Jogos com fronteiras
Calhou-me ver um pedaço do Festival Eurovisão da Canção e confirmar após anos de esquecimento que, na falta de qualidade musical, a geopolítica continua a ser a grande chave para entender as pontuações dos júris nacionais. A Grécia dá dez pontos a Chipre, que devolve oito pontos à Grécia. As rivalidades contam mais ainda: o Azerbaijão nunca daria pontos à Arménia e a Arménia dá sempre zero ao Azerbaijão, mas a Geórgia — que tem de manter boas relações com ambos — dá dez pontos a uma medonha canção azeri e doze pontos a uma música arménia que, talvez felizmente, não ouvi.
O momento da noite foi a participação do júri russo. “Alô, Viena!”, disse um humorista a partir de Moscovo, “daqui fala a Mãe Rússia”, introduzindo assim uma reveladora dimensão familiar. “Mãe Rússia” (Rossiya Matiushka) é a expressão com que os patriotas russos se referem ao seu país, mas usada naquele contexto transportava qualquer coisa de inconveniente, como se a Rússia fosse também uma mãe impositiva e extravasante dos restantes europeus. Quando chegou aos desejados doze pontos, o jurado russo fez uma pausa para anunciar: “a Rússia dá os doze pontos... à Rússia!”. Breve momento de desconforto. Passado meio segundo, o jurado repõe a ordem anunciando a pontuação correta, entre os risos dele e a surpresa dos outros.
De repente já não era a Mãe Rússia que estava ali, mas antes a figura típica de um primo, aquele primo que diz as piadas foleiras nas festas de família. Ou talvez não: o humorista que fazia de jurado, como todos os bons humoristas, soube jogar com o incómodo. Se os outros europeus esperam que a Rússia não se saiba comportar, que a sua liderança seja autocentrada, e que só os seus interesses contem, nada melhor do que jogar com as expectativas anunciando que a Rússia dá pontuação máxima a si mesma, para depois — no momento de descompressão — nos apanhar em flagrante preconceito.
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Se a Europa pode ser lida como família, as famílias estão em mudança. O concurso do ano passado foi ganho por Conchita Wurst, a cantora barbuda da Áustria, e a família adaptou-se para a acolher. Este ano, o concurso realizou-se no mesmo dia em que se soube que a catolicíssima Irlanda, que há poucos anos não admitia sequer o divórcio para heterossexuais, tinha aprovado em referendo o casamento para homossexuais. Há primos do outro lado do mundo: ajudando à confusão geo-onomástica, a Áustria recebeu a Austrália. Há muçulmanos da Albânia e da Bósnia (mas os árabes continuam de fora: para quando a Palestina?). Israel já participa há muito tempo e Azerbaijão e Chipre também cantam, estando fora do continente. Como nas reuniões de família, parte da diversão está na falta de gosto. Como nas reuniões de família, há reacionários, libertários e libertinos.
Isto não é novo. Há cem anos esperou-se que por quase todos os imperadores serem primos a Europa pudesse ter uma paz rápida. Não sucedeu. Agora que já não há imperadores, seremos talvez ainda uma família quezilenta, barulhenta e desentendida, com duas guerras às portas de casa. Não há grandes teorias da História que se possam tirar daqui. Saímos da Eurovisão com a mesma conclusão que se tirou dos encontros de família: lá passou mais um ano.