O bombista suicida é uma mistura do anarquista do século XIX com o mártir
Vai começar uma guerra de civilizações? Alguma vez existiu um mundo bipolar entre o islão e a cristandade? Até que ponto o conflito é construído com mitos e mentiras? Qual a genealogia do Estado Islâmico? Quem são os jihadistas e o que pretendem? Será possível compreendê-los? Jaime Nogueira Pinto escreveu um livro, O Islão e o Ocidente, sobre as andanças históricas da “grande discórdia”
Poder-se-ia pensar que o seu posicionamento, na direita conservadora, o levaria a olhar o terrorismo islâmico com desprezo e intolerância. A verdade é que o “fascista de serviço”, como ele gosta, com um sorriso, de se definir, respeita Bin Laden e acha que vale a pena tentar compreender o Estado Islâmico. É o que tenta fazer em O Islão e o Ocidente — A Grande Discórdia, publicado pela D. Quixote.
Quando Napoleão atacou os egípcios, disse-lhes que era para os libertar. O Ocidente traiu o mundo muçulmano desde sempre?
O Ocidente quer sempre libertar e há sempre gente para ser libertada. Os próprios conquistadores espanhóis das Américas, para irmos a um caso limite de selvajaria, fizeram isso. Cortez aliou-se com muitas tribos de índios que eram oprimidos pelos aztecas. Napoleão, que estava a começar uma guerra contra o Império Britânico, tentou aparecer como um libertador. Mais tarde, o Lawrence da Arábia fez o mesmo, ao serviço do Exército inglês, prometendo coisas aos árabes que os seus próprios chefes já estavam a atraiçoar completamente.
Era o acordo Sykes-Picot.
Exactamente. Já tinham dividido os territórios entre a Inglaterra e a França. E prometido arranjar um espaço para a comunidade judaica. Tinham prometido a mesma coisa a três ou quatro entidades diferentes e não se importaram muito com isso. Em suma: o Ocidente sempre usou e manipulou toda esta região. E fê-lo mais facilmente a partir do momento em que o Império turco ia decaindo, durante todo o século XIX, culminando com a derrota na Primeira Grande Guerra.
Hoje os integristas islâmicos referem-se sempre ao Império Otomano como um período de glória perdida. Essa foi a grande humilhação do mundo muçulmano?
Os muçulmanos tiveram uma ascensão rapidíssima. Entre o início da pregação de Maomé e a conquista do seu império, vai praticamente um século. Maomé morre em 632, em 711 eles estão na Península Ibérica. Têm um século em que é sempre a crescer. Da Ásia, ao Império Bizantino, o Egipto, o Magrebe, numa grande cavalgada que é um misto de conquista e conversão. Isso leva-os a um pico de grandeza, a uma época, do califado, nos séculos VIII e IX, de grande fulgor civilizacional. Depois entram num ciclo de alguma decadência, desde a expulsão da Península Ibérica, em 1492, e é o império turco, os otomanos, que vai tomar as rédeas da liderança do mundo muçulmano. E durante os séculos que se seguem há uma espécie de confrontação com o mundo cristão, mas que não é permanente.
Não se trata propriamente de um mundo bipolar.
As guerras dentro do islão e as guerras dentro da cristandade são muito mais permanentes do que o choque entre os dois blocos. Houve alguns momentos de coligação em cada um dos campos, para combater o outro, mas são raros. Quando os turcos tomam Constantinopla, em 1453, quando os cristão derrotam os turcos em Lepanto, em 1571, ou quando os turcos ameaçam Viena, nos finais do século XVII.
Mas a luta, se virmos bem, é mais das potências católicas, sobretudo a Espanha dos Habsburgo, por vezes Portugal, a Santa Sé. Já a França, por exemplo, tem uma posição ambígua. A maior parte das vezes está do lado dos turcos. E os ingleses também.
Mas houve uma bipolarização ao nível mental? Foi construída uma imagem do turco, do árabe.
