O lugar sagrado dos yazidis sobrevive à guerra do “Estado Islâmico”
O mundo começou aqui, neste ponto do Norte do Iraque, acreditam eles. Visita ao santuário dos yazidis, antiquíssima minoria que o “Estado Islâmico” massacrou no Verão passado, matando milhares, escravizando outros milhares.
O mundo não estava muito informado sobre esse começo, sobre os yazidis em geral, até Agosto passado, quando o “Estado Islâmico” capturou um vale onde os ancestrais dos yazidis já viviam desde muito antes do islão. De súbito, a tragédia saltou para as manchetes: 50 mil yazidis estavam em fuga pelas montanhas, sem água nem comida, encurralados pelo “Estado Islâmico”, que já matara, violara ou sequestrara os que tinham ficado para trás. Um povo que os espectadores internacionais nem sabiam que existia tornou-se assim o símbolo colectivo da crueldade jihadista, na sua expansão imperial. Obama e aliados ordenaram ataques aéreos contra o Califado e largada de alimentos sobre as montanhas. Combatentes curdos da Síria organizaram-se para levar os yazidis através da fronteira, e de novo para o Iraque, em terra mais segura. Mas tudo isto não evitou que, segundo estimativas da ONU, entre 5000 a 7000 yazidis tenham morrido e outros 5000 sido sequestrados, sobretudo mulheres, como escravas domésticas e sexuais, e crianças, como futuros combatentes e bombistas suicidas. Há relatos de adolescentes violadas no início da invasão que conseguiram voltar às famílias e acabaram por se suicidar. Uma mãe contou que duas filhas suas, incapazes de viver com o que lhes acontecera, pediram à família que as matasse; como ninguém o fez, atiraram-se de um penhasco.
A região onde o massacre se deu chama-se Sinjar e fica a 175 quilómetros de Lalish, o santuário para onde estamos a ir. Estas duas regiões são os grandes centros yazidis no Iraque. Também há uma presença histórica de yazidis na Arménia, na Geórgia, na Síria, e na Turquia, de onde ao longo das últimas décadas dezenas de milhares emigraram para a Europa, sobretudo para a Alemanha.
Na tradição local, o Sinjar é onde a Arca de Noé pousou, depois do Dilúvio. Na tradição yazidi, Lalish é onde o mundo nasceu. Belo destino para uma tarde de Maio.
“Não são humanos”
Fácil esquecer que Mossul, a maior cidade iraquiana controlada pelo “Estado Islâmico”, fica apenas a 60 quilómetros daqui. Mas na subida para o santuário há um checkpoint igual a dezenas de outros pelo Curdistão Iraquiano, apenas sem trânsito, tranquilo. Depois, as fardas ficam para trás, e os cones que são a imagem da arquitectura yazidi aparecem ao longe, com raios a toda a volta simbolizando o sol, ou seja, Deus.
Monoteísmo sincrético oriundo da antiga Mesopotâmia, o yazidismo foi incorporando elementos pagãos, judeus, cristãos, zoroastras, islâmicos, ao longo dos séculos. O culto que daqui resulta, já veremos, é aberto a qualquer forasteiro, mas nem por isso menos enigmático.
A ONU reconhece os yazidis como um grupo étnico próprio, de língua curda. Os yazidis consideram-se os curdos originais, aqueles que resistiram a converter-se ao islão. E os curdos, esmagadoramente sunitas, vêem os yazidis como uma minoria religiosa curda. Para a coesão do grupo através do tempo, tão imune a um contexto muçulmano cada vez mais incisivo, alguns códigos foram essenciais: os yazidis só casam entre si; e ninguém se torna yazidi. Nem proselitismo nem conversão.
O chão sagrado de Lalish começa logo na rampa onde os carros estacionam, primeiro lugar onde vemos gente descalça. E, à medida que subimos, descem homens de keffiyeh vermelho na cabeça e uma vassoura de ramos na mão. Quando alcançamos o primeiro lance de escadas, do lado esquerdo da rampa, o quadro fica completo: homens em vários degraus, a varrerem energicamente a pedra, todos com aquele kaffieh, que não é tão comum entre os curdos, e aquela vassoura de ramos verdes: nada artificial deve tocar o chão de Lalish, e a estes homens cabe mantê-lo limpo.
