Dos martelos de pedra dos chimpanzés às ferramentas humanas mais antigas
Pela primeira vez, fez-se uma análise digital da superfície das pedras com que os chimpanzés partem nozes. Investigadora portuguesa que faz parte da equipa explica como este trabalho estabelece uma ponte inédita para o estudo dos instrumentos líticos mais antigos, humanos e até pré-humanos.
Primeiro, houve o trabalho de campo. Foi feito pela investigadora portuguesa Susana Carvalho, agora na Universidade de George Washington (EUA), e que entre 2008 e 2009 passou 13 meses na estação de Bossou a recolher dados para a sua tese de doutoramento. Para o estudo actual, publicado na revista PLoS One, Susana Carvalho e os colegas analisaram seis pedras usadas pelos chimpanzés como bigornas (onde põem as nozes) e como martelos (com que partem as nozes).
“O uso de ferramentas de pedra pelos chimpanzés selvagens da África Ocidental oferece uma oportunidade única de explorar as raízes da tecnologia na evolução humana. No entanto, faltam análises detalhadas sobre os artefactos de pedra dos chimpanzés, o que impede uma comparação com o registo arqueológico [de ferramentas humanas]”, contextualiza o artigo, cujo primeiro autor é Alfonso Benito Calvo, do Centro Nacional de Investigação sobre Evolução Humana, em Burgos, Espanha.
Tendo como ponto de partida a procura da origem das ferramentas nos primatas – humanos e não humanos –, os cientistas esmiuçaram no computador as seis pedras, que Susana Carvalho trouxe de África. “Aplicaram-se técnicas pioneiras de sistemas de informação geográfica (SIG) ao estudo das superfícies de ferramentas”, diz a primatóloga e arqueóloga.
“Fizemos um primeiro trabalho de laboratório usando um scanner 3D, na University College de Londres, para registar as ferramentas. Depois, passámos essa informação digitalizada ao Alfonso, para que construísse os modelos em SIG sem ver as ferramentas — para que foram usadas, quais foram mais e menos usadas... — e pudéssemos testar se os resultados chegavam ao detalhe de informação pretendido”, explica Susana Carvalho. “Os arqueólogos que fizeram a análise SIG não sabiam qual tinha sido a função destas ferramentas, só sabiam que tinham sido utilizadas por chimpanzés em Bossou.”
Mas Susana Carvalho estava entre os elementos da equipa que conheciam bem o uso que os chimpanzés tinham dado às seis pedras. Afinal, tinha-os observado a usá-las em Bossou, tanto num local na floresta onde iam partir nozes, como num laboratório ao ar livre, construído em 1988, onde os cientistas deixam pedras e costumam ir observá-los, atrás da vegetação, a quebrar as nozes. Portanto, havia registos minuciosos sobre o uso específico de cada pedra.
Os chimpanzés de Bossou são, aliás, especiais pela forma como se servem das pedras como ferramentas. A estação para os estudar foi criada em 1976, pelo Instituto de Investigação de Primatas da Universidade de Quioto, no Japão. Só Susana Carvalho já lá foi sete vezes, entre 2006 e 2012, para estudar como seleccionam as pedras, fazem o transporte, as utilizam, aprendem a utilizá-las (“são três a cinco anos até serem altamente eficientes”) e até as reciclam. E também acompanha o que acontece aos chimpanzés: em 2009, eram 13, agora nove: “Desapareceram, não temos confirmação de que tenham morrido.” À epidemia do vírus do ébola, que atinge a Guiné-Conacri desde Dezembro de 2013, os chimpanzés e as pessoas de Bossou têm escapado. “Mas temos relato de infecções nas aldeias mais próximas. O epicentro do vírus está em Guéckédou, na Guiné Florestal, a alma da nossa área de investigação. Os nossos assistentes de campo continuam a seguir e a proteger os chimpanzés durante todo este tempo”, conta a investigadora.
“Há apenas dois locais na África Ocidental onde o uso de ferramentas de pedra pelos chimpanzés tem sido sistematicamente estudado: Bossou, na Guiné-Conacri, e Taï, na Costa do Marfim”, refere por sua vez o artigo na PLoS One. “Os chimpanzés de Bossou são um caso de estudo único para examinar o papel da tecnologia de percussão na evolução tecnológica: esta população não costuma utilizar rochedos ou madeira como ferramentas e as nozes são quebradas sobretudo com pedras móveis; as dimensões dos instrumentos de pedra são relativamente padronizados, em parte devido ao facto de as nozes não serem muito duras. Por isso, têm um tamanho pequeno a médio e geralmente o martelo, a bigorna e as nozes são transportados para os locais de quebra de nozes.”