Ao nível mental houve, de facto, na Idade Média, antes da Reforma, um mundo que é a Respublica Christiana, definido por valores ideológicos e religiosos, que levou por exemplo ao fenómeno das Cruzadas. Mas à medida que os estados se começam a formar, o interesse estatal passa à frente dessa unidade religiosa, que entretanto se quebrou.
A própria Reforma quebra essa unidade.
Exactamente, a partir de 1519. Aliás, é interessante que os pintores protestantes, como Durer, e como esse Mathias Gerung, que ilustra a capa do meu livro, representam muitas vezes nas suas obras, lado a lado, os grande inimigos da fé e de Deus: O Grande Turco e o Papa. Aparecem juntos, pintados como uns demónios, ou lagartos.
Mítica ou não, essa ideia de uma idade de ouro prevaleceu no mundo muçulmano.
O passado é sempre um produto da nossa imaginação. No século XIX, com os nacionalismos, a maior parte das nações europeias…
Foram inventadas.
Foram inventar uns pais fundadores, um Viriato, ou um Vercingetorix [que liderou a grande revolta gaulesa contra os romanos em 53 a.C.]. A História é sempre um campo muito mobilizável para essas ideias. A História e a Arte. Wagner por exemplo, foi buscar aquela mitologia dos Nibelungos, todos aqueles heróis ou semideuses germânicos pagãos, que não tinham existência histórica. No mundo muçulmano, passou-se algo paralelo.
Mas essa identificação do mundo muçulmano como uma unidade nem sempre existiu. É ela própria uma construção? Durante muito tempo, o elemento unificador era o arabismo.
Há um certo esplendor, que se tornou mítico, e depois toda essa decadência do império turco, a partir de princípios do século XIX, em que são colonizados, dominados, explorados, e que culmina com a Grande Guerra. Depois, é o pacto Sykes-Picot que decide a sorte do império turco. Deixa os sauditas tranquilos, permite a criação dos reinos do Iraque e da Jordânia, mas há um grande vazio, que é ocupado essencialmente pelos ingleses e franceses. Ora depois vem a Segunda Grande Guerra e a seguir um movimento de descolonização. Aí nascem os nacionalismos árabes. Nasser faz a revolução dos jovens oficiais no Egipto, etc. Nacionalismos de cada nação.
Que geralmente são movimentos laicos.
Sim, laicos, socialistas, que evocam o panarabismo. Na Síria, no Iraque, surgem os partidos Baas, cujo teórico, aliás, é Michel Aflac, que é um cristão. Esses movimentos não são islamizantes, pelo contrário. O Egipto de Nasser acaba por enforcar os líderes da Irmandade Muçulmana, Hassan Al Banna e Said Qutb.
E têm como aliado a URSS e o seu bloco da Guerra Fria.
Sim, vão buscar a União Soviética, cuja simpatia, curiosamente, ia, em 1948, mais para o Estado de Israel, porque ideologicamente era socialista, igualitário.
E porque os judeus tinham sido vítimas dos alemães.
Exactamente. E depois há uma série de dirigentes do Terceiro Reich que escapam para o mundo árabe e ficam por lá.
Alguns estão na génese dos partidos baasistas?
Não chegam a estar. Mas aparecem vários, como uma espécie de consultores.
Há uma ligação ideológica com o fascismo?
Mais com o fascismo italiano. Nos anos 30, Mussolini tinha criado em Roma o Instituto para o Oriente, para onde procurou atrair uma série de líderes, teóricos e académicos do mundo árabe, para encontrar uma certa afinidade.
Durante a Guerra Fria, a ideia do islão não existia?
Estava adormecida.
Quando acorda?