O lance de escadas repete-se adiante, de um lado e do outro, porque o santuário se desdobra em múltiplas plataformas e tarraços em volta do templo principal. Nos terraços há umas casinhas, equivalentes a capelas, com pessoas sentada à porta, outras a ir e vir. Mas nada se compara com o frenesim que vai no pátio principal: dezenas de homens a varrerem, a varrerem.
“Acabou de haver uma festa”, explica um rapaz de cara dura, Hasso, 21 anos. Veio do Sinjar, como tanta gente em volta. Lalish é só o santuário, aqui no alto, mas lá em baixo está a cidade de Shekhan que alberga a população yazidi, agora reforçada com os refugiados. “Os jihadistas [que tomaram o Sinjar] não eram muitos mas as tribos árabes cooperaram com eles”, conta Hasso. Também ele fugiu para a montanha, e da montanha para a fronteira síria, e de novo para o Iraque. Quando a repórter lhe pergunta o que acha que é o “Estado Islâmico”, ele responde: “O demónio”. E isso é exactamente o que o “Estado Islâmico” acha que os yazidis são, adoradores de satã.
A associação dos yazidis ao culto de satã não é nova. Há uma explicação concreta para isto: é que Deus, segundo os yazidis, criou sete anjos, ou mistérios, o mais importante dos quais, seu braço direito, é o pavão Melek Taus, também chamado Shaytan, que no Corão é o nome de Satã.
Uma rapariga aproxima-se enquanto falamos no meio do pátio, jeans e cabeça descoberta, como muitas aqui. Chama-se Jiane, tem 20 anos, fala um pouco de inglês, quer falar. Não há assim tantos estrangeiros a visitar estas montanhas. Ela não é do Sinjar, mas daqui mesmo, e viu quando os refugiados chegaram “sem comida, sem nada”. É isso que quer contar, atropelando as palavras. E a sua própria definição de “Estado Islâmico”: “Em toda a minha vida, nunca pensei que houvesse algo assim. Não são humanos. São como animais.”
Quem também se junta, porque também ouviu inglês e fala um pouco, é Amin, 51 anos, que era empregado de um laboratório de patologia no Sinjar. “Não tivemos ajuda, não havia soldados [curdos], o ‘Estado Islâmico’ tomou aldeia a aldeia, e os nossos vizinhos árabes juntaram-se a eles”, conta.
Uma queixa que a repórter ouvirá tanto a yazidis como a cristãos (ver reportagem de amanhã), uns como outros vindos de zonas árabes sunitas que o governo xiita de Bagdad foi hostilizando, e assim se tornaram permeáveis aos jihadistas. O conflito entre sunitas e xiitas que a ocupação americana de 2003 fez explodir criou um contexto favorável a que, 12 anos depois, por pragmatismo ou falta de alternativa, populações sunitas fartas de Bagdad não se oponham ao “Estado Islâmico”.
Amin quer resumir tudo o que aconteceu no Sinjar, como os jihadistas “insistiram que a gente se convertesse”, ameaçando-os de morte; e tira o telemóvel do bolso para mostrar a fotografia antiga de uma das raparigas que se suicidou. “Enforcou-se para não ser obrigada a casar com um deles.” Porque os jihadistas encenam casamentos sumários antes de violarem as raparigas, e as passarem a outro jihadista.
Tecidos, água, azeite
Neste pátio há uma primeira entrada para o templo, a partir da qual todos os sapatos devem ficar. O degrau de pedra que marca a passagem é beijado pelos crentes, e portanto não pode ser pisado, temos de passar por cima. Então, um corredor leva a uma escada que desce para outro pátio, mais tranquilo e limpo. O poente atravessa a copa das árvores, mil sombras balançam na parede de pedra, ao canto da qual está a derradeira entrada para o templo. É um pequeno arco, com uma serpente negra de pedra em relevo do lado direito, mais alta do que um homem.
De novo, o degrau da passagem não deve ser pisado, é beijado. Cá fora, homens sentam-se contra a parede, num abandono contemplativo. Lá dentro, uma semioscuridade de arcadas sem janelas. Toda a luz vem da entrada, e o primeiro clarão revela uma misteriosa instalação de tecidos atados a colunas de pedra. São cetins de cores vibrantes, com múltiplos nós. “Sempre que a pessoa faz um desejo, faz um nó”, explica um dos yazidis. “São as pessoas que oferecem os tecidos ao templo.” Lavam-nos na água sagrada que nasce em Lalish, prendem-nos à pedra, dão a volta à coluna, beijam o tecido, atam um nó. A parte de andar à volta lembra a Kaba, o cubo negro de Meca a que os muçumanos dão voltas, e talvez o cetim colorido lembre procissões cristãs. Ou talvez tudo isso seja apenas o forasteiro buscando onde se situar, porque nunca viu nada assim.