A partir das imagens digitalizadas das pedras, os cientistas obtiveram uma série de parâmetros sobre a superfície, como a elevação, a inclinação e a rugosidade. Com isto, fizeram uma cartografia das marcas na superfície (depressões, polimentos e estrias), bem como das formas e da distribuição espacial dessas marcas conforme o uso das pedras.
“Usar SIG, que era uma ferramenta da geografia, para mapear ferramentas de pedra é inovador por si só. Com este método, obtêm-se graus de rugosidade, de desgaste, de zonas mais e menos impactadas, que é algo impossível com as análises frequentemente aplicadas às ferramentas de pedra, que são descritivas e macro ou microscópicas”, explica Susana Carvalho.
E, pela primeira vez, um estudo mostrou que é possível saber com exactidão o uso dado a ferramentas sem os seus utilizadores estarem presentes. “Chegámos a um índice de desgaste que nos permitiu sugerir que uma ferramenta foi utilizada como martelo ou como bigorna, sem precisarmos de ver os chimpanzés a usá-la. Quando comparada com os nossos dados de observação directa da quebra das nozes, a análise destrinçou, com sucesso, a função das ferramentas.”
Não é tudo: “Isto tem implicações significativas para os arqueólogos, porque dá credibilidade ao uso deste método para detectar a funcionalidade de ferramentas provenientes de escavações, das quais não temos o comportamento associado”, sublinha a investigadora. “Este trabalho centra-se num grupo de ferramentas negligenciado durante muito tempo: as ferramentas usadas em actividades de percussão, ou seja, bigornas e martelos não talhados. E, mais, pela primeira vez podem-se comparar ferramentas de primatas não humanos e humanos, porque foi o primeiro estudo a aplicar técnicas que permitem a uniformização entre colecções diferentes.”
Como este método conseguiu “adivinhar” o uso de cada ferramenta pelos chimpanzés de Bossou, abre-se agora uma janela nova para perceber como se desenvolveram as tecnologias durante a nossa própria evolução. “Temos estes incríveis primatas não humanos que nos permitem hoje observar tudo o que se passa em torno da utilização da tecnologia.”
Susana Carvalho considera mesmo que o novo método pode “revolucionar” o estudo das ferramentas humanas mais antigas, que ela, na dupla qualidade de primatóloga e arqueóloga, também estuda e tem escavado em África. “Para o estudo das ferramentas mais antigas, é crucial desenvolver novos métodos como este, para podermos reconhecer se são realmente ferramentas ou o produto de desgastes naturais”, explica. “Temos agora indicadores muito claros de que as primeiras colecções de ferramentas tinham uma forte componente de percussão (martelos e bigornas) e estas são as mais difíceis de reconhecer, porque não foram modificadas antes do uso mas somente pelo uso.”
Artefactos pré-humanos
É à procura dessas ferramentas que anda tanto a equipa da investigadora portuguesa como a de uma arqueóloga francesa, ambas junto do lago Turkana, no Quénia, um dos berços da humanidade. Mas enquanto a equipa de Susana Carvalho e David Braun (também da Universidade de George Washington) concentra as escavações a leste do lago Turkana, a da arqueóloga Sonia Harmand e de Jason Lewis, da Universidade de Stony Brook, em Nova Iorque, trabalha na região a oeste do lago. As duas equipas têm tido sorte.
Em Abril, Sonia Harmand anunciou a descoberta das ferramentas mais antigas usadas pelos nossos antepassados, na reunião anual da Sociedade de Paleoantropologia, em São Francisco. Têm 3,3 milhões de anos, segundo datações dos sedimentos onde estavam (um sítio conhecido por Lomekwi 3), o que recua em 700 mil anos a antiguidade dos instrumentos líticos.
Até agora, esse estatuto era detido por ferramentas com 2,6 milhões de anos encontradas em Gona, na Etiópia, na década de 1990 – e pertencentes à tecnologia olduvaiense, assim designada porque os primeiros exemplares foram descobertos no desfiladeiro de Olduvai (Tanzânia), por Louis Leakey na década de 1930. Os instrumentos de tipo olduvaiense eram rudimentares: fracturava-se um bloco de pedra (o núcleo) com outra pedra (o percutor) e daí saíam as lascas. Tanto as lascas como o núcleo ficavam com arestas cortantes e eram usados como ferramentas.
