Há mais de três milhões de anos, antes dos humanos, já se fabricavam ferramentas

A tecnologia apareceu bastante mais cedo do que se pensava – cerca de 700 mil anos – entre os nossos antepassados. Era a tecnologia da pedra. Umas eram usadas como se encontravam na natureza, outras já eram lascadas com outras pedras.

Fotogaleria
Instrumento lítico desenterrado no sítio arqueológico Lomekwi 3, no Norte do Quénia MPK-WTAP
Fotogaleria
Os investigadores Sonia Harmand e Jason Lewis a examinarem as ferramentas de pedra MPK-WTAP
Fotogaleria
Sonia Harmand mostra outra das ferramentas líticas MPK-WTAP
Fotogaleria
Ferramentas: as deles e as nossas MPK-WTAP
Fotogaleria
Vista geral do local da escavação, no Quénia MPK-WTAP

Num breve apanhado, o artigo na Nature enumera as ferramentas mais antigas conhecidas até agora, todas de humanos. Até ao momento, o recorde de antiguidade pertencia a ferramentas de Gona, na Etiópia, com cerca de 2,6 milhões de anos. Também na Etiópia (em Hadar e Omo) e no Quénia (em Lokalalei) se tinham encontrado ferramentas com 2,3 milhões de anos. “Estes artefactos”, diz o artigo, “demonstram que esses hominíneos que sabiam talhar a pedra já tinham capacidades consideráveis de planeamento, destreza manual e selecção de materiais”.

Até agora, considerava-se também que as espécies de hominíneos – os nossos antepassados depois da separação do ramo dos chimpanzés, há cerca de oito milhões de anos – existentes antes dos humanos não tinham tal capacidade de talhe da pedra. “A visão convencional dos estudos sobre evolução humana tem assumido que a origem da produção de ferramentas de pedra com arestas afiadas pelos hominíneos estava ligada à emergência do género Homo, como resposta a alterações climáticas e à disseminação da vegetação da savana”, contextualiza o artigo científico. “Partia-se da premissa que só a nossa linhagem deu o salto cognitivo que lhe permitiu bater pedras umas nas outras, para tirar lascas afiadas, e que isso esteve na origem do nosso sucesso evolutivo.”

Esta visão começou por ser construída com a descoberta de instrumentos líticos no desfiladeiro de Olduvai, na Tanzânia, pelo famoso paleoantropólogo Louis Leakey, na década de 1930. Essa tecnologia, ou cultura, foi designada por olduvaiense. Os instrumentos de tipo olduvaiense eram rudimentares: fracturava-se um bloco de pedra (o núcleo) com outra pedra (o percutor) e daí saíam as lascas. Tanto as lascas como o núcleo, com arestas cortantes, eram usados como ferramentas.

Décadas depois, além de mais instrumentos de pedra, descobriram-se fósseis de uma nova espécie dentro do género Homo, o que reforçou a ideia de que os primeiros fabricantes de ferramentas eram humanos: “Em 1964, no desfiladeiro de Olduvai, descobriram-se fósseis que pareciam mais Homo do que australopitecíneos e que estavam associados à cultura das ferramentas mais antigas conhecidas, a olduvaiense. Por isso, [essas ferramentas] foram atribuídas à nova espécie: o Homo habilis, ou homem habilidoso”, explica o artigo.

Mas será que houve hominíneos antes dos humanos a fabricar ou, pelo menos, a usar ferramentas de pedras? Esta hipótese ganhou alguma força com a descoberta de ossos de animais com marcas, datados de há cerca de 3,4 milhões de anos. Tinham sido encontrados em 2009 em Dikika, na Etiópia, o mesmo sítio onde em 2006 já se tinha descoberto o fóssil de uma criança australopiteca, com cerca de três milhões de anos. Os investigadores defenderam então, num artigo em 2010 na revista Nature, que as marcas resultavam de cortes e de pancadas produzidos por ferramentas usadas por antepassados dos humanos, para extrair o tutano. Nem todos aceitaram essa ideia, como lembrou recentemente uma notícia no site da revista Science. Houve quem dissesse que, em vez de cortes e pancadas, os ossos foram pisados por outros humanos ou animais. E, assim, a autoria destas marcas manteve-se controversa, até porque não havia provas irrefutáveis: as próprias ferramentas.

