura, inchação, pomposidade, aparato, extravagância, excesso, indecência, imoralidade, desfaçatez, impudicícia, etc. Será esta a ideologia favorecida por Luís Patrão, mesmo depois de tudo o que hoje se sabe sobre o consulado socratista?
Enfim, tal como R.H.S., nós próprios já tínhamos em Janeiro antecipado os contornos eleitoralistas desta inauguração (cf. PÚBLICO, 23.1.2015) e tudo leva a crer que novos episódios sucederão nos próximos tempos, alguns já antecipados pelo actual secretário de Estado da Cultura, ao reduzir seraficamente a “somente” cerca de 500 mil euros o custo efectivo do novo museu, assim retirando premência à proposta salvífica que sabe estar a ser preparada para os lados do CCB. Relativizemos, pois, estes fogachos e aguardemos pelo novo ciclo político. Até lá, continuaremos a viver virtualmente por mais algum tempo. Para já e em latim, tal como começámos, é caso para dizer ite, missa est.
Arqueólogo