Ora desde 2011, disse Harmand, foram descobertos vários núcleos e lascas, mas também bigornas, que terão servido para apoio dos núcleos durante o talhe com pancadas e já fazem lembrar mais as bigornas dos chimpanzés. Para esta equipa, as lascas foram produzidas à medida que ia rodando o bloco de pedra. “Estes artefactos foram claramente talhados e não resultam de fracturas acidentais de rochas”, garantiu Sonia Harmand, acrescentando que estas ferramentas são de uma tecnologia distinta da olduvaiense, segundo uma notícia no site da revista Science. Portanto, serão pré-olduvaienses.
A existência de instrumentos líticos com mais de três milhões de anos significa, desde logo, que muito antes do aparecimento do género Homo, ou seja, dos primeiros humanos, os nossos antepassados já fabricavam instrumentos. Em Março deste ano, a revista Science revelou que primeiros membros do género Homo surgiram há 2,8 milhões de anos, segundo uma mandíbula encontrada na região de Afar, na Etiópia – o que antecipou em cerca de 400 mil anos o aparecimento dos primeiros humanos.
Mas mesmo tendo o nosso género aparecido, afinal, há mais tempo do que se pensava, ferramentas com 3,3 milhões de anos são antigas de mais para terem sido obra dos primeiros humanos. Então, quem é que as fez?
“Na realidade, não se sabe. Mas, com 3,3 milhões de anos no Quénia, estaremos a falar de Australopithecus ou de Paranthropus. Também pode ter sido obra do Kenyanthropus platyops, porque as ferramentas estavam muito perto do local onde foi encontrado este fóssil”, diz Susana Carvalho. “Isto tem implicações interessantes, porque os géneros ‘Australopithecus’ e ‘Paranthropus’ tinham uma capacidade craniana não muito longe do chimpanzé moderno e adaptações anatómicas para uma vida ainda parcialmente arbórea. Muitas das hipóteses sobre o que levou ao surgimento da tecnologia com o Homo habilis terão de ser reavaliadas: terrestrialidade, bipedismo, maior encefalização, adaptações anatómicas da mão, que permitiram uma coordenação motora com maior precisão…”
Também a equipa de Susana Carvalho e David Braun encontrou ferramentas nas escavações, desde 2013, no sítio de Koobi Fora, na zona leste do lago Turkana. Embora não tenham a idade das de Lomekwi 3, já são mais antigas do que as de Gona e também revelam uma transição entre o que se vê hoje os chimpanzés a usar e as ferramentas rudimentares de Olduvai. “Há muitos martelos e bigornas e também temos núcleos, de onde foram retiradas intencionalmente lascas. Não há nada na natureza que produza o que temos”, diz Susana Carvalho. “Estamos seguros de que têm mais de 2,6 milhões de anos, ou seja, são pré-olduvaienses. Mas precisamos de fazer mais datações para termos a certeza.” E estas já são humanas? “São ferramentas humanas, até prova em contrário”, responde a investigadora, acrescentando que também já estão a ser estudas com as novas técnicas SIG.
Para Susana Carvalho, era uma questão de tempo até se encontrarem os depósitos certos em África com ferramentas ainda mais antigas de antepassados humanos, como aconteceu agora no lago Turkana. “Para quem vê os chimpanzés a utilizar as ferramentas de forma tão eficiente e criativa, não há muitas dúvidas de que a história da tecnologia e dos primatas tem que ser muito reescrita.”
Mas à medida que se estão a desenterrar ferramentas cada vez mais antigas, a vida dos cientistas fica mais complicada. “Vai surgir a polémica sobre como se distinguem quem são os fazedores/utilizadores de ferramentas, porque muitas peças são semelhantes às que usam os chimpanzés hoje e porque havia múltiplos hominíneos [todos os nossos antepassados depois da separação do ramo dos chimpanzés, há cerca de oito milhões de anos] que viviam nesse período e também primatas não humanos na área. Agora que já sabemos que o Homo não foi o primeiro e que várias espécies deverão ter sido inventoras e utilizadoras em simultâneo [de ferramentas], nada justifica que não se incluam outros primatas não humanos na equação.”
Aos 41 anos, Susana Carvalho prepara-se agora para estender este cruzamento entre a primatologia e a arqueologia ao Parque Nacional da Gorongosa, em Moçambique, como a sua nova directora-adjunta para a paleoantropologia e primatologia. “A ideia é ajudar a colocar a Gorongosa no mapa da evolução e, mais particularmente, no mapa da evolução humana. E, criar uma Escola de Campo Internacional nessas áreas para formar estudantes portugueses, moçambicanos e do resto do mundo”, avança. “A Gorongosa está estrategicamente localizada no extremo Sul do Grande Vale do Rift Africano e é quase a única área do vale que ainda não foi estudada em termos de evolução humana. Peças muito importantes do puzzle da evolução estão à espera de serem encontradas neste lugar fantástico.”