O ano da viragem é 1979. No Irão, que era uma autocracia monárquica modernizante, com o Xá, chega ao poder o Ayatollah Khomeini, em Fevereiro. Em Novembro, dá-se o ataque à Grande Mesquita de Meca, pelos integristas, contra a família real saudita, que acusavam de atraiçoar os princípios do islão e deixar os estrangeiros ocuparem a terra sagrada da Arábia. Por fim, a invasão soviética do Afeganistão, com uma guerra que terminará meia dúzia de anos depois e, de certa forma, vai determinar o colapso da URSS. Aliás a retirada é já no tempo de Gorbatchov.
A Perestroika começa aí. É a queda da União Soviética que vai fazer o islamismo prevalecer sobre o arabismo?
Os sauditas começam a apoiar no exterior, através de fundações de caridade, a reislamização das populações, no sentido fundamentalista.
Como resposta ao Irão xiita?
Também por isso. Há uma preocupação com o crescimento do xiismo, que até aí não mandava em nada. Mas principalmente para acalmar o clero wahabita e o movimento integrista interno. O efeito no mundo islâmico é o nascimento de um sentimento identitário islâmico, cada vez mais poderoso. Esta atitude saudita e o combate no Afeganistão estão na genealogia dos movimentos radicais recentes, como a Al-Qaeda. Formam-se naquele internacionalismo religioso anti-soviético.
Com o apoio americano.
Sim, muito alimentado pelos EUA, a Grã-Bretanha, os sauditas, o Irão. Coexistiram ajudas muito estranhas.
O interessante é que a grande fractura era entre o mundo comunista, ateu, e o mundo religioso. A afinidade que os americanos encontram e promovem com os “selvagens” mujahedin é a religiosidade.
Sim, é a religião. Bill Casey, que era director da CIA nessa época, quando começou as conversações com o embaixador saudita em Washington, disse-lhe: “Nós temos uma causa comum.”
Contra o materialismo ateu.
Sim. Casey, que era católico praticante e que ouvia missa todos os dias, viajava sempre com o seu capelão, no avião da CIA. Na Arábia Saudita não era fácil, mas ele dizia: “Se não o posso trazer, não venho cá.”
Nessa altura, não havia guerra de civilizações, havia uma proximidade entre cristãos e muçulmanos contra os ateus.
A linha era: nós, os crentes, temos um inimigo comum, que é o materialismo soviético ateu. Já tinha havido outra situação histórica parecida, menos conhecida. Na guerra civil espanhola, uma das bases fundamentais do exército de Franco foram os regulares marroquinos. Eram uns milhares de soldados marroquinos do exército espanhol. E o sultão, e os ulemas, fizeram na altura uma declaração encorajando esses soldados marroquinos a combater os materialistas ateus. Tal como aconteceu na guerra de Espanha, com o fenómeno das brigadas internacionais, também houve esse voluntariado ideológico no Afeganistão. Essa cruzada anti-soviética mobilizou muçulmanos de todo o mundo.
Que depois da guerra ficaram desocupados.
Sim, e é interessante que dez anos depois, quando Saddam Hussein invade o Kuwait, Osama Bin Laden escreve uma carta ao rei Fahd da Arábia Saudita…
Dizendo que não quer lá os americanos.
E que ele levantará um exército de dezenas de milhares de crentes para expulsar Saddam do Kuwait. O rei nem sequer respondeu.
Porque tinha desde há muito uma aliança com os americanos.
Desde o tempo em que Roosevelt se encontrou com o rei Saud, nos finais da guerra do canal de Suez. O rei viu que seriam os americanos a mandar, e não os ingleses, e fez o shift. Roosevelt aproveita a oportunidade.
Porque o petróleo começava a ser importante.
Claro. Já tinha sido. Aliás, uma das causas da derrota da Alemanha hitleriana é a questão energética. Andaram à procura de petróleo por todo o lado. É por isso que ainda hoje os alemães estão na vanguarda das energias alternativas. Porque não tinham petróleo.
Mas foi decisivo esse rompimento de Bin Laden com o rei saudita?
