Sunset: apartamento com vista para o autoritarismo

Lançado na quinta-feira passada, “Sunset” é para todos aqueles que perguntam a si próprios, como a protagonista do novo jogo da Tale of Tales, esta questão pertinente: “quem pode pensar em jogar jogos num tempo como este?”

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Desde que foi criada, em 2003, por Auriea Harvey e Michaël Samyn que a Tale of Tales é o mais consequente programa artístico dos videojogos. Em paralelo à produção prolífica de jogos reflexivos, a redacção de manifestos artísticos tem sido uma actividade relevante do estúdio independente belga na última década. São documentos explicitamente vanguardistas, polarizadores, contra o “conservadorismo” dos “jogos comerciais”, quase plenário nos usos da “mais extraordinária tecnologia criativa desde o óleo sobre tela”.

 

No campo dos videojogos, apesar das múltiplas reivindicações de estatuto artístico, ainda recai sobre a Tale of Tales a espantosa desconfiança de produzir objectos artísticos, em vez de “jogos”. Provavelmente, é a própria categoria “jogo” que é hoje mais equívoca do que efectiva para referir um espectro bastante largo de produtos digitais que vai do desporto “electrónico”, competitivo e com propósitos de massificação, à experimentação vanguardista com um meio interactivo. Será mérito da Tale of Tales que interrogações como esta sejam hoje temas legítimos de debate.

 

O novo jogo da Tale of Tales, “Sunset”, reconstitui um “duplex” de luxo dos anos 70, com vista panorâmica para o centro da cidade ficcional de San Bavón, capital da Anchúria, uma “república das bananas” sul-americana, na tradição de “Cabbages and Kings” de O. Henry. É através dos grandes envidraçados deste espaço, decorado com arte “moderna” e objectos de design, que Angela Burnes, uma imigrante e activista “afro-americana” que podia ser Angela Davis, acompanha as exibições militares do regime autoritário do General Miraflores e as operações dos rebeldes Yaguara, durante as tarefas domésticas que tem para desempenhar.

 

Em parte, é um jogo epistolar, porquanto a influência da empregada doméstica nos desenvolvimentos políticos e afectivos de “Sunset” se exerça sobretudo através de trocas de bilhetes com o inquilino, o galerista Gabriel Ortega, fisicamente ausente, que as evocações religiosas no jogo, propondo a homologia simbólica com o arcanjo homónimo, sugerem ser o “mensageiro” que anuncia a “Boa Nova”. No apartamento, Angela encontrará documentos confidenciais criptografados e será convidada a interpretar as mensagens, também crípticas, deixadas por Gabriel através das páginas de um livro ilustrado de arte que fica aberto a cada visita dela. Os envelopes com a correspondência recebida por Gabriel permitem a Angela especular, a partir dessa informação fragmentária, sobre a existência do inquilino.

 

Na primeiras interacções com objectos, Angela comenta com ironia a fealdade e o “mercantilismo” da arte contemporânea que decora o apartamento. A chegada constante de novos objectos artísticos, onde se incluem também peças de escultura pré-colombiana e arte figurativa ocidental, intermedeia a comunicação entre os dois personagens, aprofundando-a e aproximando-os. O jogo reitera, nestes comentários subtis ao campo artístico, o programa mais geral da Tale of Tales de inflexão em relação às tradições modernistas, consubstanciada num regresso ao “belo” nas artes visuais e, com este, à capacidade de a arte significar cultural, social e politicamente.

 

“Sunset” é um elogio do poder e da perenidade da “mensagem” contida nos objectos de arte, nos livros e na música com essa capacidade de significação. Para além da conspiração contra a ditadura que lhe serve de fundo, participamos numa operação de resgate de objectos artísticos, num contexto de urgência em que a guerra civil destrói - ou ameaça destruir - museus e outros equipamentos culturais que o regime autoritário já encerrara. “Sunset” exprime angústias relativas à contemporaneidade, principalmente em relação às políticas de “racionalização” da cultura que correm a par de tentações autoritárias nas democracias ocidentais. Como tal, é pertinente perguntar-se, como o faz Angela, “quem pode pensar em jogar jogos num tempo como este”, se não forem também significantes?

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