Não há altar, nem imagens, nem sacerdotes, nem um centro. Descalças, num alvoroço alegre, famílias de yazidis atravessam a sala das colunas cheias de tecidos e passam a um átrio onde fica a entrada de uma gruta, tão baixinha que é preciso curvar o corpo todo para entrar. Cheira a pedra molhada, e lá das profundezas vem o som de água entre gritos jubilosos. “É a nascente sagrada”, explica Kovan, 26 anos, um dos guardiões da porta do templo. E o patriarca de Lalish, onde está? “Baba Sheikh vive lá em baixo, vem aqui nas festas.”
Uma família cheia de crianças irrompe pelo átrio e vai desaparecendo pela gruta. Kovan convida a repórter a descer também. É escuro, húmido e escorregadio, pelo menos para quem nunca aqui andou descalço. Até que as paredes estreitas se abrem numa cova larga, com uma espécie de cratera no chão, cheia de água. Acocorados a toda a volta, yazidis de todas as idades chapinham, molham os pés, espalham água, riem às gargalhadas.
Este é o destino de todo o yazidi, onde cada um deve vir purificar-se pelo menos uma vez na vida, como os muçulmanos vão a Meca mas com a substancial diferença de que, aqui, um não-yazidi também pode entrar. Qualquer forasteiro, desde que descalço.
Quando voltamos à superfície, algumas raparigas pedem para tirar uma fotografia com a repórter. Têm a cabeça descoberta, algumas usam rabo-de-cavalo, quase todas jeans tão justos como as adolescentes em Lisboa agora. E, entre irmãos mais novos, e um tio, prosseguem o percurso dentro do templo, para a sala seguinte, de abóbada muito alta, onde está um túmulo coberto por mais cetins cheios de nós. Eis a última morada de Adi Ibn Musafir, um sheikh do século XII, descendente do califa omeída, que nasceu no Líbano, junto aos belos templos de Baalbek e veio morrer aqui, depois de passar parte da vida em Bagdad. Os yazidis veneram-no como uma encarnação de Melek Taus, o pavão que é o braço direito de Deus.
Segundo o Génesis yazidi, Melek Taus foi a primeira criação divina, e Deus disse-lhe para não se curvar perante nada. Depois, quando os outros seis anjos ou mistérios já estavam criados, Deus criou Adão e pediu aos sete anjos que se curvassem perante ele. Melek recusou-se, tal como Deus lhe ensinara, até o dilema se resolver pela paz. Para os yazidis, Melek Taus simboliza a possibilidade de escolher entre bem e mal que todos os homens detêm, e escolheu o bem. De resto, os yazidis crêem que descendem só de Adão, e que os sete anjos vão reencarnando em humanos. Têm como dia santo a quarta-feira, mas descansam ao sábado. Rezam pelo menos ao amanhecer e ao anoitecer. O ano novo celebra-se na primeira quarta-feira de Abril. As crianças são baptizadas, frequentemente circuncidadas, e todo o patriarca deve ser casado. Observam-se alguns tabus alimentares, como comer alface (porque, especulam alguns pesquisadores, a palavra “alface” em árabe soa aos yazidis semelhante a “diabo”).
A sala seguinte é do azeite, sagrado por dar a luz. Tonéis à esquerda, ânforas à direita, e os yazidis no meio, concentrados num jogo: atirar um cetim vermelho até um nicho na parede por três vezes sem que ele caia. Uma espécie de basquetebol divino. E toda esta família de 16 pessoas participa, fazendo claque para o mais velho, Kifar, não falhar o alvo. Falha a terceira mas não perde o sorriso. Taxista de profissão, refugiado como toda a família. “A nossa cidade foi capturada pelo ‘Estado Islâmico’”. As raparigas dizem: “São monstros, diabos.” Tiram um pouco do azeite dos tonéis para levar. Saindo de volta ao pátio, um yazidi acende uma taça de azeite e vai com a chama, através das crianças, e das oliveiras. Estão em Lalish, e isso é a paz contra a guerra, ali a 60 quilómetros.
— Leia mais no sábado: Cristãos desde sempre no Iraque, em fuga ao “Estado Islâmico”;
e no domingo, na Revista 2: Escavar a História nas barbas do “Estado Islâmico”.