Sim, foi aí que começaram os atentados, nos anos 90, contra bases americanas na Arábia Saudita, etc. Eu li com muita atenção os escritos de Bin Laden, porque é uma pessoa que vale a pena ler.
Há uma grande diferença entre ele e os teóricos do actual Estado Islâmico?
Osama Bin Laden é um homem de princípios. Vê-se que tem uma concepção do mundo. Não interessa qual é, mas tem. Há diferenças até sociais. Bin Laden vem da elite, herdou uma fortuna colossal. E vê-se que há ali uma linha teológica.
É um homem a quem conseguimos compreender o pensamento?
Sim, tem um pensamento muito político. A ideia dele é tomar o poder no mundo árabe. Tirar de lá o que ele considera serem as elites ilegítimas. E tem uma teoria do inimigo próximo e do inimigo distante. A tese dele é a de que a Casa de Saud se aguenta graças ao apoio americano. Portanto, se os americanos forem expulsos, se se assustarem e fugirem… Convenceu-se de que o fariam depois do ataque ao quartel dos Marines no Líbano, no tempo de Reagan, e da retirada da Somália, depois do episódio de Mogadíscio, em que foram mortos 18 americanos. Concluiu que os americanos fogem quando começam a ver cadáveres. Por isso lançou o grande ataque à América, de 11 de Setembro. Enganou-se profundamente.
Subestimou os americanos.
Quando os ataques eram longe, era uma coisa. Mas se os atacamos em casa, não há para onde fugir.
A estratégia de Bin Laden falhou. Não só não conseguiu afugentar os americanos, mas trouxe-os em força para a região. Foi por isso que nasceu o Estado Islâmico?
A seguir ao 11 de Setembro, [o então primeiro-ministro israelita] Ariel Sharon disse que era bom que os americanos vissem o que era ter o terrorismo dentro de portas. “Nós temos isto todos os dias.” Os EUA foram trazidos de novo para o centro do vulcão. Envolvem-se na guerra do Afeganistão, depois no Iraque, que obviamente não tinha nada que ver com terrorismo. Saddam era o líder mais laico da região. E começou um capítulo de desarranjo de todo o Médio Oriente. Surge a Al-Qaeda e depois o Estado Islâmico, liderado pelo quadros dissidentes mais violentos daquela. E formado, além disso, pelos quadros militares, laicos, do exército de Saddam Hussein.
E combatentes que vão chegando de todo o lado.
A novidade do Estado Islâmico é a territorialidade. A Al-Qaeda não tem território, o que implica uma maior dificuldade de recrutamento. Para os internacionalistas que quisessem alistar-se, era complicado. Vão para onde? Agora é fácil. Chegando às fronteiras do Estado Islâmico, são encaminhados, e lá ficam.
Mas é preciso também ter capacidade de atracção.
Eles jogam na propaganda. Não querem ser um grupo selectivo, com uma grande estratégia. Não, eles querem ir buscar as massas. Há 1600 milhões de muçulmanos no mundo, e eles vão apelar aos deserdados dessa massa, que podem ser os que vivem nos estados islâmicos e se sentem marginalizados, ou os que vivem nas comunidades cristãs da Europa ou EUA, e que estão desenquadrados socialmente. O Estado Islâmico dá-lhes uma identidade. Diz-lhes: fiquem connosco. Nós aterrorizamos os infiéis.
A ideia do terror é importante?
Os grandes movimentos totalitários, como o comunismo ou o próprio nacional-socialismo, jogaram nessa ideia do terror.
Vê uma semelhança entre esses movimentos e o Estado Islâmico?
Têm como objectivo seduzir e atrair as massas. Não apresentam grandes construções intelectuais, são mensagens simples com dois objectivos: aterrorizar os inimigos e cativar as camadas menos politizadas, os deserdados.
Comunismo e nacional-socialismo eram idênticos nisso, apesar de terem causas diferentes?
