O silêncio do inferno
Em Daqui Não Sais Viva, o jornalista João Bonifácio escreve sobre um caso “exemplar” de violência doméstica em Portugal. Um livro inovador no género, que corre riscos em nome de uma causa
No dia 17 de Abril de 2014, na aldeia de Valongo dos Azeites, no Douro, Manuel Baltazar, conhecido por Palito, disparou sobre quatro mulheres. Duas morreram e duas sobreviveram. Num meio inóspito, conseguiu depois esconder-se da polícia durante 34 dias. “Não foi apenas um crime brutal, foi um crime pejado de bizarrias: Palito desapareceu então serra acima, andou trinta e quatro dias a monte antes de ser apanhado à porta de casa, e nesse período surgiu quatro vezes aos populares”, escreve o jornalista João Bonifácio na introdução de Daqui Não Sais Viva, um livro que nasce da tentativa de perceber o contexto de um dos mais “rocambolescos” crimes de violência doméstica que ocorreram nos último anos em Portugal.
É um livro sobre silêncios. Singulares e colectivos. Os da vergonha e os do meio onde ela se legitima. “O que encontrei não foi apenas um caso de violência doméstica, mas toda uma arquitectura moral e mental que define o modus vivendi de uma terra e que permite a perpetuação do abuso: Trevões [terra natal de Manuel Baltazar] não foi só complacente com a violência doméstica de Palito ao longo dos anos, como também o protegeu durante a fuga”, continua o jornalista que chegou ao Douro, ainda Manuel Baltazar andava fugido, à procura da resposta para uma pergunta: porquê?
É importante sublinhar o contexto em que a reportagem ocorre. A motivação do jornalista persegue a motivação do criminoso no que é um livro muito pessoal. Num momento em que os jornais não têm tempo nem dinheiro para investir em investigação, João Bonifácio foi, por conta própria, não à procura da notícia, como explica, mas de respostas a perguntas, e essas respostas não estavam garantidas por mais que ele se demorasse no Douro, como pode perceber quem ler o livro. Um risco de louvar. O outro foram as opções estilísticas que tomou.
Um dos alvos de Palito era a sua ex-mulher, Maria Angelina, vítima de maus tratos ao longo de um casamento de 29 anos. Em 2009, fugiu de casa e procurou a ajuda da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima. Conseguiu o divórcio litigioso dois anos depois, mas nunca se livrou da perseguição do ex-marido — entretanto acusado de crimes de violência e condenado a quatro anos de prisão com pena suspensa e uso de pulseira electrónica — que naquele dia de Abril, pelas quatro da tarde, disparou sobre ela, a filha, a mãe e a tia. As duas últimas morreram. “Meia centena de vezes por ano, a cena repete-se: um homem acorda de manhã, pega numa arma e mata a mulher, ou ex-mulher, ou namorada, ou ex-namorada (…). O ano passado aconteceu por quarenta e seis vezes, das quais resultaram quarenta mulheres mortas…”
João Bonifácio chegou ao Douro quando Palito foi capturado e durante meses tentou ganhar a confiança de uma população que descreve como “desconfiada” do que lhe é estranho para ter elementos que permitissem perceber o que pode motivar o inferno a partir de um caso “exemplar”. Escreve o jornalista: “Nenhum outro espelha tão bem as condições que têm de se reunir para que a violência doméstica se mantenha anos a fio, e acabe (como acabou) em morte: o silêncio cúmplice de todos os que sabiam do abuso a que Maria Angelina era submetida e nunca falaram — sendo que a violência doméstica é, desde 2000, um crime público.”
Este carácter exemplar é o que leva João Bonifácio a insistir em perguntas a que ninguém parece disposto a responder com clareza. As respostas dúbias, ambíguas, as mentiras, os subterfúgios, um discurso em que vítima e agressor parecem ter significados muito vagos, papéis legitimados por uma comunidade sustentada em regras que andam num paralelo sem ponto de encontro com a lei, marcam este livro que, como o autor sublinha, não é uma reportagem, mas um livro de reportagem.
A reportagem onde se contam a história de Palito e a de Palito e Maria Angelina veio contada na edição do PÚBLICO de 1 de Fevereiro; o livro dessa reportagem sai agora num registo em que o jornalista não apenas conta essa história, mas expõe o método de investigação, as dúvidas que lhe surgiram, manifestando a sua posição pessoal e profissional sobre o que se lhe deparava, facto pouco comum no género em Portugal, uma vez que em nome de uma objectividade — sempre discutível no que tem de mais clínico ou asséptico — por vezes confundida com a necessidade de se anular do jornalista deixam de se revelar aspectos que podem enriquecer a história e dar-lhe substância. Essa opção por pessoalizar é um risco e João Bonifácio é experiente o suficiente para estar ciente dele. Como do de replicar sotaques ou a gíria local em discursos quase sempre esquivos. As vozes servem para sublinhar esse vazio, vincar as falas circulares, mas a história central perde-se por vezes como se perdem as vozes que a contam. Há frases que se destacam, palavras lapidares que surgem repetidas nos oito capítulos em que se divide o livro, e que são como ecos numa espiral. De violência, de cumplicidade, de silêncios, sempre. A pergunta poderia ser: como se traduz o silêncio que envolve tudo na reportagem em que tem de se tentar contar tudo? “As condições determinam o modo de olhar o mundo”, nota o jornalista. “Trevões é uma relutância em dizer a verdade”, sublinha; “por vezes parece que as pessoas ali são uma variável mínima na equação da Natureza”, descreve ainda, salientando a solidão e o abandono de uma população envelhecida, marcada pela emigração e pela falta de escolha.
As vidas de Manuel Baltazar e Maria Angelina são reconstituídas segundo as vozes dissonantes e cheias de hesitação e equívocos de vizinhos e familiares, num puzzle intrincado em que surgem dados da investigação e dos processos que existiam contra Palito. Há ainda o recurso a um psiquiatra e a um GNR que ajudam a interpretar factos e a contextualizar dados soltos, e a voz do jornalista, narrador activo, a interpelar o leitor e a acrescentar ao livro notas pessoais. Pedia-se, no entanto, mais contenção para que este fosse um óptimo exemplo de um livro feito na tradição do jornalismo anglo-saxónico. É que nessa exposição, a história central — a do caso Palito enquanto “exemplar” de um crime tão violento quanto silenciado e recorrente em Portugal — perde a eficácia que conseguiu na reportagem publicada no jornal.