Em 2011, entrou em campo a equipa de Sonia Harmand e Jason Lewis, da Universidade de Stony Brook, perto de Nova Iorque, nos Estados Unidos. Estavam em prospecção numa zona a oeste do lago Turkana, no Quénia, um dos berços da evolução humana. Dirigiam-se para o local onde, em 1998, perto do rio Lomekwi, no Norte do Quénia, tinha sido encontrado um crânio de um novo género de hominíneo contemporâneo dos australopitecos: o Kenyanthropus platyops, ou “homem do Quénia com face plana”, com cerca de 3,5 milhões de anos. Só que a equipa de Sonia Harmand e Jason Lewis enganou-se no caminho, relata ainda a notícia da Science, e acabou por ir parar a uma área desconhecida. Decidiu, na mesma, fazer uma prospecção rápida do local.

Tecnologia lomekwiense
Imediatamente, na superfície arenosa da zona, agora identificada como Lomekwi 3, os cientistas localizaram algo que não lhes deixou grandes dúvidas: instrumentos líticos. Fizeram logo uma pequena escavação. Nessa campanha e na escavação do ano seguinte, recuperaram um total de 149 ferramentas líticas, relatam no artigo que agora publicam na Nature.  

Entre 149 instrumentos estão, por exemplo, 35 lascas, 83 núcleos e sete percutores. A colecção inclui ainda bigornas, pedras onde se apoiavam os núcleos enquanto as lascas iam sendo talhadas. Com as lascas e núcleos de arestas afiadas, é fácil imaginarmos os seus fabricantes a cortar a carne de um animal acabado de caçar…

“As características tecnológicas das lascas e dos fragmentos de lascas são inequívocas e observadas repetidamente, o que demonstra que foram lascadas intencionalmente a partir dos núcleos”, conclui a equipa no artigo. “A tecnologia e a morfologia apresentadas pelos núcleos e pelas lascas de Lomekwi 3 não se encontram em nenhum padrão resultante de fracturas naturais de rochas. Todos apresentam características de produtos resultantes de lascamento.”

De certa maneira, já se estava à espera deste anúncio, depois de Sonia Harmand ter falado desta descoberta em Abril, na reunião anual da Sociedade de Paleoantropologia, em São Francisco, Estados Unidos. Agora, a publicação do artigo científico torna a descoberta oficial e apresenta-a, para discussão, a toda a comunidade científica.

O artigo diz ainda que as lascas e os núcleos de Lomekwi 3 são bastante maiores do que os instrumentos líticos de Gona, Hadar, Omo, Lokalalei e Olduvai. E que as bigornas e os percutores também são maiores e mais pesados do que os que vemos hoje a ser usados pelos chimpanzés de Bossou (aldeia da Guiné-Conacri), famosos por partirem nozes com pedras. Usam algumas como bigornas, pondo-lhes as nozes em cima, e outras como martelos, com que as partem.

Portanto, a equipa encontra nos achados de Lomekwi 3 uma mistura de ferramentas que resultam do talhe dos núcleos de pedra, por um lado, e ferramentas usadas em actividades de percussão, como os martelos e as bigornas dos chimpanzés de Bossou. “Os hominíneos de Lomekwi 3 (…) podem ter usado os artefactos de várias formas: como bigornas, núcleos para produzir lascas e/ou ferramentas de percussão”, conclui o artigo. E isto, segundo a equipa, torna esta colecção diferente das ferramentas de tipo olduvaiense. “Hipoteticamente, o conjunto de Lomekwi 3 pode representar uma fase tecnológica [de transição] entre as ferramentas usadas para actividades de percussão por um hominíneo mais antigo e as ferramentas talhadas mais tarde pelos fabricantes olduvaienses”, acrescenta-se.

Como designar então estas ferramentas com estas duas componentes? “Tem sido sugerido o termo ‘pré-olduvaiense’, caso se encontrassem ferramentas em depósitos [geológicos] mais antigos do que 2,6 milhões de anos [como as de Gona], especialmente se fossem diferentes em termos das capacidades de talhe presentes nas olduvaienses”, responde a equipa no artigo.