O modelo é muito parecido. A causa do comunismo é o proletariado mundial, humilhado e explorado. Tu, proletário argentino que sofres, explorado, tens aqui a União Soviética que te vai libertar. O nacional-socialismo explorou o patriotismo dos alemães, humilhados pelo tratado de Versalhes. Tu, cidadão alemão, que estiveste na guerra, foste ferido, foste humilhado, tens o teu país ocupado, nós vamos levantar-te. O Estado Islâmico diz: os muçulmanos estão a ser humilhados, explorados. Tu, jovem muçulmano, que estás aí perdido no meio da Europa, onde te desprezam, te marginalizam, se vieres para aqui, tens aqui o Estado Islâmico para te defender.
São os únicos que fazem frente ao poder ocidental e dos americanos.
Sim, por isso eles fazem aquelas paradas, demonstrações de força.
Um artigo de Andre Glucksman, citado no seu livro, compara os combatentes do ISIS aos nihilistas russos que são os protagonistas da obra Os Demónios, de Dostoievski.
Exactamente. É o nihilismo que volta a personificar-se nestes voluntários. Não há uma tradição suicida no mundo islâmico.
De onde vem isso, então?
Dos nihilistas russos e dos anarquistas europeus. E até os nossos Buiça e Costa [assassinos do rei D.Carlos] são suicidas, porque sabem perfeitamente que não vão escapar.
É aí que vão buscar o modelo dos bombistas suicidas? Não à tradição islâmica?
Os primeiros kamikazes islâmicos, que aparecem nos movimentos radicais palestinianos, que não eram religiosos, mas marxistas, usavam um lenço branco à volta da cabeça, como os pilotos kamikazes japoneses. Não é uma tradição islâmica. É uma coisa nova, introduzida. E há uma reconciliação disso com a ideia do mártir, que vem muito do xiismo.
De Hussein, filho de Ali.
O Hussein que os companheiros abandonaram. Daí a autoflagelação, para se castigarem.
Também há o culto dos mártires no cristianismo.
O mártir cristão deixa-se matar pela sua fé, mas não mata. O bombista suicida islamista de hoje é uma mistura do anarquista do século XIX com o mártir. Aquele que arremessa uma bomba para a frente do czar, o que mata a arquiduquesa a sangue-frio, sabe que a seguir vão ser presos ou mortos. Tal como na tomada da Grande Mesquita, os que foram presos seriam todos mortos, decapitados. Mas com essa ideia de ser um martírio por Deus.
Essa combinação de jihadismo com integrismo não é também um fenómeno novo? Os Irmãos Muçulmanos nunca quiseram o poder.
Há duas linhas que são contraditórias. Há um lado purista, dos Irmãos Muçulmanos, que estão contra o poder. Desprezam o “faraó”, o governante ilegítimo. Por outro lado, o clero wahabita, na Arábia Saudita, está com o regime. Quando surgiu a Al-Qaeda e o Estado Islâmico, as autoridades religiosas islâmicas, como a universidade egípcia de Al Azhar, condenaram os seus actos. Mas depois é evidente que para um movimento funciona melhor invocar motivos religiosos nobres do que deixar transparecer a ambição política.
A separação da religião e do Estado tem alguma tradição no mundo islâmico?
Os primeiros califas eram chefes militares e chefes religiosos. São sucessores do profeta, e assumem esses dois gládios. Que no cristianismo se separam a partir de certo momento histórico, embora também tenha havido polémica. A dada altura, os papas querem mandar nos estados e os estados querem mandar na Igreja, como fez Henrique VIII. Houve tensões, mas o problema resolveu-se no século XVI ou XVII. Passou a prevalecer a ideia da Igreja livre no Estado livre. O laicismo francês é uma coisa diferente.
Tem uma natureza diferente das outras nações europeias? É mais do que a separação da Igreja do Estado?
No mundo anglo-saxónico, o laicismo é entendido como a separação da Igreja e do Estado. A Igreja trata das almas, o Estado dos corpos. Depois lá se entendem, têm os seus pactos, negociados historicamente, com mais ou menos violência. Em França, a herança é diferente. A Revolução perseguiu a Igreja Católica. O laicismo era entendido, tal como foi aqui, pelo dr. Afonso Costa, não como a Igreja para um lado, o Estado para o outro. Era mais…
Acabar com eles.
Acabar com eles, exactamente. Esmaguemos a infâmia, dizia Voltaire. E como entretanto o catolicismo francês perdeu muito da sua força, e a sociedade se secularizou, o laicismo francês voltou-se contra o islão. Não por ser o islão, mas por ser uma religião.
Porque os católicos já não davam luta? Foi por isso que os humoristas do Charlie Hebdo se metiam com Maomé, para poderem continuar a ser provocadores?
Aqueles bonecos que os levaram à desgraça, faziam-nos há muito tempo com o Papa. Desenhavam Bento XVI agarrado a um guarda suíço, com uma criancinha, etc. Mas os católicos não tugiam nem mugiam.
Há um capítulo do seu livro que parece uma justificação do atentado contra o jornal satírico Charlie Hebdo.
Não é uma justificação, apenas uma explicação. Se tivermos uma publicação que sistematicamente insulta os negros, os homossexuais, ou as mulheres, embora no uso da sua liberdade de imprensa, irá decerto provocar indignação e ter problemas.
São coisas distintas. Criticar ou ridicularizar um líder não é o mesmo que insultar um grupo.
Eu sou católico apostólico romano. Se alguém fizer uma caricatura de Cristo numa posição… uma coisa homossexual, um cristão sente-se profundamente… Cristo é nosso irmão, nosso pai. É uma ofensa gravíssima.
Se o retratado for um líder político, já não é ofensivo?
O líder é uma representação política. Aqui estamos a falar de uma coisa sagrada.
Um ateu não reconhece isso. Um líder político pode ser igualmente importante para ele.
Se for um ateu comunista e lhe fizessem isso ao Lenine, ou um ateu nacional-socialista e insultassem o Hitler, ele também ia lá pôr uma bomba.
Claro, se forem ateus fanáticos.
O Emanuel Todd escreveu agora um livro explicando que se trata daquela classe média e média-alta francesa, filosoficamente céptica, que não acredita em coisa nenhuma e que acha graça ter como alvo as crenças do próximo. Ora as crenças, para quem tem fé, são o mais importante da vida.
Sim, mas que tem isso que ver com o ataque ao Charlie Hebdo?
Não justifica, mas explica. Eles estavam a pôr-se em risco, com o permanente desafio a uns tipos que não eram propriamente pêras doces.
Acha que a reacção que houve foi apenas promovida pela classe jornalística, que se sentiu atacada nas suas prerrogativas?
Os jornalistas nunca ligam nenhuma aos ataques que há por todo o mundo. Aqui tocaram numa coisa que é sagrada para eles. Assim como para mim é sagrado Nosso Senhor Jesus Cristo, para os jornalistas, é a liberdade de expressão.
A liberdade de expressão não é um valor sagrado para a sociedade ocidental?
Não acho. É para uma parte dela. Para outra, não é. O risco que corremos é o de a representação do islão ficar nas mãos destes radicais e a representação do Ocidente ficar entregue a este laicismo agressivo, que apesar de tudo é minoritário.
É possível compreender os actos de pura barbárie, como as decapitações gravadas em vídeo?
Temos de compreender tudo, mesmo que seja para depois o combatermos.
Não há coisas tão intoleráveis que nem são dignas do nosso esforço de compreensão?
Isso é uma atitude que não teria muita utilidade, nem para nos defendermos. Temos de perceber as razões. Isto é uma paranóia? Uma hiperdefesa de qualquer coisa anormal? Uma coisa é a gente morrer numa guerra de civilizações, porque tem de morrer. Outra coisa é morrer estupidamente.