Indo mais longe, os cientistas deixam uma proposta: “Os conjuntos de Lomekwi 3 e olduvaienses mais antigos são suficientemente distintos, em termos de tecnologia e morfologia, e a sua amálgama iria mascarar mudanças comportamentais e cognitivas importantes dos hominíneos ocorridas ao longo de quase dois milhões de anos.” E, assim, defendem que a tecnologia da pedra de há 3,3 milhões de anos – surgida 700 mil anos mais cedo do que se pensava – seja designada por lomekwiense.

Árvore com muitos ramos
Mas esta antiguidade significa, ainda, que os autores destes instrumentos não podem ter sido humanos. Em Março, o anúncio da descoberta de uma mandíbula do género Homo com 2,8 milhões de anos, na Etiópia, recuava em 400 mil anos o aparecimento dos primeiros humanos – a grande “família” onde se inclui a nossa própria espécie (o Homo sapiens), surgida há apenas 200 mil anos. Mesmo sendo os humanos mais velhos na Terra, a sua antiguidade deixa-os de fora dos possíveis fabricantes das ferramentas de Lomekwi 3. Então, quem terá fabricado estas ferramentas pré-olduvaienses e pré-humanas?

Entre as hipóteses, a equipa põe o Kenyanthropus platyops, a única espécie de hominíneo conhecido que viveu na região Oeste do lago Turkana na altura do fabrico dos instrumentos. Outra hipótese é o Australopithecus afarensis, que também viveu nesses tempos, mas na Etiópia.

Para Susana Carvalho, primatóloga e arqueóloga portuguesa da Universidade de George Washington (EUA) e da Universidade do Algarve, esta descoberta não surgiu como uma grande surpresa. “Nos últimos dez anos, escrevi várias vezes que o uso de ferramentas na linhagem humana teria de ser mais antigo do que 2,6 milhões de anos. Para quem estuda o uso de ferramentas por chimpanzés, era óbvio que muitas espécies de hominíneos antes de surgir o género Homo seriam igualmente boas candidatas para fazer e usar ferramentas”, comenta a investigadora, que tem estudado os chimpanzés de Bossou e, igualmente, procurado vestígios de hominíneos precisamente perto do lago Turkana. “Em termos de requisitos cognitivos e anatómicos para o uso de ferramentas, já sabíamos que o Australopithecus (mais estudado do que Kenyanthropus) teria uma capacidade craniana e morfologia anatómica da mão que o tornava capaz de um uso, pelo menos rudimentar, de ferramentas.”

Ainda que expectável, a descoberta de instrumentos líticos de antepassados nossos com mais de três milhões de anos tem implicações consideráveis. “Marca um novo começo para a arqueologia e a evolução humana. As origens da tecnologia não estão relacionadas com o Homo nem com os contextos climáticos que foram descritos como impulsionadores do grande evento cultural que era o aparecimento da indústria olduvaiense”, considera Susana Carvalho. “Os arqueólogos têm de rever algumas matérias: a primeira é aceitar que a evolução cultural não é um processo linear, que foi desde o mais rudimentar (olduvaiense) até ao muito complexo que vemos hoje. A tecnologia, tal como a evolução humana, é uma árvore com muitos ramos, em todos pode haver cultura material, com diferenças e semelhanças.”

Novamente, dos chimpanzés, gorilas e orangotangos actuais chegam-nos pistas sobre a evolução da tecnologia nos ramos dessa enorme árvore. “No presente, temos três espécies de primatas não humanos, todos a usar ferramentas de pedra nos seus habitats naturais. Alguns destes primatas divergiram da nossa linha evolutiva há 35 milhões de anos. Do ponto de vista evolutivo, isto indica que a evolução da tecnologia também pode ser convergente – ou seja, ter surgido em vários momentos no tempo e no espaço, sem estar necessariamente ligada apenas aos antepassados humanos ou ao antepassado comum que humanos e chimpanzés tiveram.”

No futuro, a descoberta de mais sítios com ferramentas pré-olduvaienses, como Susana Carvalho pensa que acontecerá em breve, poderá trazer mais respostas para todas as interrogações científicas surgidas a partir deste novo marco na história da evolução humana.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários